A Renault errou em sua estratégia de lançamento do Clio no Brasil em 2000, quando iniciou sua produção na fábrica de São José dos Pinhais. O destaque do hatch compacto era ser, desde a versão básica, o único brasileiro do segmento equipado com airbags (bolsas infláveis) frontais.
Alguns jornalistas do setor (eu entre eles) foram convidados meses depois por Luc Alexandre Ménard, seu presidente, para um almoço na fábrica da Renault no Paraná.
Ménard estava de “saia justa”: sua equipe calculou mal a receptividade do mercado aos airbags no Clio. Por não serem obrigatórios na época, não equipavam nenhum de seus concorrentes. E por isso, o Clio era cerca de 10% mais caro. Suficiente para, no segmento de entrada, afastar fregueses. E nos perguntou qual seria a reação do mercado se os airbags fossem removidos.
Nós o lembramos então de que a Volkswagen tinha acabado de lançar o Golf produzido na fábrica da VW bem ao lado da Renault, em São José dos Pinhais. E que os alemães tiveram de projetar um novo volante, pois na Alemanha sequer existia a opção sem o airbag. O Golf brasileiro seria o único no mundo sem o equipamento pois a Volkswagen não cometeu o mesmo “erro” e o removeu antes de iniciar sua produção. Ménard se sentiu então menos constrangido em eliminar o equipamento do Clio.
Conto essas histórias a propósito do crash test realizado no mês passado pelo Latin NCAP com o Kia Picanto comercializado na Colômbia (foto de abertura). E que tomou bomba da entidade uruguaia por ter airbag apenas para o motorista, além de outros problemas de segurança.
Além de classificar o modelo coreano com zero estrela (das cinco possíveis), seu diretor ainda se deu ao direito de “puxar a orelha” da Kia, irado com o baixo nível de proteção aos ocupantes do Picanto e lembrou que o mesmo carro comercializado no Primeiro Mundo é equipado com dois ou quatro airbags. “Por que — perguntou arrogantemente — o cidadão da Colômbia não merece o mesmo nível de proteção?”
Mais irresponsável ainda é que a avaliação do Kia Picanto foi divulgada no Brasil, onde a marca também comercializa o modelo. Exatamente a mesma trapalhada do Latin NCAP com a Ford Ranger: informou a imprensa brasileira que a picape foi reprovada nos testes, sem deixar claro que se tratava de uma unidade vendida na Colômbia. Claro que Picanto e Ranger são comercializados no Brasil com airbags e seriam melhor avaliados nos testes.
Resumo da ópera é que o Latin NCAP:
1 – faz de conta desconhecer a falta de padronização das legislações de segurança veicular na América do Sul. E divulga num país, avaliações negativas de carros da mesma marca e modelo vendidos em outros. Confundiram o consumidor brasileiro nos casos do Picanto e da Ranger vendidos na Colômbia;
2 – não explica o critério para decidir quais modelos serão testados em cada país: os mais vendidos? Os mais baratos? Fiz essa pergunta ao eng. Furas, seu diretor, numa entrevista coletiva e ele “enrolou” a resposta;
3- parece ignorar que uma fábrica não pode equipar um carro de entrada com equipamento de segurança não obrigatório no país. Renault e VW não o fizeram aqui pois seus modelos iriam custar muito mais e obviamente alijados da concorrência. Em carros de menor valor, cada centavo acrescido no preço é crucial para o consumidor;
4 – repreende com arrogância as fábricas com modelos reprovados em seus testes, como se fosse um órgão regulador do governo para a segurança veicular, desconsiderando as características de cada país e impondo seus próprios protocolos sem ouvir suas entidades representativas.
Não há dúvida que as avaliações do nível de proteção aos ocupantes de um carro são de extrema importância para tornar os veículos mais seguros (só em caso de acidente). Mas há que se fazer os testes dentro de critérios bem definidos, levar em conta a legislação e as características do país e ouvir as entidades representativas das fábricas, do governo e da sociedade. O Latin NCAP não é comprometido com nenhuma destas premissas.
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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