Não faz muito tempo que me deparei com uma frase impactante. Dizia que a maior distância a ser percorrida é o pequeno percurso entre a mente e o coração. Em outras palavras, percurso entre pensamentos e sentimentos, ou ainda, entre razão e emoção.
É transitar nesse percurso que se baseia a relação de consumo, principalmente no ramo automobilístico. Os veículos automotores são as máquinas que mais mexem com os sentidos humanos, em consequência, com a razão e a emoção dos usuários.
O termo UX – User Experience (experiência do usuário), criado por Donald Norman enquanto na Apple, é amplo. Pode ser resumido como a maneira de interagir do usuário com tudo ao seu redor.
É especialmente importante na relação de consumo entre usuários (não só o motorista) e veículos de qualquer tipo e categoria. Experiência mandatória para definir produto de sucesso…ou decepção.
Do poder e liberdade que possui, o consumidor busca soluções através da experiência sensorial. De fato, o que alguns não percebem é que o lado racional busca apenas mobilidade, enquanto o lado emocional clama por significado na “tribo”. No fundo, persegue o diferente. Já de sua parte, o fabricante enaltece as novidades para melhoria de vida.
Entre os dois está o produto atendendo ambos através da racionalidade dimensional e numérica do marketing, planejamento de produto, vendas, pós-vendas, entre outros setores, e do elo chamado engenharia. Esta, a parte lógica para unir razão e emoção.
E quem representa o consumidor nesse trio?
Para levar o produto ao mercado, é preciso experimentar antes de ele se tornar UX. Alguém será a mente e o coração dos futuros usuários, percorrerá a tal distância, e dará equilíbrio à relação.
É como o papel de alta responsabilidade do sommelier para a vinícola, para o vinho e para o consumidor. No ramo automobilístico, piloto de testes é a profissão dos sonhos de muitos.
Desde o princípio da era automobilística há muito o que experimentar. Há muito de inovação, de tecnologia aplicada a novos componentes ou novos veículos. É necessário saber como se comportam na realidade sensorial e tridimensional da existência física, mesmo que as simulações bidimensionais dos computadores afirmem categoricamente que dá certo.
O que de pior pode ocorrer para a fabricante é o consumidor lhe dizer aquilo que ela já deveria saber.
Etimologia dos dois títulos de quem está no comando
Motorista vem da combinação do latim motor (movimento) com o sufixo ista, que significa uso. Em geral, serve para os veículos terrestres; para motocicletas, virou motociclista. Designa quem dirige automotor, embora o verbo dirigir venha do latim dirigere, aplicável a quem direcionava, guiava, conduzia os animais nos veículos tracionados por eles antes da era motorizada.
Já do grego antigo vem o termo pedotes, traduzível como timoneiro, aquele que usava o pedon, remo que servia de leme para conduzir embarcações. Em latim, virou pilotus, a designação masculina da ocupação. Ao longo dos tempos, passou a identificar também quem comanda aeronaves (inclusos balões) e aqueles que dirigem motocicletas e outros veículos automotores em competições.
Como a origem dos dois títulos (motorista e piloto) é distinta, também há diferença no significado, embora sutil. Nos veículos automotores não há movimento sem a intervenção humana, mas não há exigências extras; um motorista comum faz a direção convencional.
Não é o caso das atividades que denotem certa habilidade, aquelas onde se aplica a denominação piloto. Exigem técnicas e preparo específicos. Pilotar, portanto, é dirigir com habilidade acima da necessidade tradicional para função que exige técnica específica; experimentação e competição, por exemplo.
Específicos, mas não necessariamente especiais
Entendo serem três os profissionais, denominados pilotos de teste, com as características acima mencionadas atuando em experimentação de veículos terrestres. Aqueles que representam o consumidor para a indústria, os que atuam como tal para a imprensa especializada e ainda os que trabalham nas competições automobilísticas.
Veículos de competição carregam em si mais glamour do que os de uso tradicional. O título piloto de testes traz em si uma carga emocional que acabou transferida aos outros dois profissionais. Não me parece adequado. Transmite a falsa impressão de que, assim como o de competições, estarão sempre no limite e levando o veículo aos limites o tempo todo. Para estes, em vez de pilotos de testes, prefiro um título mais formal, avaliador de desempenho do produto.
Vale dizer que o piloto de testes está mais interessado em saber e dizer se algo novo consegue dar ao veículo um tempo de volta menor do que antes. Já um avaliador de desempenho do produto trabalha para obter as respostas do veículo em relação ao que lhe foi aplicado de inovador ou modificador. Trata-se de participação efetiva na resolução daquilo que se busca, a melhoria constante do produto.
Não é o tempo de volta que importa primordialmente. Ainda, deve prover sugestões e modificações, o que nem sempre o piloto de testes faz, pois isso fica para os sensores e engenheiros da equipe.
É uma atividade profissional mais complexa na indústria automobilística do que na de competições. Estão em jogo fatores de durabilidade, qualidade, conforto, dirigibilidade e de comodidade; esta última muito em moda e para muitos até mais importante que as outras.
Na imprensa, é a responsabilidade de trazer tudo isso à tona com isenção e credibilidade.
Dá para perceber o quão específicos são esses três profissionais, o quanto os talentos, habilidades e técnicas são necessários. Mas, não podem se considerar especiais; apenas, sim, acima da média dos motoristas comuns…até mesmo por obrigação.
De meu modesto ponto de vista, especiais são ou foram aqueles que atuem ou atuaram nessas três funções ao longo da vida profissional. Confesso que sei de pouquíssimos.
No dia-a-dia, as diferenças entre realidade e sonho
Esqueça a ideia de constantes manobras radicais detonando o componente ou o veículo após um dia de experimentação.
Ao contrário, exige-se parcimônia, foco, sensibilidade, concentração e consistência, além de talento e habilidades, preferencialmente lapidados por escolas de pilotagem e direção preventiva.
Conduzir o veículo dirigindo no automático (vide matéria do Bob Sharp) é diferente de competir; daí a desejável opção de escolaridade mesmo para quem não vai competir. Também em testes, a condução do veículo deve ser automática para que o foco recaia sobre o que está em experimentação.
Um lado do cérebro é treinado para direção automática. Permite que o outro se atenha a observar e analisar, exclusivamente e o tempo todo, como está reagindo a dinâmica do veículo. Por exemplo, com aquele novo componente na suspensão ou no motor.
Preciosismo é bem-vindo e chega a ser um diferenciador. Só entende o que está “dizendo” um veículo quem tem todos os sentidos de prontidão e em ação. Repetitividade do procedimento, com exatidão e precisão exaustivas, seja lá em que situação for. Local fechado facilita muito por minimizar as surpresas. Segurança é fundamental para si próprio e os demais ao redor.
A experimentação de veículos pode ser dividida em dois conceitos básicos. Um deles é o das avaliações subjetivas, comumente chamadas de impressões ao dirigir, e que se baseiam na experiência sensorial. Ao contrário do que muitos imaginam, não se trata do que o avaliador gosta ou deixa de gostar. Na verdade, são muito bem lastreadas por escalas numéricas (tabelas) com graduações. Motivo? Indicam basicamente o quanto um consumidor comum notaria ou não a diferença entre o antes e o depois de uma modificação, mesmo a mais sutil. E quanto isso o agradaria (ou não).
O outro conceito é o de medições objetivas, mais exatamente, medições instrumentadas. Nestes que se chamam testes, alguma grandeza física é mensurada e posteriormente analisada ou comparada com outros resultados. Mesmo motivo das avaliações subjetivas, mas agora com números extraídos dos equipamentos. Por exemplo, o nível sonoro no habitáculo em decibéis em certa velocidade constante.
Há duas formas elementares de aplicar avaliações e testes. Uma é a análise absoluta, aquela em que se experimenta o componente ou o veículo sem comparação direta com nada. A outra, mais comum, é a que se executa comparando diversas especificações de componentes num mesmo veículo, ou ainda, veículo “contra” veículo. Na indústria existe ainda a durabilidade, onde se mede exatamente isso.
De uns tempos para cá, com a evolução da eletrônica e dos equipamentos disponíveis, cada vez mais os resultados subjetivos são agregados de valores numéricos e apresentados à alta diretoria da fabricante, para validação do produto, ou ao público leitor da mídia.
Subindo a régua
As avaliações e os testes estão cada vez mais detalhistas e direcionados. A variedade e quantidade de procedimentos é imensa, principalmente na indústria; nem tanto na imprensa. Nesta, o espaço disponível na publicação implica que seja um texto informativo para ajudar o leitor a escolher. Mas, ao mesmo tempo agradável, enxuto e limitado ao essencial. O essencial a ser exposto na mídia varia de tempos em tempos; há que se adaptar, como na indústria.
Foram os veículos que forçaram evolução na experimentação, ou a experimentação mais apurada que evoluiu os veículos? É a síndrome do biscoito no mercado. O foco é cada vez mais estreito e direto. A peça entre o banco e o volante cada vez mais exigida e mais importante antes mesmo de sentar-se lá.
Na verdade, foram os consumidores que se tornaram mais exigentes…e com razão.
MP