Os anos 1930 e os 1940 em especial foram períodos férteis de desenvolvimento de motores de combustão interna, sejam automobilísticos ou aeronáuticos. Novos materiais, inclusive a evolução dos combustíveis, mais a compreensão daquilo que hoje chamamos de detonação, auxiliou em muito esse desenvolvimento, e foi nestes períodos que foram dados os grandes saltos rumo ao entendimento básico da sua dinâmica de funcionamento.
Naturalmente, alguém poderá dizer (e com razão!) que nos últimos anos assistimos a eletrônica embarcada tomar conta dos motores, a ponto de alguns dizerem (e sempre comentado por nosso antigo editor André Antônio Dantas, num ponto de vista polêmico e passível de discordância em alguns aspectos, mas não me deterei nisso) que “o motor de combustão interna é igual a um paciente que sobrevive por aparelhos”.
Seja como for, divagações à parte, é necessário reconhecer que o período entre guerras e mesmo nos primórdios da Segunda Guerra Mundial foi realmente, como eu disse, um período dos mais férteis para a evolução dos motores em geral e os de aeronaves em particular, em virtude do contexto vivido.
Contextualizando
No período entre a guerras os aviões foram se tornando cada vez maiores e pesados. A madeira e o tecido foram sendo gradualmente substituídos pelo alumínio na composição de sua estrutura. Armamentos, capacidade de carga, autonomia (mais combustível significa mais peso) e velocidade foram sendo colocados como objetivos maiores dos novos projetos.
Mais potência era necessária extrair para obter tais desempenhos almejados. Nesta época, os motores a reação ainda eram conceitos experimentais de Frank Whittle e alemão Hans von Ohain atuando de maneira paralela (e pasmem, sem se conhecerem ou trocarem experiências!), respectivamente na Inglaterra e na Alemanha, enfrentando múltiplos desafios na metalurgia e emprego de materiais novos, num conceito novo diferente daquele propiciado pelos motores de movimento recíproco acionando hélices, conforme visto nos artigos sobre motores a reação, falados já aqui na parte 1, e na parte 2.
Dessa maneira, nada mais natural que fossem desenvolvidos motores de rendimento térmico cada vez maior visando oferecer mais potência sem aumentar cilindrada e peso de conjunto. ou seja, maior densidade de potência.
Sem entrar a fundo na bagagem histórica dos motores de combustão interna, comentarei um pouco dos motores aeronáuticos a pistão da Segunda Guerra Mundial, procurando trazer alguns detalhes construtivos e um pouco dos conceitos que os nortearam, ilustrando o quão avançados foram para sua época, bem como os desafios envolvidos na transformação eficaz da energia contida no combustível em energia mecânica.
Sir Harry Ralph Ricardo
Seria impossível falar de motores aeronáuticos sem mencionar o nome de Sir Harry Ralph Ricardo (1885-1974). Ele foi um dos maiores estudiosos das décadas 1920 a 1940 no projeto de motores e combustíveis.
Notabilizou-se com seu primeiro trabalho se estudar o fenômeno da detonação ou, como chamavam, da combustão irregular nos motores.
O fenômeno da detonação (a famosa “batida de pino”) se tornou claro pela primeira vez em 1917, ano em que os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial. Naquela época, os primeiros carregamentos de gasolina americana chegaram à Europa e, motores europeus, feitos e desenvolvidos para o combustível do Velho Continente, simplesmente perdiam desempenho e superaqueciam ao usar a gasolina americana, que, segundo se sabe hoje, tinha poder antidetonante inferior ao da Europa.
A solução encontrada foi a adição de benzina à gasolina, o que minimizou os problemas mas acabou dando origem a um novo caminho de estudo até então desconhecido.
Embora seja algo que pareça uma história irrelevante, veremos a seguir que teve muita influência nos motores aeronáuticos desenvolvidos a partir de então e explicará algumas características de motores alemães e europeus da Segunda Guerra Mundial.
O trabalho de Harry Ricardo se tornou referência no assunto. Seu livro, “The Internal Combustion Engine”, de 1922, norteou muitos trabalhos e desenvolvimentos sobre o assunto, inclusive na Alemanha, com o uso de MW50 (metanol e água 50/50%) como forma de extrair mais potência dos motores.
Os conceitos
Os europeus sempre tiveram fascinação por motores em linha ou em “V” no emprego de aviões.
Nas décadas 1920 e 1930, em busca de maiores velocidades nos aviões, a aerodinâmica passou a ser a tônica e para tal, esguias naceles de motores obrigavam o uso de motores dessas disposições.
Para tal, visando melhorar ainda mais o desempenho dos motores também era empregado arrefecimento a líquido.
Por isso também é dessa época o surgimento e emprego de etilenoglicol nesses sistemas de arrefecimento que trabalhavam sob pressão como forma de trocar calor com o ambiente sem implicar na ebulição do líquido, embora muitos motores dessa época previssem a passagem da água para o estado de vapor ao longo do seu ciclo de troca de calor.
Os motores Rolls-Royce V-12 dessa época influenciaram toda uma geração de projetos de aeronaves, numa dinastia surgida na década 1920 (1926 para ser exato) com o motor Kestrel de 21 litros e terminando com o Rolls-Royce Griffon de 37 litros, mas tendo como expoente o legendário Rolls-Royce Merlin de 27 litros que equipou toda uma gama de aeronaves de caça, bombardeiro e até mesmo o Canadian North Star, um hibrido de DC-4 com elementos de fuselagem do DC-6 mas dotado de quatro motores Rolls-Royce Merlin no lugar dos radiais Pratt & Whitney R-2000.
Os americanos, embora tenham tido êxito com o V-12 Curtiss D12, de 18,8 litros de 1923, sempre foram mais adeptos aos motores arrefecidos a ar.
Embora para os autoentusiastas, motores “a ar” sejam “coisa de alemão” (leia-se Volkswagen), foram os americanos que se agarraram a esse conceito. Talvez tenha sido por isso que Heinrich Nordhoff, bem antes da Segunda Guerra Mundial e quando executivo da Opel, associada da RDA (Associação Alemã dos Fabricantes de Automóveis), em tom de crítica, declarou: “Ah, quer dizer que o carro do povo terá motor de avião?”, talvez numa alusão ao diminuto Continental A-40 de 1931, motor este que externamente parece um motor de Fusca desprovido do sistema de arrefecimento a ar forçado.
O porquê da declaração de Nordhoff é que o plano inicial do Volkswagen projetado por Ferdinand Porsche era ser produzido pela indústria automobilística alemã, mas esta, Opel inclusive, não conseguiria produzir o carro pelo preço definido por Hitler, 1.000 RM (marcos imperiais). Foi quando o governo fabricar o carro ele mesmo, para isso construindo a fábrica em Fallersleben (renomeada Wolfsburg após a guerra) que existe até hoje.
Os radiais americanos arrefecidos a ar eram motores grandes, robustos e confiáveis, mas de baixa potência específica serem arrefecidos a ar (menor controle de temperatura) e em muito devido ao combustível. É preciso lembrar que naquela época ainda não existia a padronização da gasolina e o índice de octanas, algo novo, recém-estudado.
Uma configuração atípica da Segunda Guerra foram os motores em H. Basicamente duas bancadas de cilindros contrapostos ligadas por engrenagens a um único eixo. O mais destacado motor nessa configuração foi o Napier Sabre, que equipou os Hawker Typhoon e Tempest.
Dotados de 24 cilindros dispostos em H (duas bancadas de 12), os Sabres deslocavam 36,6-L e produziam até 3.000 hp (3.116 cv) a 4.000 rpm em regime de emergência.
Também data do entre guerras o desenvolvimento e estudo do poder antidetonante da gasolina. Iniciado por Sir Harry Ricardo, conforme mencionado acima, as companhias petrolíferas passaram a estudar o assunto e incrementar o poder antidetonante da gasolina, saindo dessa época, o conceito de Índice de octanas.
Também é desse período que o chumbo tetraetila passa a ser empregado como agente antidetonante. e foi somente no final dos anos 1930, com o esforço e campanha do Coronel Jimmy Doolitle, que o Army Air Corps (AAC, Corpo Aéreo do Exército americano) padronizou a gasolina de aviação (avgas) 100/130, o que incrementou significativamente a potência dos motores, em alguns casos, em mais de 50%!
Já a partir de 1943 começa a ser empregada a “gasolina 150” (avgas 115/145) o que permitiu extrair ainda mais potência dos motores dos aliados na guerra. O próprio Rolls-Royce Merlin tinha cilindrada pelo menos 6 litros inferior à dos congêneres germânicos e rendiam a mesma potência, dado o combustível empregado.
Na Alemanha, por sua vez os motores empregavam a chamada “B4”, uma gasolina sintética obtida do carvão mineral, através de um processo chamado de Fischer–Tropsch.
A B4, segundo informativos da época, possuía 87 octanas (padrão RON) e a partir de 1944, com a maior difusão de uma variante dq B4, a “C3”, os motores passaram a contar com um combustível de 95 octanas, que seria algo equivalente a uma avgas 95/115.
Os projetos Hyper
Tratou-se de um projeto de high performance engines, chamado abreviadamente de Hyper, patrocinado pelo AAC em 1930 com o intuito de extrair maior rendimento dos motores aeronáuticos produzidos no país. A meta era obter 1 hp/pol³ (61,9 cv/L) com um peso inferior a 1 lb/hp (0,447 g/cv).
Nessa época, os principais motores americanos tinham potência específica muito baixa, resultando em baixa potência efetiva. Na visão de alguns era fruto do baixo índice de octanas da gasolina americana e — outra tese, essa mais plausível — devido a confiabilidade requerida dos motores para emprego em aeronaves de uso civil.
Para atingir tais objetivos, materiais de fabricação dos motores foram desenvolvidos, como o emprego de ligas de alumínio. Só que isso só uma parte da solução. O aumento da potência passaria por reduzir as perdas por atrito, aumento da eficiência da combustão e rotação dos motores.
Neste contexto, a eficiência da combustão passaria por um aprimoramento da lavagem (expulsão dos gases queimados e carregamento dos cilindros) e um aumento na temperatura da combustão. Para tal, o uso de válvulas maiores era necessário. Entretanto, o conceito esbarrava em dois pontos: Válvulas maiores implicavam molas maiores e mais fortes para trabalharem com motor em maiores rotações sem o fenômeno da flutuação e ao mesmo tempo, o uso dessas molas aumentava a perdas por atrito.
Sir Harry Ricardo postulou o conceito das válvulas tipo sleeve (camisas deslizantes, conforme vimos no texto de André Dantas) pois acreditava que somente esse tipo de controle de admissão e escapamento poderia lidar com esses dilemas construtivos, mas sua complexidade acabou por eliminar seu uso.
O mesmo Sir Harry Ricardo preferiu “não mexer em time que está ganhando” nos motores Rolls-Royce Merlin e Griffon, que continuaram empregando válvulas circulares convencionais, (4 por cilindro, acionadas por comando único), motores esses que foram os “carros-chefes” da indústria britânica na Segunda Guerra Mundial.
Alguns projetos foram feitos no âmbito do programa, todavia nenhum com alguma expressão. Alguns motores entretanto, desenvolvidos fora dos objetivos do programa, atingiram as metas no final de 1945, como, por exemplo, Pratt & Whitney R-2800, que chegou em algumas versões produzindo 2.800 hp (2.839 cv) com cilindrada de 45,9 litros de 1.071 kg de peso!
Os motores alemães
Sem dúvida foram influenciados pelos estudos de Sir Harry Ricardo e mesmo de projetos como o da Pratt & Whitney!
Basicamente, os motores alemães que foram destaques na II Guerra Mundial foram os Daimler-Benz DB601/605, o Junkers Jumo 213 e o BMW 801, este um radial.
Tanto os motores Daimler-Benz quanto o Junkers Jumo usavam a configuração tradicional de 12 cilindros em “V” em posição invertida. O porquê dessa dessa solução é controversa: alguns argumentam que era para manter uma maior distância da hélice em relação ao solo, todavia esse argumento é facilmente rechaçado pelo fato de todos esses motores usarem caixa redutora tanto para diminuir a rotação da hélice, quanto para o cubo da hélice ficar num ponto mais alto, fazendo essa função de deixar a hélice mais alta.
O argumento talvez mais plausível seja deixar os cabeçot0sd dos cilindros numa posição mais baixa, facilitando a manutenção de campo desses motores.
O BMW 801, entretanto, é o aprimoramento do motor Pratt & Whitney R-1690 Hornet, cujos direitos de produção foram adquiridos na década de 1930. Os alemães se valeram do projeto básico e aprimoraram o motor, aumentando sua cilindrada e, por consequência, a potência produzida por ele. O uso principal do BMW 801 foi nos caças Focke Wulf FW-190. Foi o principal motor “estrela” (radial) arrefecido a ar empregado pela aviação alemã naquela guerra.
Vale a menção que visando deixar a aeronave o mais aerodi,âmica possível, os engenheiros da Focke Wulf fizeram uma nacele de motor bastante justa, com um enorme spinner (capa do cubo da hélice). Para ajudar no arrefecimento, um radiador de óleo anular foi instalado por toda a volta da nacele e um ventilador foi adicionado entre a hélice e os cilindros do motor para aumentar o fluxo de ar nos cilindros.
Comparativamente aos motores britânicos (leia-se Rolls-Royce Merlin) e mesmo os americanos, a cilindrada dos motores alemães era mais alta. Enquanto o Merlin era de 27 litros e produzia cerca de 1.600 hp (1.622 cv) na maioria das versões, o DB601 rendia de 1.100 a 1.450 hp (1.115 a 1.470 cv)
Mas a grande contribuição alemã para os motores aeronáuticos foi, sem dúvida, a injeção direta de combustível.
Enquanto os britânicos estavam presos ainda ao tradicional carburador com cuba de nível constante, os alemães, com sua manufatura de precisão, seguiram para o caminho da injeção direta.
Isso pegou os britânicos de surpresa no início da guerra, pois era incompreensível como os BF109 conseguiam fazer manobras com G negativo sem apagamento dos motores, enquanto os Hawker Hurricanes e os primeiros Supermarine Spitfires padeciam com o apagamento de seus Merlins. Somente quando os britânicos puseram as mãos em um Messerschmitt BF-109 descobriram que a manufatura de precisão alemã estava produzindo bombas injetoras para injeção de gasolina no Ciclo Otto.
Para minimizar os efeitos do G negativo, a angenheira Beatrice Shilling desenvolveu um singelo dispositivo que limitava a falta de combustível em carburadores em situação de G negativo.
Os americanos, todavia apostaram nos carburadores pressurizados, que na visão de alguns é o “pai” do TBI, a injeção monoponto. Naturalmente era um sistema que funcionava sem controle eletrônico e sim por pressão do ar e de combustível e representou um avanço em relação aos carburadores convencionais de cuba e boia.
Supercarregado vs. turbocarregado
Está ai outro assunto de dificil compreensão: se os turbocarregadores, com suas turbinas movidas pelos gases de escapamento e são, em tese, mais eficientes, por que os motores aeronáuticos da II Guerra Mundial eram em sua esmagadora maioria, supercarregados? Era porque a construção de carregadores mecânicos era, para aquela época, mais simples do que a dos turbocarregadores acionados pelos gases quentes do escapamento..
Além disso havia o fato de que os turbocarregadores, para fazerem frente aos motores de grande cilindrada, precisavam de espaço, coisa que numa aeronave é algo exíguo, em especial nos caças!
Apenas para ilustrar, o turbocarregador GE C1 empregado em alguns Republic P-47 Thunderbolt pesavam nada menos que 106 kg e mediam cerca de 70 cm de diâmetro por 52 cm de altura.
Também é preciso lembrar que o movimento da turbina pelos gases de escapamento e esta o acionando o compressor , diferentemente do que o senso comum pensa, não é isento de consumo de potência. Por representar um obstáculo na saída dos gases existe um maior esforço do motor para vencer a contrapressão, havendo perdas nesse processo. Trata-se de algo mais proeminente em baixas altitudes (até os 20 mil pés) onde a atmosfera é mais densa. Acima disso, esse efeito diminui.
Enquanto isso, os carregadores de acionamento mecânico apresentam, além da vantagem dimensional, o fato de não representarem restrição aos gases queimados, o que em baixas altitudes representa efetivamente uma vantagem.
Todavia, essas vantagens desaparecem com a necessidade de se criar compressores mecânicos maiores e que consumam mais potência do motor para manter a pressão de carregamento em especial em altitudes maiores, coisa que os turbocarregadores não requerem.
Um supercarregador maior, por outro lado é um desastre em baixas altitudes, pois sofrem muitas restrições e precisam fazer um esforço maior para enviar o ar sob pressão para o coletor de admissão, representando perdas de bombeamento e consumindo muita potência. Para isso, muitos motores Rolls-Royce Merlin e Griffon, Daimler-Benz DB605 e Junkers Jumo 211 empregavam supercarregadores de duplo estágio e/ou velocidade dupla de trabalho. Ou seja, em altitudes baixas e médias tinham uma velocidade de trabalho e em altitudes mais elevadas, empregavam uma outra razão de engrenagens (acopladas automaticamente conforme a altitude/pressão) dando mais rotação para o compressor gerando maior carregamento.
Importante observar que os supercarregadores empregados era do tipo centrífugo. Experimentos foram feitos ainda na década de 1920 com supercarregadores tipo Roots (de deslocamento, blower) mas se mostraram ineficazes em emprego aeronáutico.
Arrefecimento
Esse tópico merece destaque pois o uso do etilenoglicol como aditivo no sistema de arrefecimento passou a ser popularizado nessa época. Os motores Rolls-Royce Merlin (sim, sempre ele) que no inicio tinha um projeto de sistema de arrefecimento que previa a passagem da água do estado líquido para o gasoso e o seu retorno ao estado líquido após passar pelo radiador, passou a ser misturado com etilenoglicol e a manter o sistema sempre em estado líquido.
A colocação dos radiadores, por sua vez, em sua maioria era no ventre da aeronave. Vide o P-51, o BF-109 e mesmo o Supermarine Spitfire.
Apenas o Focke Wulf FW-190D (o chamado 190 “Dora”) com motor Junker Jumo 211 empregava um interessante radiador anular e por isso conseguia manter o nariz arredondado semelhante ao empregado nas versões anteriores da aeronave com motor radial BMW 801.
Como já citado, os americanos sempre deram ênfase no arrefecimento a ar nos seus motores. Entretanto, o processo de construção dos cilindros e cabeçotes aletados precisou passar por uma transformação para que pudesse se fazer um maior número de aletas deixando um mínimo espaço entre elas. Para contornar esse problema, os cilindros eram confeccionadas em uma única peça, e as aletas, feitas por corte da peça, de acordo com um padrão! Tal processo era empregado pela Pratt & Whitney na fabricação de seus motores radiais.
O único motor americano arrefecido a líquido com alguma relevância o foi o Allison V-1710 V-12 de 28 litros. Esse motor ficou conhecido por ser o propulsor do Curtiss P-40, Lockheed P-38 e os primeiros P-51 Mustang. Esse motor entretanto não apresentava bom desempenho em altitudes maiores e como o P-51 Mustang só ganhou bom desempenho quando foi dotado do motor Merlin (posteriormente fabricado sob licença pela Packard como sendo Packard V-1650), acabou deixando o grande V-12 americano ofuscado e sem maiores evoluções.
Apenas à guisa de curiosidade, um projeto fracassado dessa época foi o motor Fairchild Ranger V-770 V-12 invertido de 12,7 litros arrefecidos a ar. Produzindo entre 500 e 700 hp, conforme a versão e rotação de trabalho, o enorme Ranger só foi empregado no treinador Fairchild AT-21 Gunner e no hidroavião Curtiss SO3C e ambas aeronaves ficaram conhecidas exatamente pela mesma deficiência: inconfiabilidade do motor!
A North American fez um protótipo do AT-6 denominado XAT-6E equipado com esse motor. Embora com melhor desempenho e velocidade que o AT-6 de motor radial, o Ranger era tenebroso em termos de confiabilidade e robustez.
O efeito Meredith
Extrair algum empuxo do sistema arrefecimento de um caça de motor a pistão é possível? Sim, e ficou conhecido como “efeito Meredith”.
Postulado pelo engenheiro britânico Frederick William Meredith, ainda na década de 1930, ele basicamente defende que o ar é pressurizado com o seu impacto no radiador. Sua velocidade é reduzida e ele ganha temperatura ao passar pela colmeia com líquido quente adquirido do motor e esse aquecimento gera uma expansão, que devidamente canalizado gera um pouco de empuxo, como em um motor a reação normal.
Embora seja algo residual, era contabilizado como forma de compensar o arrasto aerodinâmico adicional do conjunto formado pelo radiador.
O P-51 Mustang foi um projeto que contemplou esse efeito. A localização do radiador e a forma de passagem do ar foi pensada em se valer do efeito Meredith.
Outra forma de extrair algum empuxo foi a forma do escapamento.
O Spitfire e mesmo o Mustang empregaram os chamados jet stacks (tubos individuais bem curtos, cotós) no escapamento de seus V-12 como forma de obter empuxo via saída dos gases de escapamento quentes. Aliás, essa foi outra razão de não optarem pelo turbocarregamento.
O turbocompound
Traduzido literalmente como turbocomposto, é diferente daquilo que no Brasil é o biturbo, ou dois turbocarregadores ligados em série como na Amarok 2-L.
O turbocompound é um conceito que passou a ser estudado nos anos 1930 e 1940, mas só viu emprego prático no pós Segunda Guerra Mundial.
Considerando que os gases de escapamento carregam, consigo, energia térmica que pode ser aproveitada, o turbocomposto consiste em uma turbina centrífuga que absorve energia térmica transformando-a em energia mecânica.
Só que essa árvore, ao invés de ligada a um carregador (a roda quente do turbocarregador, é acoplado, via um sistema de redução e através de um conversor de torque, ao virabrequim.
Esse sistema adicionava em média, próximo a 20% a mais de potência no eixo, o que em tese seria revolucionário.
Só que por ser complexo, o turbocomposto acabou sendo lembrado apenas pela sua inconfiabilidade. As chamadas PRT (Power Recovery Turbine ou turbinas recuperadoras de potência) ficaram apelidadas de “Parts Recovery Turbine” (turbina recuperadora de peças), dado as peças de motor que iam parar nesses componentes.
Comercialmente (e mesmo militar) apenas o Douglas DC-7 e os Lockheed Super Constellation e Starliner empregaram motores turbocompostos com os Wright R-3350 de 18 cilindros e 54,86 litros. Nesses motores, 3 turbinas (uma para cada 6 cilindros) eram acopladas, através de uma redução, a um conversor de torque e este, ao virabrequim (conforme veremos na imagem abaixo) mas a qualidade dos materiais estava aquém daquela disponível na época.
Para se ter uma ideia, o Super Constellation ficou apelidado como sendo “o melhor e mais belo trimotor já construído” (antes que alguém me corrija, ele tinha quatro motores, mas como um invariavelmente dava pane…) e a Panair do Brasil, ao voar para Lisboa nos chamados “Voos da Amizade” (Rio de Janeiro, Recife, Cabo Verde e Lisboa), mantinha um conjunto completo de motor para substituição nos DC-7!
Pela sua complexidade e pouca disponibilidade, em pouco tempo de uso, tanto os DC-7C e os Super Constellation foram sendo encostados e posteriormente desativados enquanto no caso específico do DC-6, equipado com motores Pratt & Whitney R-2800, permaneceram em operação, em alguns casos até quase a década de 1970 e até hoje ainda existe exemplares em operação não regulares, quase 70 anos depois!
Menção honrosa: o Pratt & Whitney R-4360 de 28 cilindros
Quando se fala em motor grande, a Pratt & Whitney levou a sério e fez o R-4360.
Com 28 cilindros de 146 mm de diâmetro x 152 mm de curso dos pistões, a cilindrada total de 71,5 litros (2,55 litros por cilindro!) o grande radial era composto de quatro fileiras de 7 cilindros arrefecidos a ar, montados de maneira helicoide (hélice geométrica, a foto acima explica bem) para facilitar o fluxo de ar de arrefecimento pelos cilindros e cabeçotes.
Concebido em versões para 2.650 a 4.300 hp (2.687 e 4.360 cv) , a maior parte dos R-4360 produzia 3.500 hp (3.549 cv) apenas nas versões supercarregadas, sem emprego de turbinas recuperadoras de potência (os “turbocompound” como eram os 3.400 hp/3.447 cv do Wright R-3350)
Funcionou pela primeira vez em 1944 e chegou a ser experimentado no Republic XP-72, uma evolução do P-47, projetado para empregar esse motor. Apenas dois exemplares foram construídos e a àquela altur motores a reação mostravam-se mais viáveis em caça que motores a pistão, e o projeto não teve sequência.
O R-4360, todavia foi empregado em icônicos modelos como o Boeing 337 Stratocruiser, sua versão militar o KC-97, Boeing B-50 (versão mais potente do B-29), o Convair B-36 Peacemaker (um dos maiores e mais emblemáticos símbolos da guerra fria), além do Fairchild C-119 Flying Boxcar e do protótipo XB-35, a primeira asa voadora da Northrop e “avô” do bombardeiro B-2 Spirit.
O grande radial no entanto não era isento de problemas. O arrefecimento do motor era problemático, o consumo de combustível inviabilizava operações comerciais (a Pan American contava com subsídios para voar o Stratocruiser) e os procedimentos de partida, complexos, que empregando avgas 115/145, poderia sujar as velas (entravam em curto-circuito devido ao elevado teor de chumbo tetraetila) e obrigar a remoção e limpeza das 56 velas (!!!) — de cada motor!
Se trocar uma vela já é chato, imagine trocar 56???
DA
Nota do Autor: não abordei os motores soviéticos, italianos e japoneses pois foram, em sua essência, variações do que os ingleses, alemães e americanos produziam. Inclusive muitos motores radiais soviéticos resultaram de engenharia reversa de motores americanos passados para o padrão métrico.