É difícil imaginar um dos maiores carros esporte de todos os tempos fora de seu habitat natural, as estradas bem pavimentadas e pistas de corrida. E foi justamente o que a Porsche, propositalmente, fez nos anos 80.
A marca de Stuttgart consagrou-se no mercado mundial graças ao sucesso de seus carros com desempenho impressionante e pensamento fora do padrão. O motor traseiro de cilindros contrapostos (boxer) não parecia em nada com os concorrentes italianos e ingleses, com seus V-6, V-8 e V-12, ou os motores de seis cilindros em linha, largamente utilizados na época da ascensão da marca.
Ferdinand Porsche foi um gênio, e a ideia-base dos carros que levariam seu nome iniciou-se muitos anos antes, no projeto que se tornaria o Fusca. O primeiro Porsche originou-se do KdF, e as premissas se mantiveram desde o 356 até o 911.
As características dinâmicas, em especial a capacidade de tração dos Porsches, eram os diferenciadores. A simplicidade mecânica também. Criados para serem carros esporte, os Porsches tinham tudo para se destacarem nas pistas. O automobilismo estava nas raízes da marca, uma vez que o primeiro Porsche nasceu para disputar uma corrida, como falamos aqui.
As competições elevaram o patamar da Porsche de um fabricante de um estranho carro alemão que lembrava um Fusca para um dos maiores objetos de desejo dos interessados do mundo. Do 356, passando pelo lendário 550 Spyder, até a chegada do 911, o principal produto da empresa, as pistas do mundo todo testemunharam o sucesso da marca.
Com o tempo, a Porsche dominou as principais categorias cenário global. Venceu em Le Mans e em Daytona, as principais corridas de longa duração do mundo. Venceu a lendária Targa Florio italiana nada menos que onze vezes, sendo a maior vencedora da prova. Já era sabido que um carro vencedor nas pistas refletia em um carro com boas vendas ao público comum.
Não apenas nos circuitos do mundo a Porsche via uma boa forma de promoção, mas fora deles também. Os ralis eram muito famosos da Europa, e o público trazia boa fonte de renda para as empresas. Nos primórdios das competições da Porsche, muitas corridas em que participavam eram em provas fora de circuitos, como subidas de montanha, ou a própria Targa Florio e a Mille Miglia. Os pequenos carros da marca se destacavam, graças à tração superior e agilidade.
Por anos, a Porsche se dedicou também ao mundo off-road com o 911 e outros modelos como o 924 e o 928. Surpreendentemente, com sucesso. Pelo visto, não bastava dominar os circuitos no mundo, mas também queriam mostrar que seus carros eram robustos, confiáveis, e capazes de superar qualquer obstáculo.
O 911 NOS RALIS
Seguindo os passos de seus irmãos mais velhos e mais exclusivos, como o 356 e o 904 GTS, o 911 entrou para o mundo dos ralis em 1965, praticamente apenas um anos após seu lançamento no mercado. Foi o primeiro evento esportivo que o 911 participou oficialmente representando a fábrica.
A Porsche queria mostrar ao mercado que seu novo produto era não só veloz, mas resistente e confiável. O que melhor do que um rali para comprovar estes atributos?
Na sua primeira participação em competição, o Rali de Monte Carlo, um 911S pilotado por Herbert Linge, um dos primeiros funcionários da empresa que trabalhou com Ferdinand Porsche e piloto de prova, e navegado por Peter Falk, engenheiro de desenvolvimento e testes da marca, terminou a prova em quinto lugar (vencedor da sua categoria), enquanto que um 904 ficou em segundo lugar na classificação geral, perdendo para o Mini Cooper de Timo Mäkinen.
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Era o começo de uma fase importante para o 911, mostrando seu potencial competitivo ao mundo. A competência do modelo foi consagrada em 1967 quando o inglês Vic Elford foi campeão europeu de rali com um 911S. Elford também foi piloto de F-1 e de esporte protótipo. No mesmo ano de 1967, com um 911 S , ele venceu a 84 Horas de Nürburgring. O carro mostrou-se imbatível quando o assunto era velocidade e resistência, características mundialmente reconhecidas até hoje nos carros da marca.
No ano seguinte, a Porsche venceu o rali de Monte Carlo com o novo 911 T com Elford ao volante. Na verdade, o 911 T terminou em primeiro e segundo lugares em uma das provas de rali mais consagradas da Europa. Diversos bons resultados seguiram para a Porsche.
O próximo passo para o 911 no mundo off-road seria enfrentar um dos mais duros ralis do mundo, conhecido como o Rali Safari, cruzando o leste da África, na região do Quênia. Para e prova de 1973, a Porsche levou o novo Carrera RS para a competição, mas a severidade do terreno africano castigou os carros que não conseguiram terminar. No ano seguinte, depois de muitas mudanças, o 911 terminou em segundo lugar, enfrentando um terreno antes desértico, agora parcialmente alagado pelas chuvas.
Depois de 1974, a Porsche optou por focar seus gastos nas provas de esporte protótipo, e abandonou os campeonatos de rali como equipe oficial. Em 1978, nas mãos de equipe particular, o 911 SC conseguiu repetir o feito de terminar em segundo lugar no Quênia, agora com a pintura nas tradicionais cores da Martini Racing, patrocinador da marca nas provas de longa duração de circuitos asfaltados.
Faltava um grande evento mundial para o 911 tentar conquistar, e o recém-criado rali Paris-Dakar cairia como uma luva. Com este objetivo, a marca voltou oficialmente aos ralis. Além disso, estava nos planos da empresa disputar o campeonato mundial de rali com um novo carro que viria a ser o 959, mas precisava de desenvolvimento.
O PORSCHE 953, O 911 4X4
Com o crescimento da categoria conhecida como Grupo B no campeonato mundial da rali, lançada em 1982, a Porsche tinha interesse em colocar um carro na disputa. A Audi estava firme e forte na categoria com o revolucionário Quattro turbo, dando muito trabalho aos italianos da Lancia, os alemães da Opel e o franceses da Renault e Peugeot.
A Porsche queria sua fatia neste mercado, e iniciou os desenvolvimento de um novo carro em 1981, baseado no 911, mas com tração integral e motor turbo, seguindo os moldes da Audi. O conceito se tornaria o 959, o mais sofisticado carro de sua época, com controles eletrônicos de suspensão e diferenciais, freios ABS e várias outras modernidades.
Uma forma de colocar a prova o conceito da tração integral seria trazer de volta o programa de rali da marca, e o Paris-Dakar seria o teste definitivo. Nada menos que 12 mil quilômetros cruzando o deserto do Saara, passando por sete países, além da largada na França.
Um dos maiores responsáveis pelo projeto foi Helmut Bott, chefe de desenvolvimento da Porsche e um dos pais criadores do 911. Trabalhando na Porsche desde os anos 50, no desenvolvimento do 356 e muitos outros modelos de corrida, Bott era uma referência quando o assunto era criação de novos projetos e testes de certificação. Ao longo dos anos, sua experiência ajustou as falhas iniciais do 911 e o transformou em um dos maiores carros esporte que o mundo conheceu.
Outro nome importante para o projeto off-road era Roland Kussmaul. Contratado como engenheiro especializado em testes, trabalhou no desenvolvimento do tanque de guerra Leopard (projeto Porsche) e depois foi “promovido” ao departamento de competição da marca em meados dos anos 70, onde foi escalado para trabalhar junto com os clientes que corriam com o 911 nos ralis. Trabalhando na lendária pista de testes da marca em Weissach, Kussmaul pegou para si os trabalhos de testes e melhorias dos carros.
Como forma de aprendizado e desenvolvimento “in loco”, Roland começou a participar de provas de rali com os carros da Porsche para coletar dados e vivenciar o que os carros ofereciam, em especial, entender as dificuldades e propor formas de corrigi-las. Participou de diversas provas com o 924 para melhorar o projeto, e teria uma função similar no novo projeto com o 911.
Como o 959 ainda estava em fase de projeto, a Porsche optou por testar o sistema de tração em uma carroceria convencional de 911 SC adaptada. Sem a parte eletrônica que o 959 teria, o sistema puramente mecânico montado no 911 teria que suportar os maus tratos do deserto. O motor turbo previsto para o novo modelo também não seria usado, mas uma versão preparada do 3,2-litros de seis cilindros da produção. Uma das preocupações era reduzir a taxa de compressão para que o motor pudesse funcionar com combustíveis de menor octanagem disponíveis ao longo do percurso.
Com um curso de suspensão de incríveis 27 cm, o modelo que ficou conhecido internamente na Porsche como o 953, estaria apto a encarar os desafios do deserto. O sistema de tração integral contava com um bloqueio manual do diferencial central para ajudar nos terrenos mais severos com pouca aderência. A distribuição normal de torque era de 69% para o eixo traseiro e 31% para o eixo dianteiro.
Para conseguir enfrentar o rali mais duro do mundo e seus milhares de quilômetros a serem percorridos, a Porsche utilizou todo o espaço do bagageiro dianteiro com um enorme tanque de combustível de 120 litros, e ainda adicionou um extra de 150 litros dentro do carro, atrás dos bancos do piloto e navegador. Alcance e consistência são os fatores primordiais numa prova deste tipo.
Três carros foram feitos, cada um com uma dupla de piloto e navegador. O carro número 175 teria Jacky Ickx e Claude Brasseur, o carro 176 teria René Metge e Dominique Lemoyne e o 177 seria pilotado pelo engenheiro da fábrica, Roland Kussmaul e Erich Lerner, também funcionário. Os três carros receberam a pintura da Rothmans, principal patrocinador da marca na época.
O carro de Kussmaul e Lerner seria um carro de apoio para os outros dois. Foi apelidado de Feuerwagen, ou carro de bombeiro, para ajudar a “apagar os incêndios” ao longo da corrida, carregando até peças sobressalentes para os companheiros. Seria mais lento, mas ainda os acompanharia de forma mais eficiente que os dois caminhões de auxílio da equipe.
No começo da prova, o carro de Ickx teve problemas e ficou bem para trás, caindo praticamente para último lugar. Os outros dois carros seguiram caminho, até que o carro 177 também enfrentou problemas. O desempenho do 953 era incrível. Ágil, veloz e com ótima capacidade de tração graças ao 4×4 preliminar do futuro supercarro alemão, o carro 176 disparou para uma vitória histórica. O Porsche 4×4 era tão bom que Jacky Ickx conseguiu se recuperar de último para sexto lugar ao final da prova, e o terceiro carro, que enfrentou problemas mais graves, terminou apenas em 26°.
Foi o sucesso do conceito que a Porsche vislumbrou como possiblidade para disputar o campeonato mundial de rali com o 959. Estava certo que este era o caminho.
“No total, éramos dezoito pessoas para cuidar de três carros, incluindo piloto, navegador e mecânicos, que era um número pequeno se comparado com outras equipes. Estes mesmos competidores acreditavam que os Porsches não seriam uma ameaça a eles. Nunca acreditaram que aqueles mesmos 911 poderia superar todos os obstáculos que a África nos deu!” – Jacky Ickx.
O PRIMEIRO 959 NO DAKAR, 1985
Com o sucesso do 953 no seu ano de estreia, a Porsche se entusiasmou e partiu para o ataque no ano seguinte com o 959, já em fase de preliminar de desenvolvimento e que poderia ser colocado à prova no teste mais duro do mundo.
Três carros foram feitos para a corrida de 1986. Novamente Jacky Ickx e Brasseur estariam juntos, agora no carro 185. O 186 seria conduzido pelos vencedores de 84, Metge e Lemoyne, e o terceiro carro teria como piloto e navegador Jochen Mass e Ekkehard Kiefer, respectivamente.
A carroceria do 959 estava pronta e foi utilizada, aproveitando assim a construção mais moderna e resistente se comparada com o 911. Seria um ótimo teste para a rigidez e resistência do monobloco do 959. O sistema de tração integral permaneceu o mesmo do ano anterior com melhorias, mas ainda sem toda a sofisticada parte eletrônica, bem como o motor de aspiração natural do Carrera.
O curso da suspensão foi aumentado em mais alguns centímetros, graças a melhorias dos componentes que estavam mais próximos aos do 959 em sua versão final.
Tudo parecia promissor. Novo chassi, mesmas duplas nos dois carros principais, sendo que em ambos os carros, os pilotos já haviam vencido a corrida. Metge vencera com o 953 e Ickx venceu um ano antes, correndo com um Mercedes-Benz Classe G.
Mas, o deserto não perdoa nem mesmo os melhores. Ickx sofreu um acidente e o carro não conseguiu continuar. Metge perdeu o motor por conta de um vazamento de óleo. Nem depenando o terceiro carro de Kussmaul foi possível manter os 959 na prova.
Mais lições aprendidas, nova tentativa no ano seguinte.
SUCESSO NA ÁFRICA, 1986
Em 1986, a Porsche conseguiu implementar todas as características previstas para o 959. O sistema de tração integral eletrônico finalmente estava pronto para encarar o deserto, podendo ser uma grande ajuda na corrida. O sistema eletrônico era capaz de ajustar as características dos diferenciais e atuar também no motor.
Quatro modos de configuração foram disponibilizados para os pilotos selecionarem o mais adequado. O primeiro modo, denominado Tração, permitia pouco escorregamento nos diferenciais, como se fosse uma função bloqueante mas com atuação dos sensores eletrônicos para permitir algumas correções. O segundo modo, chamado Gelo, atuava no bloqueio progressivo dos diferenciais em função da tração disponível no momento. Era um modo que seria usado no 959 de rua também. O terceiro e quarto modo eram configurações automatizadas em que o computador tomaria as decisões de como ajustar todos os sistemas interligados com base no que os sensores mediam (velocidade, escorregamento, exigência do motor, etc.)
O motor finalmente seria equipado com turbocarregadores, como previsto para o 959 de rua. Os dois turbos eram montados em um arranjo chamado de turbos sequenciais, onde um turbo menor funciona em menores rotações do motor, e um outro maior atua em rotações mais altas, com objetivo de diminuir o chamado turbo lag e otimizar a entrega de potência.
Baseado no motor que seria usado no 959 de rua, com 2,8 litros, além dos turbos, outra novidade eram os cabeçotes arrefecidos a água, já usados no 956 de Esporte Protótipo no Grupo C. Depois de muitos problemas no desenvolvimento deste motor, finalmente estaria pronto para o maior rali do mundo seria um salto dos 240 cv do motor aspirado dos dois anos anteriores, para 400 cv.
Novamente, três carros inscritos. A única diferença na composição das duplas foi no terceiro carro. O companheiro de Roland Kussmaul agora seria Wolf-Hendrik Unger, um engenheiro de motores da Porsche também com experiência em participar de ralis como suporte, assim como Roland.
O novo 959 era rápido. Muito rápido. Desde o começo da prova no território africano, disparam na frente junto com os carros da Mitsubishi. Mas, novamente, o deserto se mostrou irredutível em não facilitar a vida da equipe. O carro de apoio, um Mercedes Classe G preparado com motor Porsche V-8, quebrou em menos de 200 km, assim como um dos dois caminhões. A solução foi passar o máximo de peças e equipamentos possíveis para dentro do 959 de Kussmaul.
Conseguindo superar os rivais da marca japonesa, os dois 959 de Ickx e Metge assumiram a ponta. O deserto ainda traria dificuldades. Numa região alagada pelas chuvas do Senegal, os carros líderes atolaram na areia úmida. Kussmaul havia encontrado um caminho seco, seguindo a trilha de um dos competidores da categoria das motocicletas, e retornou para ajudar a desatolar os companheiros.
Depois de liberar os dois carros, o próprio carro de Roland estava atolado, mas negou a ajuda dos companheiros para não atrasa-los, pois a chance de vitória era grande. Roland e Unger desatolaram o próprio carro e seguiram viagem.
O jogo da equipe deu resultado. Metge venceu o rali com Ickx em segundo. Kussmaul ainda conseguiu terminar em sexto lugar, mesmo atuando como carro de apoio, caminhão de peças e ajuda para desatolar os companheiros.
Finalmente o 959 conseguiu conquistar o mais duro rali do mundo, e não apenas com vitória, mas com 1-2 lugares.
O FIM DO 959 GRUPO B
Mesmo com o sucesso comprovado do conceito da Porsche nas provas de rali do mundo, o programa do Grupo B seria cancelado. A categoria estava fadada ao fim depois de muitos acidentes fatais nas provas curtas do campeonato mundial de rali.
Todo o trabalho feito no 959 off-road seria direcionado para as pistas. Um dos monoblocos foi convertido para criar o Porsche 961, que contamos aqui no AE, para disputar provas de longa duração como Le Mans.
O carro de rua ainda persistiu e foi lançado com grande sucesso. O 959 tornou-se o arquirrival do Ferrari F40. Enquanto o italiano era concebido sobre a força bruta e simplicidade, o 959 era o oposto. Total refinamento e sofisticação eletrônica nunca antes vista em um carro deste tipo. Nosso editor e amigo, o sueco Hans Jartoft contou aqui como foi guiar um 959.
Mesmo não tendo sido criado o monstro de 600 cv para o Mundial de Rali, a Porsche transformou todo o conhecimento adquirido no universo off-road para criar o mais sofisticado carro esporte do mundo, e dele evoluíram os sistemas de tração integral dos Porsches modernos, bem como a Audi fez com o quattro.
MB