Desde os primórdios da era do automóvel, destemidos pilotos pensam o quão rápido conseguem ir nestas incríveis máquinas. Para quem até então só tinha experiências de velocidade em cavalos e trens, a velocidade de um carro era um mundo inteiramente novo e cheio de potencial. Era a velocidade livre, fora dos trilhos, individual.
Antes mesmo do calendário virar para o ano 1900, o primeiro recorde de velocidade em um automóvel foi registrado pelo francês Gaston de Chassaloup-Laubat. A bordo de um modelo Jeantaud, a marca oficial foi de 63 km/h, registrada no dia 18 de dezembro de 1898. E, diga-se de passagem, o Jeantaud era um carro elétrico. E seus rivais também eram. Os recordes de velocidade até 1902 era todos de carros elétricos, chegando até os 100 km/h.
Além das provas para ver qual era o carro mais rápido do mundo, os pilotos disputavam corridas entre dois pontos, por exemplo, duas cidades, e depois em traçados fechados, para ver quem completava mais voltas primeiro.
O circuito de La Sarthe, nome oficial do traçado das 24 Horas de Le Mans, é um caso que junta um pouco dos dois tipos de corrida, pois é um circuito fechado onde se completam voltas iguais, mas que passa por trechos de estradas ligando as vilas de Arnage, Le Mans e Mulsanne. E graças a estrada que vai de Le Mans a Mulsanne, um retão de seis quilômetros chamado Ligne Droite des Hunaudières (traduzindo literalmente: Linha Reta Hunaudières, sendo Hunaudières o nome do trecho local) e hoje chamada apenas D338 pelo departamento de tráfego francês, foi palco de grandes disputas.
Desde sua criação, muitos pilotos e equipes participavam da corrida francesa pelo circuito de alta velocidade que proporciona grandes emoções que poucos do mundo teriam acesso. Carros eram projetados especialmente para esta corrida, pois a alta velocidade pedia um desenho diferenciado, uma vez que seis quilômetros de reta facilmente dariam vantagem aos carros mais velozes.
Já nos anos 1930, muitos carros passavam facilmente dos 180 km/h naquele retão. Os Bentley Blowers, que contamos a história aqui no AE, passavam dos 200 km/h. Isso numa época em que cinto de segurança nem existia. Com a evolução dos carros ao longo do tempo, as velocidades foram aumentando gradativamente. Mesmo nos anos 1950, quando os carros não tinham nenhum refinamento de segurança como hoje em dia, as velocidades já beiravam os 300 km/h e continuavam aumentando.
Na época dos carros turbo do Grupo C, já nos anos 1980, a velocidade de um bom modelo na reta Mulsanne passava de 370 km/h. Neste tempo, a Mulsanne ainda era um retão e os carros eram mais sofisticados, com motores de 800 cv e carrocerias aerodinâmicas que (geralmente) os seguravam no chão com estabilidade.
O francês Gérard Welter (20/10/1942-31/01/2018) tinha uma equipe, praticamente amadora, com uma forte ligação com a Peugeot. Contamos um pouco desta história anteriormente aqui no AE de como ele representou a marca francesa em Le Mans utilizando os motores em diversos carros. Seu modesto time conseguia ser competitivo, pois os carros eram rápidos, mas ao longo do tempo os competidores, muitos apoiados por grandes fábricas com grandes orçamentos como Porsche, Jaguar, Nissan e Mercedes-Benz, se distanciaram em vantagem.
O melhor evento da equipe de Welter foi na corrida de 1984, onde conseguiu liderar a prova no começo por algum tempo, até que problemas nos freios obrigassem o carro a abandonar a prova. Este desempenho já apontava que, mesmo com orçamento limitado, a Welter Racing tinha potencial.
Para conseguir se manter na competição, Welter precisava de mais recursos do que tinha, e sabia que a única forma de conseguir isto era através de patrocínio, e patrocínio bom só aparece se existe visibilidade. Como seus carros, mesmo que bem construídos e velozes, já estavam defasados perante os carros de fábrica. O que ele poderia fazer era tentar outra forma de destaque que atraísse os olhos das empresas dispostas a bancar os custos da equipe.
Na época, os carros eram cada vez mais rápidos, e já beiravam os 400 km/h. Este número mágico poderia ser uma boa forma de propaganda da equipe. Ser a primeira equipe a bater a marca dos 400 com certeza traria retorno de mídia e, consequentemente, poderia trazer recursos de patrocínio. Este seria então o objetivo de Welter. Nascia assim o Projeto 400.
Em 1987 viria a primeira tentativa da WM de chegar na marca e isto foi feito com o modelo P87, que era um P86 do ano anterior bem modificado. Para se atingir altas velocidades o mandatório é ter o mínimo de arrasto aerodinâmico possível. O estudo da aerodinâmica é uma ciência dinâmica, como o próprio nome diz. A cada nova descoberta, os conceitos que foram utilizados para projetar um carro mudam, e o desenho evolui.
Como Welter tinha muito contato com a Peugeot, ele conseguiu ajuda da empresa para usar um túnel de vento em Paris. Durante cinco meses, todos os domingos eram gastos no túnel para moldar o que seria a carenagem do carro. O desenho tinha que ter mínimo de aberturas possíveis na carroceria para ter um baixo coeficiente de arrasto (Cx), além de ser compacto para ter uma pequena área frontal. O arrasto total depende diretamente destes dois fatores.
Depois de muitas interações no túnel, a equipe conseguiu um ótimo coeficiente de arrasto na ordem de 0,25. Para se ter uma referência, os concorrentes da época estavam beirando 0,35. Quanto menor o número, melhor. Parece pouco, mas é uma grande diferença quando se fala em andar a 400 km/h. A potência do motor precisa crescer exponencialmente para vencer as forças aerodinâmicas, então qualquer ganho é bem-vindo. O downforce tinha que ser preservado para evitar que o carro fosse instável em altas velocidade.
Um número que mostra bem a relação entre arrasto e downforce é o fator L/D (L de Lift ou sustentação, que é o inverso do downforce e puxa o carro para cima; D de Drag ou arrasto). Este termo é muito usado na aviação para comparar a capacidade de gerar força de sustentação em uma asa ou um avião completo. Quanto maior o número, mais força vertical o carro gera e menos ele penetra com facilidade no ar. O P87 tinha um fator L/D perto de 2,0:1 enquanto que o Jaguar XJR-8LM tinha o fator de 2,76:1 e o Sauber-Mercedes tinha fator igual a 3,0:1.
Para chegar neste resultado, a frente do carro foi toda redesenhada. Os radiadores passaram do bico para as laterais do cockpit. Isto permite fazer a frente bem baixa e suave. Para compensar a nova posição, o ar foi canalizado de pequenas entradas no bico, passando pela suspensão, desviando do habitáculo e chegando nos radiadores. Os Porsches 956 já tinham radiadores laterais, mas a tomada de ar era feita pela porta, com grandes entradas. Isto era eficaz para o radiador, mas a equipe francesa entendeu que isto geraria mais arrasto do que captar o ar pela frente do carro.
A carroceria foi toda alargada em relação ao carro anterior, mas a bitola permaneceu a mesma. O conceito por trás desta alteração é de manter as rodas dianteiras o mais distante do fluxo de ar das laterais do carro. Com as rodas dianteiras bem afastadas do ar lateral, a influência dela girando afetava menos o fluxo ao redor do carro e controla-se melhor o downforce gerado na dianteira. Isto poderia gerar algum problema de resfriamento do freio, mas como o carro era feito para acelerar e não parar, o time seguiu em frente. As rodas traseiras eram totalmente carenadas, recurso já usado por outras equipes.
O assoalho foi desenhado para canalizar o ar por debaixo do carro de forma eficiente, criando downforce suficiente para estabilizar o carro, mas sem aumentar significativamente o arrasto. Era o conceito do fundo plano com venturis traseiros, bem parecido com o que contamos aqui no caso dos carros da F-1. Os escapamentos do motor eram direcionados para o extrator traseiro com o intuito de aumentar sua eficiência, técnica que depois ficou conhecida na F-1 como o blown difuser da Brawn GP e Red Bull.
Para empurrar o P87, o motor usado era baseado no Peugeot PRV V-6 de 2,8-litros. Este é o mesmo motor usado em boa parte da linha PSA e também havia sido usado no DeLorean DMC-12. No caso do motor de corrida, ele tinha gerenciamento eletrônico e recebeu dois turbos, aumentando a potência para perto de 800 cv.
O carro começou a andar nos treinos livres da 24 Horas de 1987. Mesmo com problemas no comando eletrônico do motor, uma novidade para a equipe, o carro passou na Mulsanne a 356 km/h. Não eram os 400 km/h tão sonhados, mas era um bom número para um carro com problemas no motor.
Após ajustes e novas configurações, Welter e Gerard Clabeaux, o chefe de equipe responsável pelo desempenho dos carros, organizaram um teste de alta velocidade para o P87. Como o circuito francês não podia ser utilizado, o teste foi feito em um lugar pouco provável: na estrada. A equipe conseguiu autorização para usar um trecho ainda não liberado para o uso rodoviário na estrada que ligava Reims a Sain Quentin, perto de Laon. Com Francois Migault ao volante, o P87 biturbo passou pelo radar a 416 km/h. Era a notícia que a equipe precisava. O carro era capaz de passar dos 400 km/h.
Os estudos no túnel de vento de Paris estavam corretos. O projeto da carroceria alargada, os radiadores laterais, a asa traseira sem quase nenhum ângulo de incidência funcionavam perfeitamente. De volta ao circuito de La Sarthe para os treinos da corrida, o piloto Roger Dorchy passou na Mulsanne a 407 km/h, medidos no radar particular da equipe, porém o radar oficial da ACO (Automobile Club de l’Ouest, organização da corrida) marcava apenas 381 km/h. Já era um novo recorde, mas não chegaram no número mágico dos 400.
Durante a corrida de 1987, os P87 não duraram mais do que algumas voltas. Os motores não resistiram. Há relatos de que o problema foi a qualidade do combustível usado, fornecido pela organização da prova, e que teria afetado diversos carros durante a corrida inclusive os WM que trabalhavam com o motor no limite, mas nunca assumiram nada.
Em 1988, a equipe WM voltaria a Le Mans com dois carros, um P87 revisado e um novo modelo P88, com modificações aerodinâmicas, suspensão nova e o motor aumentado para 3 litros, agora gerando mais de 900 cv. Nos treinos, o novo P88 teria passado novamente dos 400 km/h no radar da equipe, mas a medição oficial não reconhecia a velocidade, apenas seus dados abaixo de 390 km/h.
Welter foi atrás da organização para entender o que estava acontecendo, e o possível problema era que o sistema de radares da ACO, fornecido pela Metstar, a mesma empresa que fornecia os radares para a polícia francesa, estava sendo afetado pelas ondas de vibração dos carros, muito mais altas e potentes do que nos carros de rua a baixas velocidades. Para a corrida, a Metstar usaria uma geração mais moderna dos seus radares, tentando evitar o interferência dos carros.
Durante a corrida, o P87 teve problemas na transmissão e o P88 estava tendo problemas no sistema de gerenciamento do motor. Depois de quase três horas parado no box, o sistema todo foi trocado e o carro voltou para a pista com Roger Dorchy ao volante. Depois de algumas voltas sem problemas, o novo sistema de radar marcava que o carro passava a 398 km/h na reta. A equipe passou a informação para Roger, que aumentou a pressão dos turbos pelos comandos internos que os pilotos ajustavam e em poucas passagens o número chegou, agora pelo radar oficial da corrida: 407 km/h.
Este era o primeiro carro a oficialmente passar de 400 km/h na Mulsanne. E Welter conseguiu o que queria, gravar o nome da sua equipe na história como o carro de corrida mais rápido do mundo.
No ano seguinte, com o recorde já registrado, a equipe voltou a focar em ter boas posições na corrida, com um carro mais equilibrado e que pudesse acompanhar os demais não só no retão, mas nas curvas também. O retorno da propaganda que conseguiu com o recorde não foi o esperado, e pouca coisa conseguiu evoluir em termos de investimento em um novo carro, ou melhorias no P88.
Para 1989, a WM veio com o P489, uma versão modificada do 88. Infelizmente um dos carros foi destruído nos treinos e o outro carro na corrida, com 110 voltas completadas. Os carros não eram competitivos, o melhor deles havia conseguido apenas o 22º melhor tempo nos treinos. Este foi o momento em que Welter decidiu encerrar sua empreitada em Le Mans. Não era mesmo possível acompanhar os Porsches, Mercedes e Jaguares com seus orçamentos estratosféricos.
O circuito de La Sarthe teve seu traçado alterado em 1990, com a adição das duas chicanes na Mulsanne, como uma medida de contenção de velocidade e segurança. Os organizadores estavam muito preocupados com carros passando a 400 km/h em um trecho de estrada, e o histórico de acidentes em Le Mans não era favorável. Certa vez, o brasileiro Maurizio Sala, experiente piloto com histórico em Le Mans, contou que uma das experiências mais intensas que ele teve foi correr à noite em Le Mans, a mais de 380 km/h com o Mazda 787B, na chuva, e ser ultrapassado por um Mercedes provavelmente perto dos 400 km/h.
A marca da WM seria consolidada como imbatível a partir deste ponto, pelo menos por enquanto com o atual traçado da pista. Depois da adição das duas chicanes na Mulsanne, a velocidade máxima caiu para a perto dos 360 km/h. A velocidade que eles divulgaram como a obtida foi de 405 km/h, uma referência ao recém lançado Peugeot 405, como forma de ajudar na promoção do novo produto da marca que foi o coração do carro recordista.
Em função da nova característica da pista, nenhuma outra equipe tentou alcançar altas velocidades como o P88 conseguiu. Alguns projetos especiais correram na Garagem 56, vaga no grid destinada a equipes com projetos de inovação e tecnologia, como foi o Nissan DeltaWing em 2012.
Como curiosidade, abaixo temos um gráfico que mostra a evolução da velocidade máxima dos carros em Le Mans, passando pelo auge na época do P88 e dos Mercedes turbo, e voltando ao patamar dos 350 km/h dos dias atuais. O trecho de reta contínua hoje é mais curto, mas a aceleração dos carros é maior, o que permite que cheguem a estas marcas.
Vemos uma certa estabilidade nos números dos últimos anos, que podemos atribuir ao traçado da pista sem alterações e o regulamento técnico que coloca certas limitações que não mudaram muito ano a ano. Com a propulsão híbrida, os carros ganharam muita aceleração, mas a velocidade máxima não mudou. É até comum ter velocidades máximas registradas por carros da categoria P1 não híbrido em muitas pistas da temporada da WEC.
O feito da equipe de Welter no fim dos anos 1980 foi um marco que dificilmente será confrontado daqui para frente. A segurança e as limitações técnicas fazem com que velocidades perto dos 400 km/h não sejam mais realistas.
Bons tempos em que as equipes podiam fazer carros para realmente chegarem ao limite.
MB