Fui engenheiro de pista para a fabricante de autopeças Cofap no último ano (1988) em que ela fornecia amortecedores para todos os carros do Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos iniciado em 1984.
As quatro principais fabricantes de automóveis — Fiat, Ford, General Motors e Volkswagen — participavam oficialmente por estar em jogo, além do título de pilotos, o de construtores.
Nesse trabalho, tive a oportunidade de conviver com grandes nomes do automobilismo brasileiro, tanto pilotos quanto chefes de equipe e preparadores.
É de um deles, que já era reconhecidamente grande chefe de equipe, o exemplo de atitude e profissionalismo que marcou minha visão de trabalho: Luiz Antônio Greco. Além de copatrocinar o certame, a Cofap apoiava os Escort XR3 da Equipe Ford, comandada por Greco, fornecendo amortecedores com variação eletrônica de calibragem. Cabia-me atenção especial, inclusive de pista.
Clima variável; foco, jamais
Chamado de templo, Interlagos é uma incógnita no quesito previsão do tempo. Coisas inusitadas acontecem ali no tema meteorologia.
Foi numa das minhas participações no pit lane que uma repentina chuva começou a cair apenas ali na reta de chegada. A debandada para dentro dos boxes foi grande; além dos curiosos, membros das equipes abandonaram seus postos. A prova continuou, pois chovia só ali. Os XR3 seguiam bem na corrida, um deles pilotado pelo filho, Fábio Greco.
Resolvi seguir a tropa e cheguei a virar o corpo para correr para dentro do box.
Foi quando vi o Greco concentrado, de prancheta, cronômetros e caneta na mão, focado e dedicado à prova, como se não estivesse chovendo. E continuou assim. Senti-me envergonhado, virei de volta para a mureta e fiquei ali também.
Para ele, a minha permanência ao lado não fez a menor diferença, claro; entretanto, para mim foi fundamental. Nenhuma chuvinha deve atrapalhar nosso comprometimento.
Detalhe, a chuva passou logo e todos voltaram para a mureta, mas somente ele (molhado) tinha uma leitura completa da prova naquele instante.
Depois da corrida, os pilotos da equipe informaram que os protótipos de amortecedores eletrônicos tinham auxiliado alternando entre mais rígido (piso seco) e mais macio (trecho molhado).
Vantagem que os demais não possuíam, pois usavam amortecedores convencionais de calibragem fixa, decidida pelas equipes e confeccionados no laboratório da Companhia.
Entrosamento difícil
O curso (amplitude), velocidade e frequência de abertura ou fechamento da mola de suspensão determinam carga de reação dos amortecedores (figura abaixo) no momento. Casamento complicado.
Quando no movimento de tração (abertura), a válvula da base libera totalmente o retorno do óleo que está no tubo externo, permitindo assim que o volume de haste que sai seja compensado por esse óleo que retorna ao tubo interno. O pistão com válvula que está na extremidade dessa haste atravessa esse óleo. É neles que são feitas as restrições (calibragens) para cargas de resistência à tração.
Quando no curso de compressão (fechamento), o processo contrário. O pistão com válvula deixa passar livremente o óleo enquanto a válvula de base tem a calibragem de resistência às cargas de compressão.
Uma vez manufaturadas com essas calibragens, todas as peças e as cargas que resultam disso são fixas; não se alteram e assim respondem aos movimentos da suspensão, independentemente de ser ou não a melhor resposta para cada situação.
Mas nem tudo está perdido. As restrições mencionadas são ali aplicadas para agirem em estágios e progressivamente. Os gráficos (vide abaixo) não lineares das cargas fixas de tração e de compressão são uma relação de força (carga) em N (Newtons) versus velocidade da haste, esta, em m/s.
Para baixas velocidades da haste, seja na tração seja na compressão, pequenas ranhuras; para velocidades médias, discos; e molas para grandes deslocamentos e maiores velocidades, como ao passar sem parar em uma lombada.
Para evitar cavitação do óleo ao passar por todas essas restrições, é aplicado nitrogênio (gás inerte que compõe 78% do ar atmosférico) sob leve pressão no tubo externo. Com isto o óleo é mantido continuamente pressionado contra o tubo interno.
Particularidades de laboratório
Para os que acreditam na máxima de que automobilismo é laboratório e leva ao extremo os componentes, tenho boas notícias. Estão certíssimos.
Na mesma época também acompanhávamos uma equipe de rali, e os resultados eram em outra direção que a dos autódromos. Ambos se completavam.
O que interessa não é a velocidade do veículo, mas sim a da haste. O curso da suspensão determina o deslocamento da haste, mas são as irregularidades do piso, e a velocidade em que passamos por elas, que definem a velocidade com que se executam esses movimentos de abre e fecha…e com qual frequência eles ocorrem.
Nos autódromos apenas o estágio inicial de amortecimento se aplica nos bitubulares; não há grandes deslocamentos da haste e as velocidades também são baixas, ao contrário do que ocorre nos ralis. Por isto é que os amortecedores monotubulares a gás são mais indicados, pois sua relação força-velocidade é mais linear e começa já em baixas velocidades e deslocamentos.
Naquele campeonato, os carros eram mandatoriamente de produção normal adaptados e homologados para competição; daí utilizarem amortecedores hidráulicos bitubulares.
Projeto nacional
Internamente chamado de SAV – Sistema de Amortecimento Variável, o projeto brasileiro agia na válvula de abertura (vide figura abaixo) de um amortecedor hidráulico bitubular comum. Era por meio de válvula adicional tipo solenoide comandada eletricamente por uma central eletrônica.
A válvula eletrônica, na verdade, funcionava como um by-pass permitindo passagem livre do óleo o que “amolecia” o amortecimento criando uma segunda curva de tração. Os elementos tradicionais da válvula de tração estavam lá e produziam a curva mais rígida. Já a válvula de compressão não sofria alterações.
Parece simples e rudimentar, mas foi um progresso e tanto, ousadia fruto do trabalho, competência e dedicação de técnicos e engenheiros de um time da Cofap do qual tive a honra e o privilégio de participar na fase final.
Dos protótipos, tanto nos carros de corrida como dos de rua em vários (muitos) testes, chegou-se ao que permitia não só a venda para mercado reposição, mas também como equipamento original. Em 1991 a Ford lançou a série especial XR3 Fórmula, limitada a 750 carros, utilizando o SAV (foto de abertura).
A lógica aplicada na central eletrônica era mais voltada à segurança, embora não desprezasse o conforto.
Até 20 km/h a válvula eletrônica não permitia a curva mais suave. Daí até 100 km/h ela agia permitindo movimentos mais suaves (mais conforto). A partir de 100 km/h, automaticamente, funcionava apenas a válvula tradicional tornando o deslocamento da haste mais preso. Também nas frenagens, e por cinco segundos, era apenas a mais rígida que atuava.
Mercado incrédulo
Mas ficou nisso. Até hoje, exceto uma série do Miura também com amortecedores eletrônicos, nenhum outro veículo nacional saiu de fábrica utilizando suspensão minimamente inteligente. E olha que estamos falando de quase 30 anos atrás e o nosso mercado ainda só aceita o custo-benefício se for em veículos topo de linha ou esportivos.
Só para lembrar, na Fórmula 1 dos anos 1980-1990 reinavam as suspensões ativas e muito se falava na futura aplicação em larga escala mesmo em veículos mais simples. Aqui no Brasil, o início foi sob a batuta de seu idealizador e entusiasta, engenheiro Sérgio N. Vannucci, já falecido.
Começou no período citado acima no automobilismo nacional, mas não vingou mesmo tentando o golden circle (círculo dourado), aquele que diz que se aplicado como equipamento original irá atrair a compra e reposição pelo mesmo produto.
O mercado achou muito simplório e com pouca diferença entre as curvas de amortecimento. Esperavam uma suspensão mais “inteligente” e mais ativa…mas, barata. Não entendeu que era apenas o primeiro passo de uma caminhada muito mais longa.
Quanto a Luiz Antônio Greco, com quem trabalhei alguns meses, aprendi a apreciá-lo. No dia 23 de dezembro de 1992, quando se encontrava na Flórida, EUA com a esposa Nadir, o mestre nos deixou repentinamente. Cedo demais, tinha só 57 anos.
Dele, do engenheiro Vannucci e do XR3 Fórmula, imensa saudade e respeito.
MP
Não só aos mencionados, mas a todos que participaram dessa empreitada e desafio bem-sucedido, fica aqui minha homenagem.