Há muitos anos, lá quando o AE ainda não existia, nosso editor-chefe escrevia uma coluna no Best Cars denominada “Do banco do motorista”, Bob Sharp escreveu uma coluna, por sinal à época, muito polêmica, cujo título não me recordo com precisão, mas falava a palavra “flexfool”.
Lá em meados da década de 1990, os americanos estavam preocupados com a dependência demasiada do petróleo árabe, já havia chegado a 60%, uma questão de segurança nacional, e iniciou estudos de combustíveis alternativos e, bingo! O álcool foi a solução. Só que lá, era álcool de milho, que de quebra, ajudava a controlar os excedentes na produção do cereal.
Só que como os americanos (sabiamente) viram a inviabilidade de distribuir o combustível pelo país todo, deram inicio aos estudos dos flexíveis. Nenhum motorista ficaria sem poder abastecer seu carro caso não encontrasse álcool E sabiamente optaram pelo E85 (85% de álcool e 15% de gasolina), que além de melhorar o funcionamento dos motores na fase fria, eliminava qualquer dificuldade de partidas a frio.
No Brasil, o flexível chegou em 2003. Depois de mais de 25 anos desde o Proálcool, o combustível vegetal vinha mais e mais desacreditado, desde 1989, precisamente, quando houve falta de álcool para abastecimento do mercado interno, levando o governo a instituir a mistura emergencial “MEG” — metanol, álcool etílico e gasolina, para que a frota circulante, predominantemente a álcool não parasse.
Desde então, a produção de carros a álcool caiu vertiginosamente, além da queda nos preços do barril do petróleo desde o final da Guerra do Golfo restando, no final dos anos de 1990, apenas o Gol 1,6-L EA827 e a Kombi.
O descrédito foi tão grande que em 2000 houve uma promoção que quem comprasse um Gol a álcool, ganhava 1.000 litros de combustível na forma de vale. Neste contexto, começam os estudo no Brasil de veículos flexíveis em combustível que culminou, em 2003, com o lançamento do Gol 1.6 Power Total Flex.
O então presidente Lula foi um ativo defensor do álcool combustível, levando o assunto a todos os encontros nacionais e internacionais, e incentivando o plantio de cana a um extremo que, em 2008, a área plantada de cana superou a capacidade de colheita!
Neste contexto, ocorreu o aumento do consumo de álcool combustível, principalmente devido à flexibilidade dos motores, cujos lançamentos tiveram que, obrigatoriamente, contemplar a flexibilidade no abastecimento.
Só que não existe milagre: queira ou não, o poder calorífico do álcool hidratado é cerca de 70% do poder calorífico da gasolina. Ou seja, o consumo do motor usando gasolina será cerca de 30% menor que o mesmo motor queimando álcool.
Com o avanço dos motores flexíveis (os monocombustíveis se tornaram o “patinho feio” do mercado, hoje é praticamente impossível adquirir qualquer veículo monocombustível e a frota nacional, bem, toda ela de 2006 em diante se tornou flexível.
Neste contexto assistimos a uma situação no mínimo bizarra: O álcool ficou indexado à gasolina. Não podia ser mais caro (porque senão ele simplesmente não venderia) nem mais barato, porque ele não maximizaria os rendimentos dos usineiros, além da questão pura e simples de não haver produção de álcool para tanto.
Situações estranhas surgiram: Na primeira metade dos anos de 2010, quando o governo Dilma Rousseff segurou o preço da gasolina (artificialmente ou não, não sabemos), houve uma grita geral dos usineiros sobre essa questão. Até uma tentativa de “descomoditização” do álcool ocorreu, com a campanha “Etanol, o combustível completão” — e que por sinal deixou de ser álcool etílico hidratado combustível (AEHC) passando a se chamar “etanol”, depois de mais de 30 anos sendo chamado de álcool…
A recíproca também se tornou verdadeira no ultimo ano: com o aumento do preço da gasolina em virtude do aumento da taxa de câmbio e a recuperação do preço do barril de petróleo, cada aumento anunciado pela Petrobrás (praticamente monopolista no refino de combustível) disparava um aumento em igual proporção no valor do álcool, ou seja, dentro daquela paridade de 70% (e em atualmente em 75%) do valor da gasolina, gatilhos automáticos. dentro da margem de indiferença do consumidor, que pode escolher entre se iludir em abastecer mais litros e ver o ponteiro do combustível ir lá para cima e consumir mais, ou abastecer menos e ver a quantidade de combustível cair mais lentamente.
Novamente, o álcool acabou ficando refém e uma função do preço do petróleo. E detalhe: O IEA-SP (Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo) já falava isso lá em 2005.
Também, com os flexíveis assistimos a indecente adição indiscriminada do álcool anidro na gasolina, hoje regulamentada em até 27% do volume de gasolina. Ou seja, um carro que outrora funcionaria mal com “rabo de galo” passa a funcionar corretamente…são todos flexíveis.
Agora temos outra situação: Para os motores serem adequadamente flexíveis, em especial os mais simples (2 válvulas por cilindro), de aspiração, os fabricantes não têm que criar motores meio-termo? Não sou expert no assunto, mas baseando-me na experiência que tive passada, com carros flexíveis, creio que sim.
O primeiro EA827/AP1600 flexível tinha taxa de compressão de 10:1 (poucos pontos acima do motor 100% gasolina), comando de válvulas específico dessa motorização, produzindo um rendimento acima dos então 92 cv da versão gasolina “pura” (“gasool” como diria o saudoso jornalista Roberto Nasser), mas que claramente via-se que “faltava alguma coisa”.
De lá para cá o que observamos? Motores ou com taxa de compressão muito baixa (10, 10,5:1) ou motores com taxas acima de 12:1, e como observador tenho assistido a um festival de “grilos” (detonação, prontamente corrigida pela central eletrônica) em saídas de semáforos, situações onde se é exigido, em especial em situações de carga, baixa rotação e acelerador todo aberto. Pode adivinhar. Esta abastecido com gasolina.
Nos meus mais de 80 mil km de convivência com uma Saveiro EA111, ela sempre “grilou” quando abastecida com gasolina. Limpeza de bicos, troca de velas e pasmem, até da bobina, nada resolveu e a mim só me restou um dar de ombros e dizer “fazer o quê”. E olha que mesmo abastecendo em postos diferentes e atualmente, só dos bandeirados tenho me valido. “Grila” igual. O motivo? Desconheço, sinceramente por que o fenômeno ocorre quando abasteço em qualquer posto de combustível, seja ele bandeirado ou não. Pessoalmente acredito ao uso de um porcentual menor de álcool do que os 27% atualmente regulamentados como máximo permitido.
Minha ex.-Saveiro Supersurf flexível, motor EA827/AP não tinha esse problema, exceto um funcionamento mais áspero quando abastecida com álcool, devido ao adiantamento do ponto de ignição. Mas o consumo era convicto e de motor grande: 12 km/L com gasolina, sem ar-condicionado e andando mansamente, e 9,5km/L com álcool (ambos números rodoviários, na Castello Branco). Bem longe dos 14 km/L da minha “caixa de fósforos” 1997.
Pela garagem daqui de casa passou por 100 mil km, um Peugeot 207 1,4-L. A relação de indiferença álcool/gasolina era de 0,65 (65%). Nem adiantava querer inventar e dizer o contrário. Claramente um motor a gasolina adaptado para usar álcool.
Nos meus 80 mil km de EA111, cheguei a um máximo de 72%. O Jetta EA113 que também passou por aqui, em seus 100 mil quilômetros conosco, também era no máximo, 70%.
Alguns articulistas andaram soltando a ideia que a relação de diferença álcool-gasolina hoje é de 75% graças as maiores taxas de compressão dos motores. Os usineiros compraram a ideia e hoje a relação álcool- gasolina mora entre 70% e 75% aqui no Estado de São Paulo.
E nessa salada toda o prejudicado final? O consumidor, lógico! Podíamos ter motores 100% a álcool com elevada potência específica, motores 100% a gasolina otimizados para uma gasolina nacional devidamente regulamentada (e não essa coisa ridícula de gasolina com um mínimo de 18% e um máximo de 27,5% de álcool anidro).
Estaríamos livres da indexação indireta do álcool à gasolina e tecnicamente, não apareceriam “gênios” sugerindo a adição de até 33% de álcool na gasolina em momentos de superprodução e preços baixos de petróleo e sobra de álcool.
DA