Provavelmente a maior discussão no meio automobilístico é a já sem graça dúvida de quem foi o maior piloto de Fórmula 1 de todos os tempos. Foi o Senna, Schumacher, Hamilton, ou Fangio? Talvez todos eles, pois é injusto compará-los. Cada um teve seu momento, e sua característica.
Do mesmo jeito que é injusto comparar o 14-Bis de Santos Dumont com um caça F-22 que mal aparece no radar inimigo, comparar estilos de pilotagem de eras diferentes também é. As habilidades ao volante de Fangio e de Giuseppe Farina pouco têm a ver com a precisão nos ajustes do carro que Hamilton faz a cada curva num GP moderno.
O que faz os estilos de pilotagem serem diferentes, bem como as habilidades necessárias para pilotar no limite, estão totalmente ligadas ao carro. Assim como Jim Clark não precisava saber como ajustar o diferencial eletrônico de seu Lotus, Hamilton não tem que se preocupar com um engate de marchas preciso para evitar danos na embreagem ou nas engrenagens. Nenhum deles passou por estas dificuldades.
Assim como a história é dividida em épocas (Idade Média, Idade Moderna, as Eras Pré-Históricas), separadas por eventos conhecidos, na Fórmula 1, podemos dizer que algo parecido aconteceu. Podemos entender que algumas gerações de carros foram divididas por conta de novos sistemas ou componentes criados como uma forma de melhorar o seu rendimento.
Não apenas as melhorias alteraram a forma de se projetar os carros, mas, principalmente, a forma de pilotar.
PRIMEIRA GERAÇÃO
Desde as primeiras provas conhecidas como os Grand Prix (Grandes Prêmios) dos anos 1930 até o primeiros anos da Fórmula 1, pouco mudou no conceito do carros.
A concepção de um monoposto, estreito e com rodas expostas, manteve-se até hoje. Nos primeiros anos, os carro feitos com chassis tubulares e grandes motores dianteiros eram o suprassumo da tecnologia automobilística. O esporte a motor sempre puxou o desenvolvimento dos automóveis, e nesta época não foi diferente.
A potência dos motores já era elevada na época. Os Auto Unions geravam mais de 500 cv com os enormes V-16 supercarregados. E, aliás, já eram montados no centro do carro, diferente dos demais com motor dianteiro. Mesmo nos modelos mais tradicionais, como os Alfa Romeo, as dificuldades na pilotagem eram similares.
Com pouca aderência, pouca potência de frenagem e nenhum efeito aerodinâmico a não ser para reduzir o arrasto, os carros eram basicamente controlados pelo piloto para contornar curvas como nos ralis, com derrapagens controladas e muito cuidado para manter o carro funcionando.
O motor dianteiro ou central alterava um pouco a forma de pilotar. Uns teriam uma frente mais solta, outros a traseira mais arisca, mas as velocidades de reação e mudança de direção eram parecidas.
Desde Bernd Rosemeyer e Hans Stuck até Juan Manuel Fangio e Stirling Moss, a pilotagem era semelhante. Abaixo vemos um vídeo de Fangio e outro de Stirling Moss, e são tocadas similares. Obviamente não estão no limite, pois para fazer uma filmagem onboard nesta época era preciso praticamente um estúdio de gravação pendurado no carro.
Até meados dos anos 60, pilotos como Jim Clark, JohnSurtees, Jack Brabham e Graham Hill dominavam a técnica exigida para pilotar os F-1 mais rápidos da história, antes da invenção da primeira grande revolução na categoria.
AEROFÓLIOS – A PRIMEIRA REVOLUÇÃO
Nos anos 60, os carros já tinham evoluído para modelos menores, mais baixos, todos já tinham adotado o motor central. Menor peso e potência boa resulta numa boa relação peso-potência, permitindo melhor aceleração e maior agilidade para mudar de direção.
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De certa forma, salvo as devidas proporções, os carros até meados dos anos 60 não eram tão diferentes dos seus antecessores. Tinham mais aderência, freios um pouco melhores, motores mais otimizados e suspensões mais ajustadas para as pistas, mas, o piloto ainda tinha que lidar com as derrapagens controladas para ser veloz.
A transição mais significativa aconteceu em 1968, mais especificamente no GP de Mônaco, quando o brilhante Colin Chapman trouxe para a F-1 o conceito aerodinâmico explorado por Jim Hall em seus Chaparral americanos, com o uso de asa para gerar força vertical descendente, a famosa downforce. O Lotus 49B de Graham Hill tinha um par de pequenos aerofólios no bico e uma coberta sobre o motor em formato de rampa para direcionar o ar para cima.
Utilizar um perfil de asa para ajudar a empurrar o carro para baixo e melhorar a carga dos pneus contra o solo foi uma sacada genial que rapidamente se espalhou pelo grid todo, e de todas as formas possíveis e imagináveis. Pela primeira vez na F-1, a aerodinâmica era usada para aumentar a velocidade dos carros nas curvas.
A aerodinâmica mudou a forma como os carros eram concebidos. A suspensão tinha que ser mais firme, o chassi tinha que ser melhor estruturado para lidar com as forças adicionais e as reações do carro eram mais rápidas. Para os pilotos, a forma de condução tinha que mudar, pois para as asas serem eficientes, o carro tinha que andar rápido, e as derrapagens começaram a ser menos usadas.
Por quase uma década, as asas foram sendo aprimoradas, novos formatos foram testados, e cada vez mais o piloto tinha que conciliar a velocidade nas curvas com o controle do carro. Os freios melhoraram e a aderência dos pneus também aumentou.
O uso dos aerofólios causou uma revolução no automobilismo, com carros mais rápidos e pilotos sendo exigidos de uma forma diferente. Nomes como James Hunt, Jackie Stewart, Niki Lauda, Clay Regazzoni e Emerson Fittipaldi foram grandes pilotos desta geração, que conseguiam guiar os carros com velocidade e explorar bem os recursos da downforce.
ASSOALHO – A SEGUNDA REVOLUÇÃO
Assim como o Lotus 49B marcou o início de uma era na categoria, outro Lotus marcou uma segunda revolução na F-1. O Lotus 78 iniciou a era do efeito solo, que já falamos aqui no AE.
A ideia de utilizar a carroceria do carro como um grande perfil aerodinâmico mudou completamente a forma de se projetar e de pilotar. Todo o chassi sofreria as forças aerodinâmicas empurrando o carro para baixo, e quanto maior a velocidade, mais força era gerada.
O principal elemento que permitiu que novo conceito fosse viável foi o assoalho em formato de venturi sob a carroceria, fazendo o fechamento do perfil de asa. Como um componente adicional ao simples fechamento inferior do carro, o extrator de ar que criava o perfil progressivo da saída de ar tornou-se vital para um carro bem sucedido.
A aderência que os carros pós Lotus 78 tinham era incomparável com seus antecessores, equipados apenas com aerofólios. A suspensão era ainda mais firme para suportar a força vertical adicional sem que o carro batesse no chão. A velocidade nas curvas era muito maior.
Desta vez, um carro que derrapasse como antigamente não servia. O carro tinha que contornar as curvas corretamente em uma trajetória certa com o mínimo de escorregamento, pois os pneus já trabalhavam de forma a serem mais eficientes quando totalmente carregados.
Os primeiros anos foram difíceis, era uma tecnologia nova e muito suscetível a variações. Qualquer diferença na altura do carro em relação ao solo afetava de forma brusca a downforce gerada.
Alguns pilotos da “geração anterior” aos efeitos do assoalho venturi não se adaptaram bem. Estavam acostumados a ter o carro na mão com as derrapagens controladas, mas, uma vez que elas se tornavam um problema para um carro rápido, não acompanhavam os demais.
Mario Andretti inaugurou a era do efeito solo, com o primeiro carro e o primeiro campeão a utilizá-lo. Outros pilotos de sucesso nessa época foram Nelson Piquet, Niki Lauda (que se adaptou muito bem), Carlos Reutemann, René Arnoux e Alain Prost.
Nesta mesma geração, incluo a era Senna. Os carros mudaram bem do começo dos anos 80 até o começo dos anos 90. Vieram os motores turbo, depois foram banidos, mas as reações dos carros eram bem parecidas. O efeito solo também foi banido, com o assoalho plano no centro do carro e apenas o extrator na traseira. A downforce ainda era algo significativo, mesmo sendo menor que nos carros-asa, mas o conjunto todo do monoposto ainda era analógico.
A suspensão trabalhava de forma bem firme, suportando as forças aerodinâmicas e as demais cargas dinâmicas. Os freios já eram de compósito de carbono, mas longe do que são hoje em dia. As trocas de marcha eram manuais, com alavanca e padrão H.
Comparando o Lotus 78 de Mario Andretti com o MP4/6 de Senna, no fundo eram carros similares, salvo as devidas proporções. Ambos contavam a aerodinâmica para gerar as principais forças no contorno de curvas. Ambos eram pilotados “no braço”, com trocas de marcha manuais e o desempenho do carro dependendo totalmente da tocada do piloto e do acerto feito no box. Pouco era possível ser ajustado pelo piloto, como algumas configurações do motor, as barras antirrolagem e o balanço de frenagem.
No primeiro vídeo, Prost pilota em Zandvoort no ano de 1983, depois duas gravações de Senna, a do meio em Suzuka e a terceira Mônaco, a famosa volta de classificação espetacular em 1989. Também são pilotagens similares, carros ariscos, uma mão fora para trocar as marchas e muitas correções.
Senna, Prost, Piquet, Mansell, Patrese. Nomes que andaram muito bem nesta época. Os carros eram muito rápidos, mas não eram fáceis de pilotar. A agilidade de um F-1 deste tempo era grande, mas ainda poderia ganhar mais com alguns recursos que viriam com uma inovação que mudaria tudo.
Essa inovação chamava-se FW14 e vinha com o carimbo da equipe Williams.
ELETRÔNICA EMBARCADA – A TERCEIRA REVOLUÇÃO
Quando os primeiros carros testaram sistemas eletrônicos na F-1, pouco impacto teve no esporte. Entretanto, com o surgimento do FW14, o pacote todo foi acertado e a eletrônica tinha definitivamente chegado para ficar na categoria.
Enquanto as demais equipes trabalharam em elementos independentes, inclusive mesmo a famosa suspensão ativa que já havia sido testada pela Lotus, a Williams fez um conjunto completo. Acelerador eletrônico, suspensão ativa eletrônica, diferencial eletrônico, controle de tração e freios ABS. Tudo isso funcionando bem de uma vez só.
A tocada do FW14 por Mansell e Patrese ainda era similar aos concorrentes, mas já trazia algumas facilidades para o piloto. O controle de tração e a suspensão ativa atuavam em conjunto, interferindo diretamente no rendimento do carro. Mesmo que as reações do carro fossem parecidas com os demais carros, o FW14 começou a trilhar o caminho que levaria aos carros de hoje em dia.
Por ser o primeiro, o FW14 teve suas dificuldades. A calibração dos sistemas eletrônicos era quase que manual, acertada pelos engenheiros com base em muitos dados e estudos feitos. Na época, mapeavam a pista e informavam ao carro como ele deveria se comportar, o que com o passar do tempo, passou a ser mais automatizado com sistemas retroalimentados.
Uma mudança que já começou a surtir efeito com o FW14 foi a adição de comandos dentro do cockpit para o piloto fazer os ajustes nos sistemas eletrônicos. Os três comandos na lateral direita regulam a suspensão ativa, sendo um para a altura da suspensão dianteira, um para a traseira e um para o controle de resistência ao rolamento.
No volante, um botão acionava uma pré seleção da altura do carro com a frente mais elevada nas retas para aumentar a velocidade máxima. Outro botão acionava as trocas de marcha automáticas para cima.
Do FW14 aos modernos F-1, a evolução técnica foi enorme. Hoje, os carros têm motorização híbrida, uma aerodinâmica extremamente sofisticada e sistemas eletrônicos no carro todo. Não é mais a suspensão ativa da Williams de Mansell, mas inúmeros fatores são controlados pelo pilotos com uma infinidade de opções de regulagem. O vídeo acima mostra Mansell com o FW14, numa pilotagem mais suave que as de Senna nos vídeos anteriores.
Os carros de meados dos anos 90 para frente começaram a ter estes recursos eletrônicos que exigiam interferência do piloto. Schumacher e Häkkinen foram grandes pilotos deste tempo, que iniciaram as carreiras na F-1 no tempo pré-eletrônica, onde aprenderam a domar o carro no braço, e se aproveitaram muito bem do começo da era da eletrônica, que ainda era rudimentar se comparado com os carros de hoje.
Para os carros atuais, além dos reflexos muito rápidos que um piloto precisa ter pois o carro é extremamente ágil, também é preciso um grande conhecimento dos acertos que precisam ser feitos a cada curva para o máximo de desempenho do equipamento.
Hamilton é o caso do piloto perfeito para o seu tempo. O equipamento é bom, sim, e muito, mas ele também sabe como utilizá-lo perfeitamente. Podemos dizer que antigamente, do tempo de Senna para trás, os pilotos pilotavam por instinto, e hoje, pilotam com a cabeça.
Pode reparar nos vídeos acima como os comandos do volante são utilizados pelo pilotos. Obviamente não são todos os ajustes que são alterados numa volta, mas, uma vez definidos os principais parâmetros, alguns botões do volante são usados.
Imagina dizer para um piloto dos anos 60 como Jim Clark que com alguns botões no volante é possível ajustar o diferencial para diferentes condições de aceleração, de forma independente, algo que seria preciso desmontar o transeixo todo para ajustar no seu tempo.
Comparativo dos volantes da McLaren ao longo dos anos (Fonte: McLaren)Na imagem acima vemos bem como o volante de um F-1 evoluiu. Só por esta comparação, já conseguimos entender que o trabalho do piloto também mudou ao longo do tempo, que passou de apenas usar o volante para virar as rodas para ajustar todos os parâmetros (permitidos pelo regulamento) do carro instantaneamente.
Só por isso, já é difícil comparar pilotos de tempos diferentes. Não temos como saber se Farina se daria bem pilotando um Ferrari de Schumacher, ou se Senna conseguiria manter seu padrão de grande piloto acima da média com o Mercedes de Hamilton.
E OS PNEUS?
Provavelmente está se perguntando porque não falei dos pneus, que mudaram da água para o vinho ao longo dos anos. Ótimo ponto, mas a resposta é relativamente simples. A evolução dos pneus ocorreu de forma bem gradual.
Dificilmente tivemos casos de pilotos que correram com pneus muito diferentes ao longo da carreira na F-1, talvez somente os que começaram a correr nos anos 60 e pararam no final dos anos 70, mas mesmo assim foi uma mudança gradual ao longo de mais de 10 anos. Para alguns foi até um choque quando os pneus mudaram de forma drástica, como conta Bird Clemente em uma entrevista a Livio Oricchio para a Quatro Rodas, comparando os estreitos pneus dos Interlagos com os slicks do Maverick Divisão 3.
“Na pista, eu estava acostumado com os berlinetas Willys, de pneus estreitos, e me caracterizava pelo controle do carro sob condições de pouca aderência. A velocidade em curva era determinada pela habilidade do piloto. Mas tudo mudou. Em 1973, fui disputar a Mil Milhas Brasileiras com um Maverick superpreparado, com pneus slick. O carro grudava no asfalto. Nos treinos fiz o que eu fazia com os berlinetas, forçar a escapada com as quatro rodas, corrigindo. Enfim, tirar o tempo no braço. Ao voltar aos boxes, descobri que eu fora mais lento. Com aqueles pneus, tudo o que eu tinha de fazer para ser rápido era, basicamente, acelerar. Disputei a prova e ganhei, mas decidi parar de correr. O automobilismo que eu tanto vivera nos anos 60 não mais existia. O desafio do piloto passou a ser outro. Não era mais para mim, amante da arte de o piloto ser o maior responsável pelo desempenho do carro.”
Diferente do aerofólio ou do extrator de ar, que surgiram literalmente de uma hora para outra, os pneus evoluíram gradativamente, acompanhado as demais melhorias que surgiram ao longo dos anos. Os pneus nos anos 30 não eram muito diferentes dos pneus dos anos 50. Começaram a ficar mais largos nos anos 60, chegando às enormes medidas nos anos 70, bem quando tornaram-se totalmente lisos (slicks).
Na imagem abaixo podemos ver os modelos de pneus de corrida da Dunlop e sua evolução. Aos poucos foram ficando mais largos, com tipos diferentes de construção. No caso do relato de Bird Clemente, ele teria sofrido com os novos pneus pois o salto teria sido equivalente a passar do pneu de 1958 para o de 1968 de uma hora para outra.
É incomparável o nível de aderência de um pneu moderno com um pneu dos ano 80, mesmo ambos sendo largos e lisos, mas essa evolução foi lenta, de pouco em pouco, não causou uma grande mudança na forma de se pilotar de uma hora para outra.
A motorização moderna, com seus sistemas híbridos e regeneração de energia, também não entraria nesta questão, por estar junto com o “pacote eletrônico”. O que o piloto precisa gerenciar em função do motor elétrico e seus respectivos sistemas apenas entram na já elevada conta de comandos disponíveis no volantes para serem operados.
Talvez na próxima mudança de regulamento da F-1, que vai mudar as dimensões dos pneus de aro 13 para 18 polegadas, o comportamento dos carros possa sofrer alterações, mas, mesmo assim, não deve ser tão impactante como foi o a chegada do efeito solo, por exemplo.
Vamos ver qual será a próxima grande mudança que mude o cenário atual na F-1, o que pode demorar a acontecer, uma vez que tudo é amarrado pelo regulamento, bem diferente dos tempos anteriores em que as inovações eram criadas de forma mais livre, e, depois, regulamentadas.
De qualquer jeito, ainda estamos na fase da eletrônica, e devemos ficar nela por um bom tempo, e os pilotos de destaque, talvez se renovem pela idade.
E continuamos com a questão sem resposta de quem foi o melhor piloto, que na verdade, deveria ser, quem foi o melhor piloto de sua própria era.
MB