Às 16:00h do dia 17 de Junho de 1990, após longas e árduas vinte e quatro horas, dois XJR-12 cruzaram a linha de chegada no circuito de La Sarthe, em Le Mans. Um feito desejado por todos, mas que somente os mais capacitados e bem-sucedidos alcançam. Quatro meses antes, do outro lado do Atlântico, outros dois XJR-12 já tinham registrado na história das 24 Horas de Daytona mais uma vitória.
Foram as últimas duas grandes vitórias da Jaguar nas principais provas de longa duração do mundo. Não foram fáceis, muito pelo contrário, pois os rivais tinham carros mais modernos, e, mesmo assim, a técnica e a organização da equipe prevaleceram.
Em um tempo em que a empresa não passava por bons momentos no cenário mundial de venda de automóveis, estas duas vitórias foram muito importantes para manter a equipe de competições liderada por Tom Walkinshaw viva por mais um curto período, suficiente para render um último título mundial à marca.
TRADIÇÃO NAS PISTAS
Desde os tempos de William Lyons, a qualidade e refinamento de seus carros eram requisitos primordiais para a Jaguar. Mesmo tendo construído a estratégia de sua empresa em torno dos carros maiores, conhecidos na Inglaterra como saloons, a veia esportiva nunca deixou de existir na empresa.
Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, enquanto a empresa trabalhava na fabricação de itens militares, Lyons e seu principal projetista, William Heynes, desenvolveram o que viria a ser um dos motores mais famosos do mundo, o XK de seis cilindros em linha com duplo comando de válvulas. Com este motor, a Jaguar levou seu novo carro esporte ao sucesso nas pistas: o XK120.
A proposta de fazer um esportivo de produção seriada capaz de chegar a 120 mph (193 km/h) no final dos anos 40 seria inovador e ousado. O novo XK120 balançou o mercado. A disponibilidade de um carro esporte de desempenho realmente forte para época colocou a Jaguar em destaque.
Não demorou para que o novo Jag mostrasse suas qualidades nas pistas. Em 1950, três XK foram preparados pelo time de engenharia da fábrica e entregues para pilotos particulares testarem a capacidade de novo carro na 24 Horas de Le Mans. Obviamente, todos pilotos britânicos.
No primeiro ano na corrida francesa, os XK120 mostraram-se fortes concorrentes, andando entre os primeiros por boa parte da prova. Ao final, o melhor colocado ficou em 12° lugar. Os freios deram indícios de serem um ponto fraco do carro, o que rapidamente foi contornado pela fábrica para futuras competições.
No seu segundo ano, o motor XK retornou a La Sarthe como o coração de um dos mais icônicos carros da marca, na forma conhecida como C-type. Criação do mesmo William Heynes, este era um novo chassi tubular com carroceria de alumínio criada especialmente para a pista, mais aerodinâmica, e para muitos, mais bonita. Desta vez, os novos carros foram inscritos sob o nome da própria Jaguar, como equipe oficial de fábrica., ou seja, a Jaguar era concorrente. perante a Federação Internacional do Automóvel, a FIA., diferente de ceder carros para pilotos particulares, nesse caso concorrentes e pilotos ao mesmo tempo.
As melhorias feitas surtiram efeito e o C-type dominou a prova, vencendo com uma larga vantagem. Em 1953, o projeto C da Jaguar, agora com a novidade dos freios a disco fornecidos pela Dunlop, repetiu o feito, agora conquistando o primeiro, segundo e quarto lugares.
A versão que veio depois, chamada de D-type, venceria Le Mans em 1955, 1956 e 1957. A qualidade do carro, a confiabilidade e a velocidade eram imbatíveis. Técnicas de construção e aerodinâmica vindas da aviação colaboraram para fazer deste Jaguar um dos mais competentes carros de corrida da sua época. A prova de 1957 fecharia a década de vitórias da Jaguar com um brilhante resultado: primeiro, segundo, terceiro, quarto e sexto lugares para o “D”.
Não fosse uma alteração no regulamento de 1958, que limitava a cilindrada dos motores a 3 litros (o XK tinha versões de 3,4 litros e 3,8 litros), era bem possível que a Jaguar continuasse vencendo. Nos anos 1960, a Jaguar teve algumas participações na prova com equipes particulares correndo com o novo E-type
A FASE TWR
De volta ao principais campeonatos de provas de longa duração no mundo, a Jaguar contou com o parceiro Tom Walkinshaw, escocês, para desenvolver os novos protótipos e comandar a equipe de fábrica. No passado, contamos aqui no AE a história da TWR, a equipe de Tom e sua trajetória no automobilismo, passando até por supercarros de rua.
O que começou com o projeto XJR-5 criado por Bob Tullius para sua própria equipe chamada Group 44, competindo no campeonato americano da IMSA (International Motor Sports Association), evoluiu para a parceria entre a Jaguar e a TWR para o Campeonato Mundial de Carros Esporte(WSC – World Sportscar Championship). O primeiro projeto da TWR foi o XJR-6, desenhado pelo genial Tony Southgate, este, que foi o responsável pelo projeto de praticamente todos os XJR.
O uso do motor V-12 derivado dos carros de produção, que por sua vez, nasceu do projeto do XJ13 de corrida, dava aos XJR um destaque no grid, como um dos poucos competidores da categoria principal a não utilizar motores turbo. A Porsche já puxava a fila dos carros turbocarregados há anos, mostrando que a tecnologia era sólida e confiável. Tom Walkinshaw e o projetista de motores Allan Scott desenvolveram o V-12 para competições, numa história que ainda contarei aqui no AE.
A evolução dos Jaguares nas pistas foi notável, a qualidade do trabalho da TWR fazia com que a marca inglesa fosse competitiva perante os germânicos da Porsches e Sauber-Mercedes, e os protótipos vindos do Japão, representados pela Toyota, Nissan e Mazda.
Dentro do time de projetos da TWR havia uma diferença na nomeação dos carros em função do que participavam. Na mesma temporada, era possível ter carros com nomes diferentes, mesmo que muito similares entre si, salvo considerações de restrições técnicas. A IMSA ditava as regras para as provas americanas e a FIA regulamentava os carros na Europa e Ásia.
Com o passar do tempo, a cada nova temporada, o grande V-12 de aspiração natural ganhava melhorias, mas os competidores com motores turbo conseguiam melhorar ainda mais suas potências. Mesmo sendo robusto e ótimo para as provas de longa duração, o motor da Jaguar começava a dar sinais da idade.
Em 1988, a Jaguar-TWR estava num ótimo momento, o novo XJR-9 era um carro muito bem nascido. Já com construção em fibra de carbono, o V-12 de 7-litros estava alcançado a marca de 750 cv. Neste ano, a equipe conseguiu carimbar a vitória tanto em Le Mans como em Daytona, com a primeira vitória brasileira na prova com Raul Boesel.
O JAGUAR TURBO
Visando melhoras nas provas de curta duração, a TWR e a Jaguar apostaram no desenvolvimento de um novo carro para utilizar um motor turbocarregado, menor e mais leve. Assim foi criado a dupla XJR-10 e XJR-11, para disputar a IMSA e o WSC, respectivamente.
Tony Southgate contou com a colaboração de Ross Brawn no projeto destes carros, enquanto que novo motor turbo estava sendo criado em parceria com a Jaguar. A unidade base viria da Rover, um pequeno V-6 conhecido como V64V, o mesmo usado no MG Metro de rali, e que futuramente viria a equipar o XJ220 de passeio. Para a IMSA, o V-6 teria 3-litros e para o Mundial de Endurance, 3,5-litros, por conta de cada regulamento.
O novo XJR ganhou em redução de peso e na potência de perto de 800 cv, mas a confiabilidade era um problema. O turbo gerava muito calor, o conjunto todo trabalhava bem mais estressado que o grande V-12. Constantemente algo falhava, entre motor, transmissão, freios e arrefecimento.
Com os problemas de confiabilidade já conhecidos da equipe, ao ponto de que para a corrida de Le Mans de 1989, Tom Walkinshaw optou por correr com o XJR-9 vitorioso do ano anterior. Mesmo sendo o carro mais veloz na corrida, batendo a marca de 390 km/h na reta de Mulsanne, não conseguiu superar os Mercedes turbo.
Para a temporada de 1990, o turbo foi abandonado e o enorme V-12 voltou à cena. O novo XJR-12 herdaria os avanços aprendidos nas áreas de chassi e aerodinâmica, mantendo a confiabilidade do motor aspirado já bem compreendido.
Southgate estava de saída da equipe e quem assumiria os trabalhos seria Ross Brawn e Alastair Macqueen. Por contrato, Tony permaneceu por um tempo na TWR, participando de forma menos ativa, mas em contato direto com o desenvolvimento do XJR-12.
O XJR-12 estava sendo concebido para disputar as grandes provas do ano, como Le Mans e Daytona. Vencer estas duas corridas faz com que você seja lembrado por muito tempo, possivelmente mais do que quem for campeão da temporada. E justamente este era o objetivo da TWR. Como a disputa nas pistas menores e corridas mais curtas estava cada vez mais dura contra os motores turbos, e o desenvolvimento do V-6 não havia sido muito bem sucedido, o objetivo de 1990 era vencer as corridas de 24 Horas.
O regulamento do Mundial de Endurance iria mudar para 1992, e com a proibição dos motores turbo para a categoria principal em prol da adoção dos motores aspirados até 3,5-litros derivados do regulamento da Fórmula 1, a Jaguar não iria investir mais no desenvolvimento do V-6 turbo, mas aproveitar enquanto podia usar o V-12 antes das novas regras serem aplicadas. Estas regras, por sinal, foram o motivo da contratação de Ross Brawn. Ele iria ser o responsável pela criação do novo carro com motor aspirado de menor cilindrada.
DAYTONA, 1990
A primeira etapa da temporada seria a tradicional 24 Horas de Daytona. A vitória de 1988 dava uma boa segurança à equipe quanto ao desempenho e durabilidade do V-12. Tom Walkinshaw tinha um time muito bem treinado para a corrida, e com as melhorias ano a ano, a briga com os motores turbo rivais seria boa.
O V-12 de 7-litros tinha só um comando em cada bancada e duas válvulas por cilindro. A simplicidade do motor era seu ponto forte. Sem turbo, múltiplos comandos e válvulas, eram menos peças para deixar o conjunto mais simples e menos propício a falhas.
Dois carros foram inscritos pela TWR, pintados nas cores da Castrol. O carro número 60 seria pilotado pelo trio formado por Martin Brundle, Price Cobb e John Nielsen. O segundo carro, número 61, foi pilotado por Davy Jones, Jan Lammers e Andy Wallace.
Os concorrentes mais fortes eram os Nissan GTP e os Porsche 962, ambos equipados com motores turbo de 3-litros. A pista de Daytona possui características únicas. O trecho do oval de Daytona traz a grande velocidade, que também existe em Le Mans, mas com grandes forças laterais por conta das curvas inclinadas. O trecho interno da pista é mais lento, então um bom carro tem que ser rápido para o trecho do oval, equilibrado e com boa retomada para as saídas de curva mais lentas.
Nos treinos, os carros equipados com motores turbo tinham a vantagem de poder aumentar a potência com o aumento da pressão do turbo, chegando a até 300 cv adicionais. Os XJR não tinham como acompanhar estes carros, e largaram na nona e décima posição.
No começo da prova, os dois XJR apertaram o ritmo para tentar passar o máximo de competidores possível, assim se mantendo no grupo da liderança. Aos poucos, os dois carros foram subindo até as primeiras posições. Ao anoitecer, os dois Jags já lideravam a corrida.
A aposta de que o motor aspirado traria vantagens por conta da boa durabilidade se confirmou. Enquanto os rivais tinham que controlar o ritmo para poupar os motores turbo e dosar o consumo de combustível, os XJR completavam voltas e mais voltas a plenos pulmões do V-12 ecoando por Daytona.
O único problema que os carros encontraram foi o princípio de superaquecimento na manhã de domingo. O calor de Daytona estava afetando o arrefecimento dos dois carros, que tiveram que fazer paradas nos boxes para repor água dos radiadores e sangrar o sistema, a fim de controlar a temperatura.
Depois de 761 voltas, o carro 61 cruzou a linha de chegada, logo depois seguido pelo carro 60, este duas voltas à frente de um Porsche 962. Tom Walkinshaw consegue mais uma vez vencer em Daytona, na corrida de estreia de um novo carro, e desta vez, com os seus dois inscritos cruzando a linha de chegada em primeiro e segundo.
Era um ótimo sinal de que o bom e velho V-12 ainda estava apto a combater os turbos, pelo menos nas provas longas.
LE MANS, 1990
No campeonato WSC, as tentativas da TWR de fazer o V-6 turbo ser equiparável aos rivais, principalmente à Sauber-Mercedes, ainda estavam distantes do esperado. Tom sabia que seria praticamente impossível brigar de igual para igual em uma prova de vinte e quatro horas se nem nas provas curtas o turbo ai bem. O V-12 novamente seria uma aposta melhor
Com a grande alteração na Mulsanne, recebendo duas chicanes para reduzir a velocidade máxima dos carros, o novo XJR-12 enfrentaria os rivais com motores turbo capazes de forte aceleração nas retomadas como um novo desafio em Le Mans. Seria mais uma luta para a Jaguar.
Para esta edição das 24 Horas francesas, a TWR participaria com quatro XJR-12. Com exceção do Mazda que utilizava o motor Wankel e alguns poucos modelos da Spice, todos os concorrentes vieram para a disputa com turbocompressores. Porsche, Toyota e Nissan eram os grandes rivais, uma vez que a Sauber não correria em Le Mans, por não fazer parte do campeonato mundial.
Os quatro carros foram inscritos com a seguinte combinação de pilotos:
Carro nº 1 = Martin Brundle, Alain Ferté e David Leslie
Carro nº 2 = Ian Lammers, Andy Wallace e Franz Konrad
Carro nº 3 = John Nielsen, Price Cobb e Eliseo Salazar
Carro nº 4 = Davy Jones, Michel Ferté e Luis Pérez-Sala
Durante os treinos, a Jaguar se manteve conservadora e não brigou com os competidores, que tinham a vantagem de aumentar a pressão do turbo para potência extra na qualificação. Desta forma, os XJR ficaram em sétimo, oitavo, nono e décimo sétimo. Na frente, quatro Nissans da equipe oficial da fábrica e dois Porsches independentes.
Durante as primeiras horas da corrida, os V-12 foram subindo de posição aos poucos, mantendo um ritmo constante e rápido. Ao anoitecer, já brigavam pela liderança. Os rivais nipônicos tiveram problemas mecânicos e acidentes pelo caminho, perdendo posições, assim como os Porsches, que começaram a ver os Jaguares se aproximando mais e mais.
Após superar os últimos rivais, o Jaguar nº 1 de Martin Brundle, Alain Ferte e David Leslie liderava a prova. O carro nº3 vinha logo na sequência. Mas, por conta de um vazamento de água, o carro líder teve problema de superaquecimento e perdeu muito tempo parado. O carro nº 4 também teve problemas.
Como Brundle era o piloto favorito de Walkinshaw, bem capacitado para esta prova, o chefão da TWR fez um remanejamento nos carros. O carro nº 3 vinha em um bom ritmo, estava na liderança depois dos problemas do outros dois carros, e Tom iria apostar todas suas fichas nele.
Para ter uma equipe forte, o trio de pilotos que tinha dois nomes fortes (Nielsen e Cobb) e um novato (Salazar, que ainda não havia pilotado o Jag durante a corrida) que poderia ser realocado. Depois de uma conversa direta entre Salazar e Tom, o chefe decidiu dar o lugar do chileno a Brundle. A experiência de Brundle valeria mais para o time no carro-líder do que em um carro várias voltas atrás e com problemas no motor.
Foi uma grande frustração para Salazar, um piloto muito querido por todos no meio automobilístico, e que teria sua grande chance de vencer a prova mais importante do mundo na categoria, mas que teve que lidar com a decisão em prol do time.
O carro da liderança seguiu com a nova configuração de pilotos, Martin Brundle agora tinha a missão de levar o XJR-12 à vitória, para valer os sacrifícios do time em nome da consagração. Para complicar, o carro nº 3 estava com problemas na transmissão. A quarta marcha não entrava na maioria das vezes.
Salazar assumiu o posto de Luis Pérez-Sala, um jovem piloto espanhol com pouca experiência que também teve que abrir mão de seu lugar no carro nº 4 para que Salazar pilotasse. Entre o nível de experiência de Eliseo e Sala, o chileno ainda levava a melhor. Salazar voava com o XJR para mostrar a Tom que era um piloto capaz de cumprir com a tarefa, mas não desacatou as ordens dos boxes em momento algum, até a hora que o V-12 não resistiu e o carro ficou pelo caminho.
Com o amanhecer, o carro de Brundle liderava, seguido pelo Porsche da equipe Brun e na sequência o Jaguar nº 2. Parecia que este seria o resultado final, mas, faltando menos de meia hora para o fim da corrida, o motor boxer do 962 também se entregou, abrindo caminho para a dobradinha dos XJR.
John Nielsen cruzou a linha de chegada com o nº 3, carimbando mais uma vitória da Jaguar nas 24 Horas de Le Mans. A última vitória da marca em Le Mans até os dias de hoje.
1991, CAMPEÕES MUNDIAS
Com as alteração das regras do WSC, visando uma forma de comunização no desenvolvimento de motores nas principais categorias do automobilismo, os carros da elite dos esporte-protótipos seria limitados a motores de 3,5-litros aspirados similares aos usados na Fórmula 1.
A TWR já vinha desenvolvendo um modelo nos novos moldes do campeonato, chamado XJR-14, equipado com um motor Cosworth V-8 que contarei com mais detalhes aqui no AE. O italiano Teo Fabi foi o piloto escalado para comandar o novo V-8.
No campeonato, a regularidade do italiano garantiu à Jaguar o título mundial, o último em um campeonato desta magnitude.
Com a crise financeira do começo dos anos 90 atingindo a indústria e principalmente a Jaguar, os esforços em competições foram cortados, e a TWR redirecionou seu esforços para outras equipes, sem perder o desenvolvimento que foi feito no XJR-14, mas esta é outra história.
MB