Dizem que a necessidade é a mãe das invenções. Líquido e certo. Porém, muitas vezes a questão é definir quem é o pai. Seria a lógica de resolver totalmente o problema trazido pela necessidade ou seria apenas a ideia de solução que basta para definir quem inventou o quê?
Décadas atrás, bombeiros não conseguiam entrar em alguns prédios em chamas por causa da intoxicação. Alguém inventou uma máscara que a evitava, mas, em contrapartida, eles não conseguiam respirar direito e podiam morrer por asfixia. Outro alguém, pegou a ideia original, aprimorou com dutos que permitiam aspirar o ar limpo que fica nas partes mais próximas do chão. Este é o princípio das máscaras de gás dos bombeiros. De quem é o mérito?
Assim é com diversas invenções, e que veem sendo aprimoradas ao longo de décadas e aproveitando tecnologias de outras invenções. A lógica originalmente aplicada à algumas invenções até atendia a necessidade, mas materiais e tecnologia da época não permitiam total eficácia e até levavam à obsolescência da invenção. Se merece crédito quem teve ideia e lógica originais, também é de se parabenizar quem as aprimorou a ponto de superar, em muito, a eficiência inicial.
Assim foi com o amortecedor de suspensão de veículos, cuja necessidade, na verdade, surgiu antes de eles serem automotores, mas popularizou-se com a era automobilística.
Bem antes disso, muitos carroceiros não gostavam dos solavancos e rigidez por que passam todo dia. Já os mais abastados não toleravam o chacoalhar das suas carruagens embora estas, diferente das carroças, já tivessem os eixos separados da carroceria e ligados por elementos elásticos. Percebida a necessidade, surgiram as ideias e soluções; muitas em paralelo, mas nem sempre práticas.
Um objetivo, diversas soluções
Já tratei em diversos artigos como o amortecedor age na suspensão e na dinâmica veicular, mas não comentei sobre ele em si, sua evolução e importância na indústria.
Sua função é domar as inquietudes da mola proporcionando harmonia no trabalho da suspensão. Formam um casal eternizado pelas aplicações clássicas na popularização do automóvel.
Algo claramente perceptível, mas não tanto no início da era automotora, é que o seu trabalho para máxima eficácia deve ser nos dois sentidos do movimento da suspensão e não pode ser linear, mas condicionado à velocidade desse movimento. Como as rodas devem ficar o mais possível em contato com o solo, ao mesmo tempo que a carroceria permaneça filtrada das oscilações em todas as condições de piso e velocidade do veículo, a velocidade do amortecimento varia, e nisto reside sua maior dificuldade de projeto.
Na verdade, o que mais importa é a velocidade e progressividade do amortecimento, e não a do veículo. Em piso liso, com poucas e espaçadas irregularidades, um amortecimento mais rígido se adéqua à necessidade de controle da roda e da carroceria, mesmo se a velocidade do veículo aumentar. Ao contrário, trafegando em pisos irregulares mesmo que a baixas velocidades, o veículo seria chacoalhado se a velocidade de amortecimento (e sua rigidez nas cargas) não fosse aumentando progressivamente com o aumento da frequência das irregularidades. Chegar nisso foi mais complicado do que parece.
De fricção, tipo tesoura
Em 1898, o ciclista francês J.M.M. Truffault aplicou no garfo de sua bicicleta uma suspensão e nela um dispositivo para restringir as oscilações. Nascia assim o primeiro invento com essa finalidade.
Consistia em duas hastes em forma de tesoura unidas por um eixo que permitia regular a rigidez da fricção dos discos (de bronze e couro embebidos em óleo) que ficavam pressionados (por uma mola) entre essas duas hastes.
A versão para veículos automotores surgiria entre 1900 e 1903 pelas mãos do próprio Truffault, que logo percebeu a dimensão de seu invento licenciando-o para fabricantes de veículos na Europa; entre elas, Mor e Peugeot. Mas foi o americano E. V. Hartford o primeiro a aplicar em 1904 em sua fábrica nos EUA.
Inercial de cinta
Em paralelo, o americano Claud Hanscomb Foster desenvolvia um dispositivo (patenteado em 1914) que amortecia os movimentos de distensão do feixe de lâminas através da fricção a seco de uma cinta de couro envolvendo e comprimindo uma pequena mola espiral no corpo do dispositivo. Por ter um desempenho até aceitável e ser leve e barato, teve ampla aceitação. Produzido pelo próprio inventor em sua fábrica, a Gabriel, ficou conhecido por Gabriel Snubber.
Como o feixe de lâminas era largamente empregado nas décadas iniciais da indústria, e tinha já em si um amortecimento pela histerese do atrito entre as lâminas, soluções simples como estas de fricção e de cinta atendiam relativamente bem até que se popularizou o uso de molas helicoidais.
Primeiros hidráulicos
Credita-se a C. L. Horock a primeira aplicação do princípio hidráulico em 1901, mas com ação apenas em um sentido de movimento da suspensão. Parece não ter tido sucesso, pois não constam registros de aplicação e produção em escala comercial.
Já o francês M. Houdaille criou em 1908 a primeira versão hidráulica de dupla ação que se tem registro de uso, o de êmbolo rotativo. Dentro de um corpo cilíndrico, um êmbolo imerso em óleo e ligado a um braço (e este ligado ao feixe de lâminas) gira por conta do movimento de distensão e compressão da mola. A passagem do óleo pelo êmbolo cria assim a restrição freando os movimentos. Esse amortecedor é conhecido também por ação de joelho (knee action) e tem bastante emprego nas portas com fechamento por mola.
Versões hidráulicas foram surgindo e aplicando o princípio de alavanca ligada ao feixe de lâminas, como o de acionamento (por balancim) do pistão deslizante em corpo cheio de óleo. Também foram incorporados à suspensão como o tipo Lancia onde o cilindro é fixo e, dentro dele, o pistão se move conforme a movimentação da roda.
As primeiras versões hidráulicas tinham a vantagem de exigir pouco espaço para montagem, mas a desvantagem de serem mais pesadas e complexas que os outros conceitos não hidráulicos, o que dificultava a produção e o custo. Além disso, o desenho e a configuração de corpo e alavancas não favorecia a distribuição direta dos esforços envolvidos. Na verdade, relações de 1 para 5 eram comuns; ou seja, forças cinco vezes maiores nos componentes internos devido aos momentos dos braços de alavanca. Além disso, folgas nas fixações prejudicavam o funcionamento do conjunto.
Os hidráulicos tubulares telescópicos
Quem observar como é o movimento de abertura e fechamento dos telescópios logo entende por que os amortecedores tubulares ganharam o sufixo telescópico. Algumas referências históricas creditam C. L. Horock como autor dessa denominação; outras discordam e remetem à segunda metade da década de 1920 a patente do tubular telescópico para a companhia americana Armstrong Ltd.
Outros historiadores afirmam que foi a também americana Monroe Auto Equipment Co. na década de 1930 que realmente patenteou, produziu e comercializou o conceito bitubular que passaria a ser largamente aplicado na indústria automobilística. E de que é creditado à Hudson Motor Car Company a produção do primeiro veículo americano utilizando-o, em 1932.
Mas o que importa é o porquê do sistema (advindo dos absorvedores de impacto dos trens de aterrissagem) baseado na resistência à passagem de fluído por orifícios, faria (e faz) tanto sucesso. É porque é o princípio que permite chegar mais próximo daquela desejada variação de velocidade e progressividade de amortecimento comentada no início.
Se a questão é dissipar a energia cinética e inercial da suspensão em movimento, então, o mais rápido é transformá-la em calor; e para isso é melhor que a relação das forças seja o mais próxima de 1 para 1 (mesma amplitude) entre o que ocorre no amortecedor e o que vem dos movimentos da suspensão. Aqui a grande vantagem do telescópico, pois suas fixações estão na mesma linha na qual ele abre e fecha; não há decomposição e multiplicação de forças, como nos de alavancas.
A desvantagem? Claro, existe, é o tamanho quando totalmente aberto; mas isso não desencorajou os aprimoramentos que viriam a partir já de suas primeiras aplicações.
Evolução bem ampla
Embora essa tendência de projeto só tenha se firmado no pós-Segunda Guerra Mundial, as melhorias e a diversificação logo se fizeram presentes. A larga escala de produção de veículos tratou de expandir as ideias e projetos usando o conceito básico do hidráulico tubular telescópico até os dias de hoje.
Logo de início, o desmembramento em bitubulares e monotubulares, este último o hidropneumático (ou a gás, como é mais conhecido) patenteado por Christian Bourcier DeCärbon em 1953, e fabricado pela companhia com seu nome.
Outras variantes e aplicações vieram ao mundo automobilístico, tais como o amortecedor de direção, a mola a gás para tampas e capôs, o bitubular pressurizado a gás, o amortecedor integrado ao bolsão de ar, o amortecedor com regulagem das válvulas de distensão e de fechamento (por sistemas manuais ou por comando eletrônico) e até mesmo a alteração das cargas agindo por eletricidade na densidade de fluido do tipo magneto-reológico.
A evolução das suspensões de simples para inteligentes, de passivas para semi e totalmente ativas, também só está no nível em que está graças à flexibilidade que o projeto hidráulico permite.
Entrar em detalhes de toda essa evolução ao longo de mais de um século exigiria espaço de muitos artigos; vários deles já escritos e publicados aqui no AE.
Economia e vida
Se lá no início o hidráulico bitubular telescópico pesava 3 kg, com preço de US$ 100 durava algo como 10.000 km (custando US$ 0,01/km), quase cem anos depois pesa 1,5 kg, com preço de US$ 50, mas tem vida ao redor de 100.000 km (custando US$ 0,0005/km). Bom, não é? Vale lembrar que também há inflação em dólares. Em tese, nada se inventou, “apenas” desenvolveu-se (bem) a ideia original.
Boa contribuição para esses resultados foi a redução das forças de atrito. Se os de fricção tipo tesoura geravam esforços ao redor de 18 kgf nos idos de 1920, os de cinta ficavam nos 16 kgf nos anos 1930, e os hidráulicos de alavancas produziam algo como 14 kgf lá pelos anos 1940.
O hidráulico telescópico nasceu com atrito interno por volta de 12 kgf, valor que o monotubular reduziu para 10 kgf nos anos 1960. A partir daí, os telescópicos foram se aprimorando em materiais, selos de vedação, tubos e pistões (principalmente das paredes), fluidos e borrachas utilizadas a ponto de reduzir os atritos internos para valores que, dez anos atrás (2010), já estavam ao redor de apenas 3 kgf.
A importância disto pode ser percebida na porcentagem de aplicação do bitubular estrutural na suspensão dianteira dos mais de 95 milhões de veículos no mercado mundial produzidos anualmente; nada menos que 85% são do tipo McPherson.
No entanto, se as suspensões iniciaram seu processo de inteligência lá pelos anos 1980 justamente pelos amortecedores variáveis, as expectativas de evolução não se tornaram realidade.
Era esperado que vinte anos depois a presença estivesse entre 4% e 6% da produção; na realidade foi ao redor de apenas 2%. Se a expectativa para 2010 era de algo como 12%, na verdade não passou de 4%.
A sofisticação tecnológica exigida tornou muito cara a suspensão eletrônica como um todo; a aplicação continua restrita aà nichos.
Por isso, o bitubular ainda é e continuará sendo um grande sucesso. Percebe-se que ele domou não só a mola, mas o mercado também.
MP
Este artigo teve a colaboração de material fornecido pela Proação & Jorotu dos engenheiros Pedro Geraldo Rossato e José Roberto Turrini, a quem agradeço.
Mário Pinheiro escreve a coluna “Pelos retrovisores” para o AE quinzenalmente às sextas-feiras.