“Os caminhões mais rápido do mundo” era como Ettore Bugatti descrevia os carros da Bentley, em alusão aos enormes modelos ingleses se comparados com os pequenos e leves Bugattis. Era uma disputa de Davi e Golias entre os dois nas corridas dos anos 20 e 30. Os Bentleys, grandes e robustos, contavam com grandes motores potentes, enquanto que os Bugattis traziam o refinamento de um pacote de leveza e agilidade.
Efetivamente em provas de longa duração, os grandes ingleses levavam uma certa vantagem por contarem com uma durabilidade maior. Os Bugattis eram rápidos, mas estavam sempre trabalhando no limite, e qualquer problema mecânico era uma constante ameaça.
A Bentley marcou forte presença no cenário europeu do automobilismo nos anos 20 e foi um dos maiores nomes da década em Le Mans, com nada menos que cinco vitórias nas oito primeiras edições das 24 Horas francesas. Criou grande fama com seus resultados em provas pela Europa e teve até um famoso caso que virou uma espécie de lenda, quando Woolf Barnato, um dos Bentley Boys e nome forte na empresa, apostou que venceria uma corrida contra um trem cruzando o continente.
Depois de mais de setenta anos após a última vitória da Bentley em Le Mans, a marca partiu para uma nova tentativa de triunfar na mais famosa corrida de longa duração do mundo, em uma época que só fabricar carros de passeio velozes e resistentes não significa nada dentro das pistas.
No ano 2000, tornou-se público os planos da empresa em desenvolver um carro de corrida para a temporada de 2001, após décadas longe das pistas. Parte do investimento em um programa de competição vinha do interesse do grupo VW, que havia adquirido a Bentley em 1998, em reformular a imagem da empresa, que num futuro próximo lançaria o modelo Continental GT, o primeiro Bentley criado sob as asas da VW e com técnicas de produção em massa, diferente dos tradicionais modelos fabricados artesanalmente em baixo volume (e altos custos) até então.
A proposta era fazer um protótipo para a categoria principal de Le Mans com chances de vencer a prova na classificação geral. Naquele tempo, a quase totalidade do grid de protótipos era formada por carros com cockpit aberto, incluindo o novo Audi R8 que havia vencido a corrida em 2000. A Bentley optou por fazer um carro de cockpit fechado.
Para uma corrida longa, a escolha certa do tipo de carro em função das escolhas de projeto é crucial. Os carros abertos são mais simples no quesito de construção e permitem uma rápida troca de pilotos durante os pit stops. Os carros fechados, ou também chamados de cupês, são mais aerodinâmicos, mas mais complexos.
O responsável pelo projeto, chamado internamente de Projeto Barnato (homenagem a Woolf Barnato), foi Peter Elleray, que juntamente com o projetista Brian Gush, desenvolveram o carro que foi chamado de EXP Speed 8, em alusão aos clássicos Speed 6 dos anos 20. Os Speed 6 na época tinham motor de seis cilindros em linha, enquanto que o novo carro teria um V-8. Peter havia trabalhado na Fórmula 1 pelas equipes Arrows e Tyrrell e tinha experiência no projeto de componentes aeroespaciais.
Desde o começo do projeto, uma certa injustiça foi lançada sobre o modelo inglês. Era muito comentado, e ainda é, que os Bentleys nada mais eram que Audis R8 fabricados em uma versão cupê. Vamos chegar a este ponto, mas logo de cara, o fato de Elleray ter trabalhado no projeto do Audi R8C (cupê) de 1999 já conspirava a favor desta teoria. Contamos um pouco da história do R8C neste post. Elleray afirmava que era um grande erro estas afirmações. “Existem mais componentes ingleses no Audi do que componentes alemães no Bentley” dizia ele na época.
O desenvolvimento do primeiro carro, chamado internamente apenas de 001, foi feito em boa parte com um protótipo equipado com motor Cosworth V-8 aspirado, pois a Audi não poderia entregar os motores turbo definitivos até o começo do ano de 2001. Não era o ideal, pois os esforços e o calor gerados pelo motor turbo eram consideravelmente maiores, mas, era a única forma de ter um carro rodando. O 001 era um pouco diferente do que viria a ser o carro definitivo de 2001. Era mais largo, com entre-eixos maior, menor balanço traseiro e uma carenagem do motor mais volumosa. No início dos trabalhos, um motor aspirado chegou a ser considerado para o carro definitivo, tanto que o Cosworth nos primeiros testes não era por acaso. Foi cogitado inclusive o uso do motor Volkswagen W-12 que seria novidade na época, mas foi descartada.
Durante o projeto, experiências vindas da equipe Audi e do projeto do R8 eram aplicadas, uma vez que o novo Bentley para 2001 teria o mesmo motor 3,6-litros V-8 biturbo com injeção direta de combustível do Audi, e também seria projetado e criado na mesma fábrica que fez o R8C, o complexo Racing Technology Norfolk, conhecido como RTN.
Mesmo com o R8C não tendo o sucesso esperado, as experiências trazidas foram grandes e válidas para futuros projetos, especialmente da parte que não deu certo, e o novo Bentley seria uma excelente aplicação. O chassi de plástico reforçado com fibra de carbono (carbon fiber reinforced plastic, CFRP) criado para o carro nada teria a ver com o do R8, pois neste tipo de fabricação incorporar um teto não é só soldar uns tubos e chapas no lugar. Toda a estrutura dos tecidos de carbono, junto com estruturas de proteção em caso de capotagem exigidas por regulamento, devem ser feitas de forma única. Um carro fechado precisa de portas, outra grande complicação no projeto, e a abertura das portas também é definida em regulamento da FIA por questões de segurança.
Por questões de regulamento da época, os protótipos cupês tinham algumas diferenças quanto aos demais. Correriam na categoria LMGTP (Le Mans Gran Turismo Prototypes) enquanto que os Audis abertos corriam na categoria LM900. A aerodinâmica era mais favorável no cupê, por conta da fluidez do ar ao redor de uma superfície definida e controlada. Em contrapartida, eram obrigado a correr com pneus mais estreitos (14” de largura contra 16” dos demais). Isto proporcionava uma aderência menor por parte dos pneus, mas por outro lado, reduzia o arrasto aerodinâmico na parte de baixo do carro. Os pneus do EXP eram fornecidos pela Dunlop.
Os pit stops também tinham que ser mais demorados, por conta da maior dificuldade de troca de pilotos, uma forma de forçar as equipes a fazerem tudo em segurança no tempo necessário.
Para a versão de corrida, novamente por conta das diferenças entre o regulamento da LM900 e LMGTP, o motor do Bentley poderia rodar com menos restrição de ar se comparado com o Audi. Isso significava mais potência para o motor, mas mesmo assim, foi um desafio para o acerto do carro, como descobririam nos treinos da corrida.
Brian Gush lideraria os trabalhos de desenvolvimento de chassis e suspensão e Elleray focaria na aerodinâmica, esta que foi criada basicamente em túnel de vento. Peter Elleray e sua equipe trabalharam muito nos modelos físicos em escala 40% reduzida, utilizando o complexo de pesquisa em Emmen, na Suíça. As simulações de computador CFD (computational fluid dynamics, ou dinâmica de fluidos computacional) foram pouco utilizadas, basicamente para poucos componentes, como no projeto da admissão de ar do motor. A maior parte do trabalho foi feito mesmo na prática “à moda antiga”.
A PROVA DE 2001
Na estreia do EXP Speed 8 nos treinos em Le Mans, viu-se um carro muito rápido e capaz de acompanhar os Audis. Dois carros foram inscritos. O carro número 7 era pilotado pelo trio formado por Martin Brundle, Stéphane Ortelli e Guy Smith e o carro 8 pilotado por Andy Wallace, Eric van de Poele e Butch Leitzinger. A estrutura da equipe era dada pelo time da Apex Motorsports de Richard Lloyd, mas oficialmente nomeada de Team Bentley.
Na classificação, entretanto, não conseguiam manter o mesmo ritmo, ficando mais distantes dos Audis, líderes absolutos dos tempos. A opção era trabalhar na estratégia para a corrida e confiar na durabilidade do carro, que tinha se mostrado muito boa nos testes feitos antes de partirem para Le Mans.
No começo da corrida o Bentley #7 conseguiu assumir a liderança da prova, para a surpresa de todos e alegria do time. Mesmo mais lento que os Audis, a estratégia estava bem construída e colocou o carro à frente dos R8.
A corrida teve muita chuva, e uma parte dela conseguiu penetrar na carenagem do Bentley #7 e danificar o sistema de atuadores de troca de marcha. O câmbio ficou travada na sexta marcha e o carro não conseguiu voltar aos boxes. O carro 8 estava tendo indícios do mesmo problema, mas conseguiu chegar aos boxes para substituir o sistema de atuadores e voltar à corrida. Reza a lenda que o problema da água caindo sobre os atuadores foi resolvido com uma garrafa de PET cortada e colada com fita adesiva sobre o sistema.
Ao final da corrida, o carro 8 conseguiu terminar em terceiro lugar na classificação geral, atrás apenas dos R8, um liderado por Tom Kristensen e o segundo por Rinaldo Capello. Mesmo ficando a quinze voltas de diferença do Audi vencedor, o terceiro lugar era um excelente resultado para a Bentley, que vinha com um carro novo nunca antes avaliado em corrida. O objetivo da equipe na época era que pelo menos um carro terminasse entre em dez primeiros, então, foi um sucesso.
Era visível que o desenvolvimento do EXP Speed 8 tinha futuro, mas até que ponto? A estratégia do carro cupê mostrou suas vantagens e desvantagens. Os pilotos gostaram da condição para a parte noturna da corrida, pois o carro fechado era mais confortável, menos cansativo de se pilotar, mas, na chuva, os vidros embaçavam rapidamente.
UMA BREVE MELHORIA PARA 2002
Peter Elleray juntou a experiência da corrida de 2001 com os testes que havia feito durante o desenvolvimento do EXP e entendeu que o projeto do cupê poderia se beneficiar de melhorias, mas iria precisar de um novo desenho. Sabendo disto e com um prazo nas mãos, a equipe optou por correr em 2002 com apenas um carro, recebendo pequenas melhorias, enquanto que o time de projetos refazia o carro para 2003.
Com o passar do tempo e muitas horas de experiências e testes, Elleray notou que os resultados do túnel de vento não estavam batendo com o que era medido na pista. Até aí, já era tarde, pois o carro já estava em Le Mans. A solução seria melhorar o projeto aerodinâmico para o ano seguinte, e já considerar isto na reformulação de 2003. O túnel de vento indicava que o carro teria mais downforce na parte dianteira do que o real apresentou, e isto causava um desequilíbrio no comportamento. Isto é possível por conta de diferenças físicas entre o modelo em escala e o carro real, pois a proporcionalidade dos resultados não é uma linha constante, existe toda uma ciência por trás e às vezes algum detalhe pode gerar uma grande divergência.
A proporção do carro mudou um pouco, com a frente mais curta e a traseira mais longa. Isto foi feito para melhorar o arrasto aerodinâmico do Bentley. Foram adicionadas fendas de saída de ar sobre as rodas, recurso que também colabora com a distribuição de pressão aerodinâmica do carro.
Na prova de 2002, o único Bentley inscrito repetiu o trio que conquistou o pódio no ano anterior (Wallace, van de Poele e Leitzinger). Agora, equipado com o novo motor de 4 litros desenvolvido pela Bentley, o carro poderia ter um desempenho melhor. Os pilotos diziam que em 2001 o carro era difícil de dirigir, especialmente na chuva, pois a linearidade do motor não era boa. O novo 4-litros traria uma melhora neste quesito.
Algumas melhorias aerodinâmicas foram implementadas no carro, como uma correção no balanço da downforce dianteira e traseira que inicialmente o túnel de vento não apontou, e que deixaria o carro mais dócil na pilotagem. A traseira ganhou uma asa diferente, com duas superfícies, possível agora que o balanço estava acertado entre dianteira e traseira.
Nas condições da pista, o carro mais ou menos repetiu o desempenho do ano anterior, sendo o modelo mais rápido depois dos Audis R8 durante a corrida. Os treinos não foram tão bons, mas em ritmo de corrida, o Bentley conseguiu se recuperar. O novo motor de 4 litros realmente melhorou a dirigibilidade do carro, era mais linear.
Ao final da prova, o EXP terminou em quarto lugar, atrás de três R8. Era o fechamento da primeira fase do Bentley de corrida, e agora 2003 estava em vista já com um novo carro a caminho.
2003, O ANO DA VITÓRIA
Peter Elleray já tinha em mente um desenho para a versão 2003 do carro, e pôde colocar em prática agora que tinha uma experiência de dois anos em Le Mans e sabia o que funcionava e, principalmente, o que não funcionava.
Ainda nos testes de túnel de vento da primeira versão do carro, Elleray tinha identificado que o perfil cupê do carro tinha vantagens e desvantagens. Uma das desvantagens era o fato da asa traseira ser mais obstruída pela cabine do que em um carro aberto.
Os testes, inclusive com um modelo de carro aberto para comparativo, mostrou que o resultado final em termos de arrasto aerodinâmico era similar entre o carro aberto e o carro fechado. A diferença é que no carro fechado é possível controlar melhor o ar passa ao redor do carro, mas é uma tarefa mais árdua.
A equipe identificou uma mudança de layout do carro que era necessária para aprimorar a asa traseira, pois no caso dos carros fechados, o regulamento exigia que asa traseira fosse mais baixa, como forma de “atrapalhar” para que o carro não levasse vantagem se comparado aos carros abertos.
A solução para a versão de 2003 foi deslocar o cockpit o mais para frente (e mais estreito) possível e a asa traseira o mais para trás possível, ajudando a limpar o fluxo de ar até chegar na asa. Refinamentos gerais foram feitos em toda a superfície do carro com base nas experiências anteriores.
Um ponto curioso é que nos dois carros que foram inscritos, cada um possuía uma configuração aerodinâmica diferente. A asa traseira de um carro tinha fixações laterais mais externas, duplas, enquanto que no outro era uma fixação simples. A dupla dava um pouco mais de estabilidade em velocidade, mas só agradou o time de um dos carros. Desta forma, apenas um deles foi montado com esta configuração.
Outra grande mudança foi a troca dos pneus Dunlop para os Michelin, fornecedor corrente dos Audis. A Michelin já tinha uma grande experiência com os protótipos de ponta de Le Mans, mas o desenvolvimento de pneus especiais para o Speed 8 foi uma novidade. Os pneus ajudaram muito no equilíbrio do carro, com uma melhor capacidade de tração e estabilidade que os carros dos anos anteriores.
Uma importante mudança foi a equipe responsável pela organização e estrutura do time, que agora seria entregue para a Joest Racing. A Joest é uma veterana em Le Mans, e a equipe oficial da Audi nos anos anteriores. Em 2003, os Audis R8 presentes em Le Mans seriam de equipes particulares, uma vez que a equipe oficial não participaria.
O pessoal da equipe oficial foi repassado para a Bentley, inclusive os pilotos. No carro 7 correriam Rinaldo Capello, Tom Kristensen e Guy Smith e no carro 8m os pilotos seriam Mark Blundell, Johnny Herbert e David Brabham. Destes, Kristensen, Herbert e Blundell já haviam vencido em Le Mans.
Direto nos treinos de classificação, o novo Speed 8 (sem o EXP no nome) era mais o rápido na pista, consideravelmente mais rápido. A pole do carro 7 foi obtida com mais de dois segundos de vantagem para o segundo Bentley e quase três segundos de vantagem para o primeiro Audi.
A corrida foi liderada praticamente de ponta a ponta pelo carro 7. O carro 8 teve alguns pequenos problemas ao longo da corrida mas que não o impediu de terminar em segundo, a duas voltas do vencedor, mas ainda três voltas à frente do primeiro R8.
Com certeza a força da equipe Joest por trás do Speed 8 fez uma diferença positiva. O know-how da equipe em Le Mans somado ao time de pilotos experientes, incluindo o jovem Guy Smith que cruzou a linha de chegada com o carro 7, ele que acompanhou todo o desenvolvimento do Bentley desde os primeiros testes, colaborou para o excelente resultado.
O carro era de fato superior à concorrência, mas não tira o mérito da vitória. Foi um carro reprojetado de um ano para o outro, praticamente do zero, e que conseguiu superar todos os concorrentes. Mesmo para um conjunto formado por uma equipe como a Joest e pilotos como Kristensen e Capello, o fato do carro não ter apresentado nenhum problema é um fato raro. Aliás, desde a primeira tentativa em 2001, exceto pelos atuadores da transmissão danificados pela chuva, os Bentleys não tiveram nenhum problema mecânico.
O Speed 8 poderia ter retornado em 2004 para defender sua vitória, mas a empresa optou por encerrar o programa no auge da vitória. Se voltassem em 2004, não teriam o apoio da Joest nem os principais pilotos, que retornaram para os R8. Peter Elleray acredita que ainda poderia brigar pela vitória mesmo assim, pois o Bentley de 2003 nasceu tão bem que poderia enfrentar os R8 oficiais da Audi.
Pode ser que venceria, ou pelo menos daria bastante trabalho para os R8, mas uma coisa é certa: o Speed 8 pintado com o clássico verde British Racing Green foi um dos mais belos carros a vencer Le Mans nas últimas décadas. E foi um dos últimos carros projetados à moda antiga, com mais prática e intuição e menos computação.
MB