O leitor ou leitora do AE sabe que quando escrevemos ‘câmbio automático’ ele nunca está sozinho. Sempre adicionamos um segundo adjetivo para deixar claro de que tipo é, que pode ser epicíclico ou CVT.
Epicíclico devido ao tipo de engrenagem utilizado, a engrenagem epicíclica. Esta é mostrada, de maneira simplificada, no quadro abaixo:
Não se assuste com os cálculos na coluna ‘Transmission ratio” (relação de transmissão), você não precisará deles nessa explicação do funcionamento de um câmbio automático epicíclico.
Toda engrenagem epicíclica, conhecida também por conjunto de engrenagens planetárias, consiste dos elementos A, B e C.
A é a engrenagem solar, da mesma forma que o Sol é o centro do sistema solar.
B é o anel dentado internamente. Em sentido figurado seria o que está além do Sol.
C são as engrenagens planetárias — os planetas que circulam em volta do Sol. Elas ficam montadas permanentemente numa peça chamada porta-planetárias (planet carrier) de maneira que se mantenham equidistantes entre si.
Como se vê no desenho, todas as engrenagens ficam permanentemente engrenadas. Por isso é evidente serem desnecessários sincronizadores num câmbio automático epicíclico, uma vez que não há o que sincronizar para haver o engrenamento, ao contrário de um câmbio manual ou robotizado de uma ou duas embreagens.
As marchas
As marchas resultam da fixação — frenagem — de um dos elementos. Observando a primeira linha do quadro vê-se que entrando movimento do motor (input) na engrenagem A (solar) e fixando o elemento B (anel dentado), a planetária (as três e o porta-planetárias junto) se movimenta. Como ocorre em qualquer transmissão por engrenagem a relação resulta da divisão do número de dentes da engrenagem conduzida pelo número de dentes da engrenagem condutora. Conhecendo-se o número de dentes das engrenagens envolvidas e fazendo a rápida conta, há uma redução na saída com relação maior que 2,5:1 e menor que 5:1.
A próxima marcha, de relação entre 1,25:1 e 1,67:1, resulta de movimentar B e frear A. A marcha seguinte, entre 0,2:1 e 0,4:1, é feita pelas planetárias (C) e freando o anel dentado B. Pode ser também freando a solar A com saída pelo anel dentado¨, nesse caso a relação é entre 0,6:1 e 0.8:1. Nesses dois casos há o que se chama overdrive, ou sobremarcha em português, a saída tem mais rotação do que a entrada.
Se nenhum elemento for fixado a saída de movimento não tem redução, portanto é direta (direct drive), que não tem relação de transmissão mas que simbolicamente é considerada 1:1. Essa ligação direta entre entrada e saída é bastante comum em câmbios manuais de três e quatro marchas em carros de motor dianteiro e tração traseira como o Opala., Chevette, Maverick, Dart, Dodge 1800/Polara, etc. A exceção a essa regra é o Mini original de 1959, que utilizou o câmbio do Austin A-40, de motor dianteiro e tração traseira.
As duas últimas linhas do quadro referem-se a aplicações não automobilísticas, por exemplo, máquinas de um modo geral, que podem ter a rotação invertida.
O esquema da marcha à ré não está no desenho, mas ela é conseguida mediante mais planetárias no conjunto.
Para número de maior de marchas simplesmente adicionam-se engrenagens epicíclicas quantas forem necessárias.
O importante é você saber o que acontece dentro do câmbio quando você está dirigindo um carro de câmbio automático epicíclico e percebe as marchas sendo trocadas em sucessão. Esta é a finalidade maior desta matéria, explicar o princípio de funcionamento do câmbio automático epicíclico. Não é um curso.
A imobilização de um elemento
Nos primeiros câmbios epicíclicos (não automáticos) como o do Ford modelo T, objeto de coluna recente do Boris Feldman,, vimos que as trocas de marchas são feitas pelos pedais, o que pode parecer estranho num primeiro momento. Para entender, a imobilização de um elemento era feita mediante cintas pressionando um tambor com a engrenagem epicíclica no seu interior. A ação do pedal era justamente aplicar um freio nesse tambor que era o citado anel dentado.
A invenção do câmbio automático epicíclico consistiu basicamente no acionamento desses freios (cintas) mediante atuadores hidráulicos comandados a partir de rotação do motor e da pressão no coletor de admissão (aceleração) estabelecendo-se o automatismo.
Daí veio a evolução para embreagens para imobilizar/liberar os elementos, ainda sob comando hidráulico. chegando finalmente ao estágio atual de embreagens por atuação elétrica com gerenciamento eletrônico e toda a conhecida facilidade de programação desses sistemas, como pular marchas nas reduções. por exemplo, de 6ª para 3ª. Ou seja, o automatismo está completamente dominado. Tão dominado que os câmbios automáticos hoje perfazem trocas com perfeição absoluta, melhor até do que um humano, como dirigir rapidamente um carro numa pista, com relatou o Gerson Borini na matéria de ontem sobre o Dia Porsche no autódromo Velocittà;
O kickdown
O idioma inglês é pródigo em terminologia técnica e kickdown é um bom exemplo. Significa movimento forte e rápido para baixo, no caso do pedal do acelerador. Ao efetuá-lo o câmbio “entende” que o motorista deseja retomar velocidade o mais rapidamente possível e determina redução de marcha. Isso desde o primeiro câmbio automático de produção, o Hydramatic da GM para o Oldsmobile 1939 (“Hydra” de hidráulico).
Com o comando eletrônico dos câmbios automáticos atuais nem é preciso mais o interruptor de kickdown no fim de curso do pedal do acelerador, como no Hydramatic. Os algoritmos (algoritmo é uma sequência de ações executáveis) do módulo de comando do câmbio interpretam a velocidade de acionamento do pedal como intenção de máxima aceleração e determinam redução imediata para uma ou mais marchas.
Acoplamento motor-câmbio
É essencial um acoplamento gradual do motor de combustão interna ao câmbio, seja ele manual ou automático, de modo a acoplar algo que está funcionando (motor) a um elemento parado (câmbio). Por isso foi adotado o acoplamento hidráulico. Só algum tempo depois surgiu o conversor de torque, que além de ser um acoplamento hidráulico tem a propriedade de multiplicar torque, melhorando a arrancada desde a imobilidade. Essa multiplicação de torque varia, mas está em torno de 2,3:1, até o motor atingir cerca de 2.500 rpm, quando ocorre o estol do conversor, cessando a multiplicação.
Só há um caso, que eu conheça, de automático epicíclico com embreagem automática em vez de conversor de torque, o AMG Speedshift MCT (Multi-Clutch Technology), conjunto de discos em banho de óleo.
Outras aplicações da engrenagem epicíclica
O sistema de direção do Ford modelo T não tinha caixa de direção, que normalmente tem uma redução. Para aliviar o peso do volante, havia uma caixa redutora no cubo do volante de direção por meio de uma engrenagem epicíclica.
Alguns carros nos anos 1930 a 1950, outros até além disso, tinham o que se chama de overdrive, um câmbio auxiliar montado na saída do câmbio normal destinado a multiplicar a rotação do cardã e, com isso, para uma mesma velocidade, baixar a rotação do motor e ruído — e abrir mais a borboleta de aceleração diminuindo as perdas por bombeamento para consumir menos combustível. O mecanismo incluía outro, associado, de roda-livre. O Corvette C4 (1984-1996), de quatro marchas, tinha esse equipamento utilizável em 2ª, 3ª e 4ª.
Apontador de lápis a manivela
Embora menos hoje, ainda se veem apontadores de lápis z manivela que fazem um serviço rápido e sobretudo perfeito. Já vi também o mesmo mecanismo acionado a eletricidade.
É sempre útil saber o que se passa nos mecanismos dos automóveis quando os dirigimos.
BS