A matéria que era para ter duas partes acabou tendo três com a publicação da Parte 1A com a histórica entrevista com o Sr. Guenter Hix. Ela complementou a Parte 1 e trouxe informações importantes sobre a gênese do Jeg que, em resumo, foi desenvolvido pela Dacunha através de observações feitas no VEMP 4×4 da Volkswagen.
Repetindo a conclusão sobre o assunto publicada na Parte 1A,: ao que tudo indica o Jeg resultou de uma “engenharia reversa” feita no VEMP que esteve várias vezes na Dacunha enquanto o orçamento (para a construção do VEMP pela Dacunha para a Volkswagen) estava sendo elaborado. Nesse processo o Jeg acabou até incorporando algumas orientações que o Sr. Hix passou. Como a Volkswagen acabou não levando o projeto adiante, a Dacunha assumiu a ideia e lançou o Jeg no mercado, daí a enorme semelhança entre os dois veículos.
No decorrer das pesquisas para esta matéria me deparei com algumas fotos que seriam do primeiro Jeg (usado e em condições precárias) e a semelhança com o VEMP era maior ainda:
Conta a história que o Jeg, produto mais conhecido da empresa Dacunha, de São Bernardo do Campo, SP, representou mais uma tentativa de colocação no mercado de um jipe de projeto e fabricação nacionais.
Construído com chapas de aço dobradas sobre a estrutura inferior da carroceria monobloco da Kombi Volkswagen com entre-eixos encurtado em 40 cm, dela herdava toda a mecânica: motor boxer traseiro arrefecido a ar (1600, carburação simples e 48 cv), quatro marchas sincronizadas, suspensão com as barras de torção, e freios hidráulicos a tambor.
Apenas as rodas foram trocadas por outras maiores, aro 15, com pneus tipo cidade-campo. Como nos jipes tradicionais, tinha acabamento espartano, capota e portas de lona e janelas laterais de material plástico transparente, de enrolar. Revelou-se, porém, mais espaçoso e confortável do que os concorrentes. Com 3,30 m de comprimento, apresentava vão livre de 30 cm.
Abaixo um folheto do Jeg, uma raridade, com os detalhes do veículo, material do acervo de Lauro Filippetti:
O modelo definitivo foi lançado em julho de 1977, com produção de dez unidades mensais. Recebeu então uma versão militar com algumas adaptações para o novo uso, tais como iluminação camuflada, engate para reboque e latão de 20 litros fixado na traseira lado esquerdo, como reserva adicional de combustível (opcional no modelo civil), apesar do tanque de 55 litros..
Na ocasião, o nome da empresa foi mudado para Dacunha Veículos e Mecânica S.A. — referência à controladora Dacunha Transportes, (fundada em 1971, que era uma das maiores e mais rentáveis “cegonheiras” da época, transportando com exclusividade a produção zero-quilômetro Volkswagen para as concessionárias.
No 11º Salão do Automóvel, em 1978, foram lançadas duas novas versões: TA, com capota de aço, e MC, uma picape com engenhosa capota da caçamba de lona sanfonada. Com a diversificação, o modelo normal com capota de lona passou a se chamar TL.
Com as novas versões chegou um pequeno retoque na traseira, que perdeu a inclinação existente na altura da tampa do motor, alteração traduzida em melhor aproveitamento do espaço interno.
Todos os modelos tinham pequenos estribos tubulares sob as portas, que nos últimos exemplares viriam a ser prolongados, ligando as duas caixas de roda. Os carros também passavam a contar com um sistema de freio de estacionamento com duas alavancas adicionais de puxarpara atuação seletiva fazendo as vezes de bloqueio do diferencial, facilitando o trânsito por terrenos difíceis.
A Dacunha estava atenta, porém, à deficiência comum a todos os utilitários com mecânica VW, Gurgel inclusive: a ausência da tração nas quatro rodas que muito limitava sua aplicação em tarefas fora-de-estrada mais pesadas.
Para resolvê-la, associou-se à empresa de engenharia QT, também de São Bernardo do Campo (formando a Dacunha-QT), e juntas desenvolveram um projeto de conversão do chassi rolante Volkswagen em veículos 4×4, sistema testado em duas Kombis (fotos abaixo) e depois adequado ao Jeg 4×4, lançado em 1980.
O sistema de tração compreendia uma tomada de força na saída do câmbio normal VW, para isso exigindo uma árvore do pinhão prolongada feita especialmente, e com um sistema de luva de engate, da qual partia o cardã que acionava o diferencial dianteiro. A tração 4×4 não era permanente por não haver diferencial central, como no Jeep Willys, podendo ser desconectada pela luva de engate. Para evitar o movimento parasita das semiárvores de tração, diferencial e cardã durante operação 4×2, o carro vinha com cubos de roda-livre AVM na dianteira. A suspensão dianteira se manteve independente como na Kombi, com braços arrastados superpostos e feixes de lâminas de torção, mas recebendo as duas semiárvores por conta da tração dianteira.
Como dito, em 1980 a Dacunha lançou o Jeg 4×4, aproveitando o esquema que havia sido desenvolvido para a Kombi com tração integral e com as adequações necessárias para o entre-eixos encurtado. O Jeg 4×4 mais uma vez surpreendeu nos testes feitos pela Quatro Rodas a ponto de o comentário sobre o teste dizer que: “a demonstração das qualidades do Jeg com tração nas quatro rodas chega a ser assustadora”. Seguem fotos de detalhes um Jeg 4×4 (Fotos: Quatro Rodas):
Abaixo fotos de um Jeg 4×4 sobrevivente (Fotos pesquisa na internet):
Com o novo modelo, a empresa tentou investir nas exportações. Ainda em 1980 um Jeg 4×4 foi embarcado para a República Federal da Alemanha para ser testado pelo exército daquele país — segundo representantes da Dacunha seu carro foi aprovado nos testes. As Forças Armadas alemãs necessitavam renovar 1.200 utilitários de sua frota. Também havia planos de venda de 3.500 unidades para a Grã-Bretanha e o Mercado Comum Europeu.
Apesar da expectativa, nenhum grande negócio foi fechado. Para o mercado interno foi projetado e colocado à venda um sistema de transmissão para picapes e caminhões médios e pesados, transformando veículos 4×2 em 4×4, 6×4 ou 6×6 (o equipamento chegou a ser fornecido para a GM, que o utilizou na picape Chevrolet D-20). Na conversão, a Dacunha-QT utilizava caixas de transmissão de produção própria e adquiria eixos de tração e suspensões da Cobrasma, que os fabricava segundo projeto da QT.
Várias revistas especializadas realizaram testes com o Jeg, e a Quatro Rodas ano XVIII Nº 217 agosto 1978 publicou um teste comparativo entre o Jeg, o Gurgel X-12 e o Jeep Willys que eu carreguei no ISSUU em forma de revista, permitindo a sua leitura já que existe um comando que amplia o texto, material original do acervo do Lauro Filippetti. É uma leitura muito interessante com o texto de Claudio Carsughi e fotos de Hiroto Yoshioka:
A falta de estrutura industrial da empresa, aliada à falta de perspectivas de vendas para as Forças Armadas brasileiras, que na época não admitiam veículos com motor traseiro, e a frustração dos projetos de exportação levaram à suspensão da produção do Jeg em 1981.
O número total de unidades fabricadas é impreciso; segundo informações de ex-funcionários da empresa foi superior a 500, poucas delas com tração nas quatro rodas.
Um único exemplar recebeu motor diesel VW e algumas alterações na carroceria: grade e radiador dianteiros (da Kombi), faróis e lanternas quadrados e laterais frisadas para melhor estruturar a lataria. A Dacunha Transportes continuou em operação até 2000, quando vendeu o controle para outra empresa do setor.
Um Jeg 4×2 cuidadosamente restaurado
Muitos tem a curiosidade de conhecer os detalhes do Jeg e, por sorte, a restauração do exemplar de Lauro Filippetti ficou pronta há pouco tempo. Veja algumas fotos desse Jeg e sua plaqueta de identificação:
O local de instalação desta plaqueta de identificação é dentro do porta-malas, que é dianteiro:
Vista do porta-malas, podendo-se ver o local do estepe e do tanque de combustível:
Vista 3/4 de frente do Jeg de Lauro Filippetti; o VEMP não chegou a ter tampa do porta-malas
Vista da traseira do Jeg:
Abrindo a tampa do motor pode-se ver o motor Volkswagen arrefecido a ar:
Vistas laterais deste Jeg:
Interior bem simples
Alguns detalhes mecânicos:
Lauro Filippetti conta como foi
Encontrei o carro abandonado em um sítio, mas apesar do estado deplorável estava com muitos dos componentes de época conservados. Trouxe-o para São Bernardo do Campo, para uma oficina próxima de casa, onde um funileiro conhecido de nome Valter, ou “Robô” para os mais chegados, iniciou os reparos. Todo o restauro durou dois anos e foi tudo raspado a zero para ser reparado como estivesse saindo de fábrica, pois eu queria autenticidade preservada.
O local da compra estava abandonado em Itapira, para ter uma ideia, as caixas de redução das rodas estavam completamente secas e com terra, não entendemos como funcionava assim. Abaixo fotos das caixas de redução como foram encontradas:
Retirando de lá foi direto para a oficina.
O que mais gostava nos modelos iniciais da produção deles era o fato de separar a carroceria do chassi, pois após 1978 a Dacunha começou a fazer o chassi soldado como nas Kombis.
Por sorte encontrei o padrão de cores originais perdido em uma casa de tintas. Este catálogo mostrava o tom de vermelho, que era o mesmo das Kombis antigas, a saber: vermelho Vila Velha. Com isto pude recuperar a cor original de meu Jeg. Abaixo algumas fotos da restauração:
FICHA TÉCNICA JEG | |||
MOTOR | |||
Tipo | Quatro cilindros boxer, carcaça de alumínio, cilindros de ferro fundido, cabeçotes de alumínio, comando de válvulas na carcaça, engrenagens, válvulas no cabeçote, duas válvulas por cilindro, acionamento por varetas e balancins, ignição por bateria e ruptor com distribuidor, arrefecimento ar ar forçado por turbina radial, gasolina | ||
Diâmetro x curso (mm) | 85,5 x 69 | ||
Cilindrada (cm³) | 1.585 | ||
Taxa de compressão (:1) | 7,2 | ||
Potência líquida máxima (cv/rpm) | 48/4.000 | ||
Torque líquido máximo (m·kjf/rpm) | 10,1/2.400 | ||
Formação de mistura | Carburador único Solex H30 PIC | ||
Alimentação | Bomba de combustível mecânica | ||
Comprimento de biela (mm) | 132 | ||
Relação r/l | 0,26 | ||
SISTEMA ELÉTRICO | |||
Tensão (V) | 12 | ||
Bateria (A·h) | 36 | ||
Dínamo (A) | 25 | ||
TRANSMISSÃO | |||
Tipo | Transeixo manual com 4 marchas sincronizadas mais ré, tração 4×2 temporária, embreagem monodisco a seco de comando mecânico | ||
Relações das marchas (:1) | 1ª 3,80; 2ª 2,06; 3ª 1,32; 4ª 0,89; ré 3,88 | ||
Relação de diferencial (:1) | 4,125 | ||
Relação das caixas redutoras nos cubos de roda traseira (:1) | 1,26 | ||
SUSPENSÃO | |||
Dianteira | Independente, braços arrastados superpostos, feixe de lâminas de torção, amortecedor hidráulico e barra antirrolagem | ||
Traseira | Independente, braço semiarrastado e amortecedor hidráulico | ||
DIREÇÃO | |||
Caixa de direção | Setor e sem-fim com amortecedor hidráulico | ||
FREIOS | |||
Dianteiros e traseiros | Tambor | ||
De estacionamento | Ação sobre as rodas traseiras por alavanca entre os bancos com sistema de atuação selecionável por alavancas individuais | ||
RODAS E PNEUS | |||
Rodas | Aço, 5,5J x 15 | ||
Pneus | 7.35-15 tipo cidade e campo | ||
CONSTRUÇÃO | |||
Arquitetura | Monobloco em aço, conversível, duas portas, cinco lugares | ||
DIMENSÕES (mm) | |||
Comprimento | 3.300 | ||
Largura sem/com espelho | 1.445/n.d | ||
Altura | 1.700 | ||
Distância entre eixos | 2.000 | ||
Bitola dianteira/traseira | 1.387/1.436 | ||
Distância m[inima do solo | 300 | ||
CAPACIDADES E PESOS | |||
Porta-malas (L) | n.d. | ||
Tanque de combustível (L) | 55 | ||
Peso em ordem de marcha (kg) | 930 | ||
CONSUMO DE COMBUSTÍVEL | |||
Médio (km/L) | 7,9 | ||
DESEMPENHO | |||
Velocidade máxima (km/h) | 98 | ||
Aceleração 0-100 km/h (s) | n.d. |
Com esta parte 2 concluímos o trabalho que versou sobre o VEMP e o Jeg, foi feita a reconstituição possível da história destes veículos, contando inclusive com a participação do Sr. Guenter Hix, a quem agradeço novamente, contando uma história que, caso contrário, estaria perdida.
Mas a pesquisa permanece e se você tiver algo a acrescentar não deixe de nos comunicar.
AG
Na preparação da parte 2 desta matéria foram usados, além das informações de meu arquivo pessoal, as informações de muita pesquisa na internet. Importante foi o conteúdo do site lamaeoffroad.blogspot, que apesar de não estar mais disponível inspirou várias matérias sobre o Jeg. Trabalho do Paulo Sérgio Coimbra da Silva – Jipe JEG – um “militar” à “paisana”. Wikipédia, reportagens antigas da Quatro Rodas, Motor 3, etc…
Um agradecimento ao Lauro Filippetti que colaborou inclusive com as fotos de seu Jeg que foi cuidadosamente restaurado.
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
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