A história de como a Ford venceu a Ferrari na épica batalha de Le Mans nos anos 60 é bem conhecida hoje em dia. Virou até filme, o qual recomendo a quem ainda não assistiu: “Ford vs. Ferrari”. Existem falhas históricas no enredo? Sim, mas pela magia do cinema, podemos relevar.
A criação do GT40 foi de longe o maior investimento que um fabricante fez em um carro de corrida com o objetivo de vencer uma prova específica. É até difícil medir quanto dinheiro foi gasto no seu desenvolvimento, dada a “carta branca” que a equipe tinha, contanto que no final do dia a Ferrari comesse poeira da Ford.
De fato, não apenas estava em jogo a vontade de acabar com o reinado de Enzo Ferrari na pista francesa de La Sarthe, depois das desavenças comerciais (e pessoais) entre as duas empresas (e seus chefes), mas a conquista de um mercado nunca antes explorado com sucesso pela Ford ou nenhuma outra empresa americana.
O GT40 só conseguiu superar os Ferrari com seus sofisticados V-12 quando Carroll Shelby abortou o uso do small block de 5 litros e passou a usar o big block de 7 litros que a Ford havia desenvolvido. Mesmo sendo maior e mais pesado, o 7-litros era mais durável e podia entregar ainda mais potência.
Ironicamente, este 7-litros, conhecido como o Ford 427 pol³, nasceu oriundo de uma restrição sobre competições imposta pelo governo e acordado entre os fabricantes.
A GUERRA DA POTÊNCIA
Por este nome, ficou conhecida a disputa que estava levando a um rápido aumento na potência dos motores por parte das fábrica chamadas de The Big Three (as Três Grandes, no caso, GM, Ford e Chrysler). Nos anos 50, os fabricantes partiram para conquistar o público jovem, ávido por carros velozes, reflexo do que se viu na Europa durante a Guerra.
Novos modelos surgiram, como os Chrysler 300 que puxaram boa parte da disputa para ver quem fabricava o carro com motor mais potente. Vieram também os carros esporte, como o Corvette da GM e o Ford Thunderbird.
Vendo o rápido aumento na velocidade do carros, geralmente nas vias públicas, o governo interveio. Julgava-se perigoso carros cada vez mais potentes nas mãos de pessoas comuns, e os fabricantes estavam incentivando o consumo, obviamente, era um novo nicho riquíssimo a ser explorado.
Medidas restritivas não tardaram e em 1957 o governo americano, junto com a AMA (Automobile Manufacturers Association, que é a Associação de Fabricantes de Automóveis dos Estados Unidos), criou uma resolução que proibia os fabricantes de automóveis a fazer propagandas que incentivassem o uso de carros potentes. Na verdade, não podiam mais anunciar os números de potência dos motores ou velocidade máxima dos carros, como forma de tentar reduzir o uso de carros de forma irresponsável pelos clientes em prol da segurança.
Balela. Se a preocupação fosse realmente sólida, a proibição não viria nas propagandas, mas sim no produto. A proibição de se fabricar e vender carros potentes demais para o público colocaria um degrau na segurança. Mas, foi mais uma ação “para inglês ver”, pois o governo não iria bloquear a venda de milhares de novos carros a contribuintes felizes.
Além das restrições nas propagandas, os fabricantes também não poderiam mais investir e participar diretamente de competições automobilísticas. Equipes de fábrica nas categorias locais como a Nascar estavam fora de cogitação.
Seria uma perda considerável para a imagem das marcas, pois a máxima “vença do domingo, venda na segunda” (win on Sunday, sell on Monday como os americanos diziam) estava crescendo dia a dia, e o marketing feito nas pistas de fato refletia em vendas nas concessionárias.
As corridas acabaram por causa disso? Com certeza não. Na verdade, criou-se outro grande nicho, um pouco mais afastado da publicidade convencional. Uma vez que os fabricantes não poderia mais fabricar ou investir em competições diretamente, começaram a fabricar peças opcionais de alto desempnho, que poderiam ser compradas em qualquer concessionária. E, quem as comprava? Equipes de corrida!
Esta prática durou alguns anos. Diversos novos modelos ainda surgiram e equipamentos de performance oferecidos. Mesmo sem participação oficial, as fábricas investiam em motores e peças para oferecer mais desempenho.
No começo dos anos 1960, a GM e a Chrysler já não disfarçavam muito que seus produtos para venda ao público mantinham o objetivo de conquistar os que queriam desempenho. Novos motores na Nascar e nas pistas de arrancada dominavam o cenário. A Pontiac, divisão do grupo GM, tinha motores que se destacavam há anos, oriundos de desenvolvimentos da GM para arrecadar fãs de desempenho.
LEE IACOCCA, O FIM DO ACORDO E A FORD TOTAL PERFORMANCE
Henry Ford II nunca gostou de investir em automobilismo. Em seus recentes anos na liderança da Ford Motor Company, vendo acontecimentos como a tragédia de Le Mans em 1955 e um acidente similar na Nascar em 1957 (que foi um dos gatilhos para a criação das restrições), ele entendia que o automobilismo poderia trazer uma imagem negativa à empresa.
O jovem executivo que estava trilhando seu caminho dentro da Ford na área de vendas, Lee Iacocca, como vice-presidente da Ford, teve a chance de mostrar seu potencial, que era muito bem visto por Ford II, e ser o responsável pela divisão de automóveis. Com isto, ele teria nas mãos a liderança e o dever de entregar novos produtos de sucesso ao mercado.
Lee mostrou a Henry II que, mesmo com o acordo vigente, a GM estava envolvida em competições indiretamente e investindo pesado em motores de grande cilindrada. Chevrolet e Pontiac dominavam a Nascar, ganhando quase todas as provas do ano. A Chrysler investia também nas pistas de arrancada da NHRA (sigla em inglês de Associação Nacional de Hot Rod). E a Ford estava ficando para trás.
Era uma questão de sobrevivência. Se a Ford se mantivesse dentro do acordo, perderia ainda mais mercado. Mas, para complicar, Henry Ford II era o presidente da AMA, a associação que instituiu a proibição. Ford tentou convencer a GM no sentido de estipularem algum acordo para que ambas pudessem desenvolver componentes de performance e manter a disputa entre as empresas equilibradas, mas nunca viu uma resposta da concorrente. Era a gota d’água.
Em 1962, Henry Ford II cedeu aos argumentos de Iacocca e anunciou publicamente que estavam fora do acordo de 1957 e que investiriam em carros de alto desempenho, propagandas agressivas e em competições. Era o fim do acordo em prol da segurança. A Ford atacaria agora com o slogan Total Performance.
DOS OVAIS E ¼ DE MILHA PARA LE MANS
Como uma ação rápida necessária para recuperar o terreno perdido para a GM e a Chrysler, a Ford intensificou os investimentos em um novo motor, que estava sendo projetado inicialmente como uma possível arma caso o rumo fosse para o lado do que exatamente aconteceu, a Ford partir para a briga.
Paralelamente, a GM emitiu um comunicado interno que a Chevrolet, Pontiac e suas outras divisões estariam se retirando totalmente de qualquer forma de competição automobilística. Havia um grande cerco já rondando a empresa, uma vez que era nítido que estavam burlando o acordo de 1957 há tempos.
O novo motor da Ford, um V-8 big block de 427 pol³ (7 litros), estaria pronto para sua primeira aparição em 1963, no novo Ford Galaxie 500 fastback. Derivado da já conhecida família de motores FE (Ford-Edsel), o 427 era uma evolução da segunda geração dos motores Y-Block (Bloco-Y, por causa do formato do bloco do motor que se visto de frente, lembrava um Y).
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O novo motor tinha componentes diferenciados, como pistões de alumínio, bielas reforçadas e uma configuração única das fixações dos mancais do virabrequim, além de taxa de compressão diferenciada e comandos de válvulas mais agressivos. Muitas destas características vieram de experiências da Ford com um motor experimental de 8 litros que havia sido feito em 1961.
Uma série de cerca de 200 Galaxies foram construídos especialmente para competições e desempenho máximo, chamados de Lightweight (baixo peso, numa tradução livre, indicando que era carros com redução de peso e componentes especiais). Carroceria com peças em compósito de fibra de vidro e em alumínio ajudavam a reduzir o peso total do carro.
Os carros de rua poderiam ser encomendados em concessionárias, identificados com o código “R” da lista de opcionais. Em um carro de mais ou menos US$ 3 mil, só o R-Code, que trazia o motor e configurações de câmbio BorgWarner T10 de alumínio e eixo traseiro com relação 4,11:1, custava cerca de US$ 575,00. Eram também identificados como sendo do ano-modelo 1963 ½.
O enorme 427, equipado com todos os itens de performance possíveis da Ford e dois carburadores quadrijet da Holley, entregaram uma potência acima de 500 cv. Número oficiais nunca foram divulgados. Era a configuração mais potente do motor.
Tanto para a Nascar quanto para as provas de arrancada da NHRA, o novo Galaxie 500 Lightweight parecia ser uma promessa otimista. Dick Brannan, o homem das arrancadas na Ford, coordenou os trabalhos para os carros voltados a esta categoria. Tanto nas classes Stock como Super Stock o novo 427 era promissor.
As equipes da Nascar receberam o apoio necessário para preparar o novos Galaxies para a primeira grande corrida de 1963, a 500 Milhas de Daytona. Nomes fortes da categoria como a Holman Moody e Wood Brothers Racing logo se interessaram pelo novo 500 e seu potencial. Em função das limitações do regulamento da Nascar, o motor só poderia ter um carburador. A Ford já havia acertado uma das configurações do motor para esta condição, então o 427 estaria otimizado para o grande superspeedway.
Em Daytona, sem a presença “oficial” da GM, a Ford teria uma boa chance de mostrar ao público que estava de volta ao automobilismo com força total. E foi o que aconteceu. Os Galaxies dominaram a corrida. O vencedor, “Tiny” Lund, com seus quase 130 kg, que havia sido chamado de última hora para pilotar o carro da equipe da Woods Brothers como substituto de Marvin Panch, que se acidentou testando um Maserati, deu à Ford a primeira de muitas vitórias com o 427.
Não apenas nos ovais o 427 foi a estrela, mas nos 1/4 de milha da NHRA também. Os Lightweight conseguiram se impor frente aos Impalas 409 da Chevrolet e os Dodges.
SHELBY E O 427
Enquanto a Ford colhia os frutos de seu novo 427 nas pistas dos Estados Unidos, o projeto do GT40 estava caminhando. Em 1964 e 1965, o novo GT não conseguia os resultados que todos, principalmente Ford II, esperavam. O carro era instável, pouco confiável e não tinha condições de brigar de igual para igual com a Ferrari em Le Mans.
Quando o líder do projeto, o incansável Carroll Shelby, decidiu partir para uma total reformulação do GT40, o 427 do Galaxie 500 caiu como uma luva. Na época em que o time de projetos do GT40 adotou o 7-litros da Nascar, este já estava em sua segunda versão, com melhorias implementadas que o deixaram ainda melhor.
Shelby ainda queria uma extrema redução de peso no motor, pois o novo 7-litros era bem mais pesado que o antecessor de 5 litros. A Ford conseguiu tirar incríveis 20 kg do motor, usando muito alumínio, e que agora pesava “apenas” 250 kg. O motor também passou a usar o sistema de lubrificação por cárter seco e apenas um carburador Holley 780 cfm. (pés cúbicos por minuto)
Vindo diretamente das categorias menos sofisticadas do automobilismo, aos olhos dos europeus, o 427 do Galaxie 500 foi a salvação da Ford. Uma vez tudo instalado e ajustado no GT40 para enfrentar 24 horas de “tortura mecânica”, como dizem, o resto é história.
MB