Donald “Don” Panoz talvez seja um dos nomes mais subestimados do automobilismo mundial. Filho de imigrantes italianos, cujo sobrenome original era Panunzio, e foi alterado para Panoz quando migraram para os Estados Unidos, começou a vida profissional no ramo de farmácias, depois de servir como militar no Japão com a esposa.
Depois da fase militar, Don deixou a empresa para iniciar outra. Ele liderou o grupo de pesquisa que a inventou uma forma de aplicação de medicamento por contato com a pele, aqueles adesivos autocolantes que se colam no braço e ele transfere a medicação com o tempo. A empresa não queria produzir este tipo de produto, e Don não aceitou pois via que aquele produto tinha futuro.
Mudou-se para a Irlanda com a esposa, onde fundou outra empresa farmacêutica para fabricar seu adesivo, que deu certo e cresceu bem. Muitas variações foram criadas para medicações que devem ser aplicadas periodicamente e aceitam a absorção pela pele. Também é muito usado como forma de ajuda ao tratamento para parar de fumar, os adesivos de nicotina.
O casal teve um filho, Daniel “Dan” Panoz, que teve um grande interesse por carros e engenharia, e trabalhou para a Thompson Motor Company (TMC), uma empresa irlandesa familiar fabricante de carros esporte. Um dos mais conhecidos produtos da empresa foi o TMC Costin, criado por Frank Costin, irmão de Mike Costin, da Cosworth.
O TMC Costin era uma interpretação do Lotus Seven, bem similar visualmente, equipado com um motor 1,6-litros Ford e eixo traseiro rígido original do Ford Capri. O chassi tubular projetado por Frank Costin não era tão leve e minimalista quando o do Seven, mas era uma boa estrutura, apta a receber outros motores e com uma boa suspensão.
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Pouco tempo depois de entrar na TMC, a empresa acabou sendo encerrada por problemas financeiros. Panoz viu o potencial do Costin e fez uma oferta para comprar os direitos de projeto e fabricação do chassi. Nascia a Panoz LLC (equivalente a Ltda.) que, junto com a família Panoz, se estabeleceria novamente nos Estados Unidos, no estado da Geórgia.
O primeiro Panoz a sair da fábrica de Atlanta, a capital do estado, foi o Roadster de 1992. Com a base do chassi da TMC, a Panoz criou um novo carro, modernizado, mas com o espírito do Costin e do Seven, e do jeito americano de ser: com um V-8. Em 1995, veio a atualização do projeto, que chamou o carro de AIV (Aluminum Intensive Vehicle, numa tradução livre seria Veículo com emprego Intenso de Alumínio) por conta do novo chassi projetado em alumínio.
Depois de movimentar o mercado com o Roadster, a empresa tinha o objetivo de crescer e diversificar sua linha, uma vez que o Roadster tinha um público bem seleto. O primeiro GT da marca foi lançado com o nome Esperante, com motor V-8 dianteiro e tração traseira, bem ao estilo local, mas que só teria sua produção iniciada em 1999.
Don Panoz tinha uma visão um pouco diferente de seu filho, e propôs um caminho diferente, pelos autódromos do mundo.
O ESPERANTE GTR-1
Don não colocava muita fé de que o Roadster seria um projeto sustentável por muito tempo. O público que compraria um carro deste estilo era pequeno. Como não iria persuadir o filho a abandonar o projeto, pensou numa forma de promovê-lo, e aos poucos mudar o foco da empresa para produtos da linha do novo Esperante.
O automobilismo sempre foi uma excelente vitrine para os fabricantes. Ford, Ferrari, Porsche e tantos outros que o digam. Panoz já havia se estabelecido como um forte homem de negócios, e poderia aproveitar sua influência para tentar alavancar a marca Panoz com um carro de corrida.
Obviamente, o Roadster não seria a resposta para colocar num campeonato de grande relevância para mostrar o potencial da marca. O Roadster não foi feito para ser um carro de corrida, e tentar transformá-lo em um seria pura perda de tempo e dinheiro.
A Panoz criou a divisão Motorsport e contratou os serviços da Reynard para criar um novo carro em 1997, com uma concepção similar ao Esperante, para que fosse feito o paralelo claro entre o carro de corrida e o carro de rua. Deveria ter as proporções do Esperante, com motor dianteiro, capôm longo e habitáculo recuado.
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O carro teria um bom potencial, se o projeto fosse bem pensado desde o princípio. A Roush ficou responsável pela preparação de um V-8 Ford de 6 litros para o carro. Montado atrás do eixo dianteiro, isto tornaria o carro um motor central-dianteiro, que já ajudava na distribuição de peso ainda mais equilibrada, uma vez que o transeixo ficaria na teaseira,
O novo Panoz foi batizado de Esperante GTR-1, e seu objetivo maior seria Le Mans, a maior vitrine do automobilismo mundial para fabricantes. Antes de Le Mans, o GTR-1 faria sua prova de estreia nos Estados Unidos, em Sebring. Não foi um sucesso. Bem longe disso. Problemas e mais problemas jogaram o Esperante para o final da fila. Em paralelo, uma equipe europeia apoiada pela fábrica levaria o GTR-1 para competir no Velho Continente.
Uma unidade do GTR-1 teve que ser construído para ser homologado como um carro de rua, uma vez que o regulamento pedia que os carros da categoria GT1 fossem baseados em carros de produção, mesmo que unitários. Assim nasceram os equivalentes street version da Porsche, Nissan, Mercedes e Toyota.
Não demorou muito para que o estranho Panoz se revelasse como um forte competidor, vencendo sua primeira corrida apenas um mês depois de sua estreia. A pista de Road Atlanta viu o Panoz superar concorrentes como Porsche 911 GT1 e GT2. Desta prova em diante, o Panoz evoluiu a cada etapa, tendo bons resultados. Exceto em Le Mans, este, um fracasso, onde nenhum Panoz terminou a corrida.
ANTECIPANDO O FUTURO COM O Q9
O sucesso do GTR-1 nas pistas trouxe muita empolgação para a marca. Don Panoz era um visionário. Enxergava um grande potencial no carro e sabia que poderiam fazer ainda melhor. As experiências do GTR-1 mostraram que o grande V-8 consumia bastante combustível, e em provas de longa duração, alto consumo significa muitas paradas para reabastecer.
Deveria haver uma forma de tornar o carro mais eficiente, que não fosse diminuindo o tamanho do motor. O downsizing, técnica de utilizar motores menores com um rendimento maior, ainda era muito nova, e trazia muitos pontos a serem considerados. Um motor menor, de maior potência, trabalha mais próximo do seu limite, estando mais suscetível a quebras. Don não queria abrir mão do grande V-8 que trabalhava com folga, mas tinha que tornar o carro mais eficiente.
Don via como a indústria estava investindo fortunas em novas formas de propulsão, combustíveis alternativos e materiais mais leves para deixar os carros mais eficientes. A GM havia lançado o EV1, um carro de passeio totalmente elétrico, retornando aos primórdios do automóvel no final do século XIX e começo do XX, sem sucesso. Para Don, não fazia sentido apostar todas as fichas no motor elétrico, uma tecnologia que estava abandonada há quase um século nas aplicações automobilísticas, contra o motor a combustão interna que, ao contrário, tinha um século de evolução constante.
A resposta seria combinar as duas formas de propulsão. O motor elétrico, com enorme torque, ajudaria a impulsionar o Esperante junto com o V-8, que gastaria menos combustível. Para ser uma proposta viável, o motor elétrico teria que ser realimentado, e a frenagem regenerativa proveria tal energia que seria perdida ao vento, literalmente, em forma de calor.
A ideia que para muitos soaria maluca, fez todo o sentido para Don Gibson, da Zytek, empresa de tecnologia automobilísticaa que havia desenvolvido um Lotus Elise elétrico conceitual para ser apresentado no Congresso Mundial da SAE (Society of Automotive Engineers – Sociedade de Engenheiros Automobilísticos) em Detroit, em 1997. Panoz havia visto o Lotus-Zytek e sabia que Gibson era a pessoa certa para o desafio.
O pequeno Elise era um fenômeno desde seu lançamento, mantendo a tradição da Lotus de fabricar pequenos carros esporte com as melhores características dinâmicas do mundo. Transforma-lo em um carro elétrico, mantendo as suas características, era um desafio e tanto, e a Zytek aparentemente apostou que seria possível.
É bem possível que este Elise tenha servido de inspiração também para outro fabricante que mudaria totalmente o cenário mundial do mercado automobilístico.. a Tesla. O primeiro Tesla comercializado, 2008, foi um carro esporte de dois lugares, chamado Roadster (assim como o primeiro Panoz), que era de fato um Elise adaptado para ser 100% elétrico, fornecido diretamente pela Lotus.
Voltando ao Esperante, se fosse possível combinar a potência do V-8 com a regeneração de energia do sistema de propulsão elétrico, o carro em teoria seria capaz de reduzir o consumo de combustível ao longo de uma prova longa, fazendo menos paradas nos boxes e tendo vantagem contra os rivais, que gastariam mais tempo que eles nos boxes reabastecendo mais vezes.
A lógica estava perfeita, e proposta era correta, o desafio era tornar tudo isso viável. A Zytek entrou no projeto com o desenvolvimento do motor elétrico e o sistema eletrônico de gerenciamento. Seria um grande desafio criar um módulo de controle que interpretasse os comandos do piloto, as reações do carro, e gerenciasse se o motor elétrico estaria atuando como um gerador para carregar as baterias, ou como um motor para impulsionar o carro, nas proporções corretas para que nem freasse ou acelerasse demais ou “de menos”, e ao mesmo tempo controlar a carga da bateria e fluxo de energia do sistema todo.
Hoje, podemos pensar que é um sistema relativamente simples, uma vez que em um carro de corrida, normalmente falamos de toda força à frente, ou força total na frenagem, se comparado com um carro de rua que precisa ser muito mais linear para que seja imperceptível a atuação do motor elétrico. Ambos os casos são um desafio, e com vinte anos a menos de tecnologia, o pessoal da Zytek fez um trabalho excelente.
O motor-gerador elétrico da Zytek era uma unidade de corrente contínua de imãs permanentes, arrefecida a óleo, com seus próprios radiadores. Pesava mais ou menos 15 kg e tinha um diâmetro de 250 mm. Com uma potência de 180 cv, seria uma ótima adição aos quase 600 cv do V-8 Ford.
A Reynard modificou o projeto do chassi do GTR-1 para acomodar o sistema híbrido. Uma grande bateria ficaria posicionada ao lado do piloto, no lugar do passageiro dentro de um habitáculo de compósito de fibra de carbono, enquanto que o motor seria montado na entrada do transeixo traseiro, numa espécie de caixa de transferência que recebia e distribuía o torque vindo do motor elétrico e do V-8 da melhor forma que o sistema eletrônico julgava.
A empresa alemã Varta ficou responsável por criar a bateria, que era uma grande caixa com 260 células menores de Ni-MH (níquel metal-hidreto, como no GM EV1), uma tecnologia anterior à atual de íons de lítio) ligadas em série, capaz de gerar tensão de 300 V e que pesava perto de 170 kg.
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O novo Panoz foi chamado oficialmente de Q9, mas ficou mais conhecido pelo apelido que Don lhe deu: Sparky, que traduzindo seria algo como Faisquinha. Um toque carinhoso, alusivo ao novo sistema elétrico.
Para testar o Q9, a equipe David Price Racing que representava a Panoz na Europa, ficou com a missão de fazer o shakedown (primeiros testes de rodagem) e colocar quilometragem no carro para conhecê-lo e sanar possíveis problemas antes de sua estreia.
MUITO À FRENTE DE SEU TEMPO
O Sparky iria fazer sua primeira aparição nos treinos livres em Le Mans de 1998. A dupla de pilotos escalada era composta de dois britânicos: James Weaver e Perry McCarthy. Weaver era um piloto experiente, com bons resultados em Le Mans, inclusive. Perry era mais novo, mas já pilotava os GTR-1 convencionais desde o ano anterior. Perry ficou conhecido anos depois por ser o primeiro Stig (de macacão preto) do programa Top Gear.
Para montar a bateria no carro, os técnicos da Vatra pediam que o boxe fosse evacuado, por medida de segurança, e vestindo trajes de proteção, instalavam a bateria dentro do carro. Nunca antes um carro de corrida com uma bateria de 300 V havia sido colocado à prova. Vale lembrar que fibra de carbono é um material altamente condutor e os carros de corrida modernos são feitos assim. Qualquer erro pode causar um curto-circuito, e tensões elevadas como a da bateria do Q9, são perigosas.
Os treinos foram uma grande surpresa para a equipe. Infelizmente, uma surpresa negativa. O Sparky foi 12 segundos mais lento que o melhor Esperante GTR-1. Com 180 cv a mais que os demais Esperante ajudando a tracionar nas saídas de curva, era esperando que pelo menos um tempo próximo seria possível.
Com um lastro adicional de quase 200 kg, o Q9 não conseguia acompanhar os demais. A bateria era muito pesada, e mesmo com a potência extra do motor elétrico, o carro não era veloz como os demais. De um total de 59 carros que treinaram, o Q9 ficou com o 31° tempo, enquanto que os demais GTR-1 ficaram em 12° e 13°.
Alguns ajustes ainda poderiam ser feitos para o treino oficial, mas o peso extra era uma enorme cruz que teria que ser carregada. No dia da classificação o carro estava bem acertado, era fácil de pilotar, e a equipe estava esperançosa.
Como era preciso algumas poucas voltas com um tempo bom para classificar o carro para a corrida, o normal é que o carro seja equipado com pneus novos e com pouco combustível, suficiente para poucas voltas, e conseguir fazer um tempo bom. Era possível remover uma parte das pequenas células da bateria para reduzir o peso. A tensão também seria reduzida, mas para poucas voltas, não faria diferença, pois o conceito do carro híbrido é a economia de combustível a longo prazo, não em poucas voltas rápidas.
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Esta era uma boa estratégia. Menos peso de baterias, menos potência do motor elétrico, mas possivelmente um tempo de volta melhor. O único problema foi que na empolgação de preparar todo o carro e sair a tempo de pegar as últimas voltas de classificação, a equipe esqueceu de tirar as baterias.
“Estávamos tão animados com a chance de correr em Le Mans com o Sparky, montamos os melhores pneus, o ajuste do motor a gasolina na potência máxima, com pouco combustível no tanque, só que esquecemos das baterias e mandamos o carro para pista” — lamentava Don Panoz anos depois.
O peso completo dela acabou com as chances do carro se classificar, pois era preciso atingir um tempo mínimo para poder ser classificado e largar,e o Sparky não alcançou a marca necessária.
Foi o fim do sonho de correr em Le Mans com um conceito novo que nunca havia se provado na pista, mas que em teoria, fazia todo sentido.
Do Panoz e sua equipe não se deram por derrotados com o fracasso em Le Mans. Depois de muito dinheiro investido em um conceito novo, pelo menos um resultado o carro teria que ter, e então o Sparky foi inscrito na prova conhecida como Petit Le Mans, no circuito americano de Road Atlanta. Era uma prova de mil milhas (1.600 km) de distância.
Para esta prova, o trio de pilotos formado por John Nielsen, um veterano das pistas e vencedor das mais importantes provas de longa duração do mundo, Doc Bundy, experiente piloto da Porsche e Jaguar, e Christophe Tinseau, um jovem francês que praticamente começou a carreira na Panoz, teria a missão de se classificar e terminar a prova.
O Sparky trocou a bela pintura roxa camaleão de Le Mans por um fundo preto mais sóbrio, mas não alterou seu sistema de propulsão.
Nos treinos, o carro ficou em 12°, apenas 1,5 segundo atrás do GTR-1 convencional. Já era um resultado .melhor A pista mais curta que Le Mans diminuía o impacto do lastro adicional do Q9. Na prova, o carro foi bem, manteve um ritmo constante e terminou em 12° na classificação geral, e em segundo na sua categoria (LM GT1) atrás de um Porsche GT1.
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Depois desta corrida, o carro foi aposentado e ficou guardado na Panoz como recordação de um sonho que viria a se tornar real, nas mãos de outros fabricantes.
PROVA DE CONCEITO
O Sparky só conseguiu correr em uma única prova, mas foi o suficiente para provar dois pontos: a ideia funcionava, e as baterias da época não serviam para isso.
A tecnologia disponível em 1998 tinha sua limitação. Uma bateria capaz de armazenar tamanha quantidade de energia e descarregá-la rapidamente não teria as dimensões e o peso adequados para montar em um carro de corrida, onde justamente o peso é um dos fatores primordiais.
A tecnologia híbrida só se tornou viável dez anos depois, quando estava madura suficiente para que a Fórmula 1 a adotasse como opcional em 2009, um sistema chamado de KERS (kinetic energy recovery system, sistema de recuperação de energia cinética).
No mundo das provas de longa duração, apenas em 2012 o sistema foi aplicado pela Audi com o modelo R18 quattro e-tron, exatamente como previsto pela Panoz, quatorze anos antes. Com o sistema elétrico, o carro é mais eficiente e faz menos paradas nos boxes, tendo vantagem. No caso, a Audi ainda foi mais longe e casou o motor elétrico com um motor diesel, já vitorioso e conquistou o triunfo em Le Mans na primeira tentativa.
Don Panoz faleceu em 2018, mas seu legado vive até hoje, seja na forma da Panoz fabricante de carros de rua, fabricante de carros de corrida, ou nas categorias que ele se envolveu ou criou nos Estados Unidos, como a antiga ALMS (American Le Mans Series). Com certeza o automobilismo deve muito a ele, provavelmente muito mais do que pensamos.
MB