Dez anos se passaram desde a última vez que Interlagos recebeu os carros da World Endurance Championship (WEC), o Campeonato Mundial de Resistência. E neste tempo, muita coisa mudou, não só dentro da pista. As 6 Horas de São Paulo estão de volta!
A antiga categoria principal, a LMP1, transformou-se na nova Hypercar, com diversos carros competindo pela vitória, antes limitada a disputa entre Audi e Porsche, com algumas boas aparições da Toyota. A categoria LMP2 deixou de existir (correu apenas em Le Mans), e a antiga LM GTE passou a ser a nova GT3. O máximo de carros no grid imposto é de 37 competidores (exceto Le Mans).
O evento cresceu para o público, que totalizou mais de 73 mil pessoas ao longo do fim de semana todo, graças a complementos como um pequeno parque montado no centro do autódromo com shows ao vivo, roda gigante, exposição de carros antigos e barracas de alimentação.
Outro grande atrativo para o público foi a presença do italiano Valentino Rossi, ex-piloto da Moto GP, sete vezes campeão da principal categoria do motociclismo, e agora piloto da equipe WRT, correndo com o BMW M4 GT3. Claramente ele era o piloto mais procurado pelo público, prova disto foram as filas intermináveis para chegar ao seu box durante os horários de visitação e sessão de autógrafos.
Estrutura técnica
A estrutura técnica da corrida é impressionante, bem como os carros da classe Hypercar. Se estes são os carros mais modernos do mundo no automobilismo, junto com a F-1, a organização para manter sob controle tem que ser de primeira.
Os regulamentos técnicos são cada vez mais complexos, com detalhes de todos os componentes do carros, características que precisam ser controladas, homologadas e conferidas ao longo da prova. Para se ter uma ideia, para fazer uma das verificações de desempenho dos carros da Hypercar, as semiárvores recebem sensores de torque, que enviam sinal em tempo real para a organização da prova, para que o torque limite definido no regulamento seja avaliado o tempo todo.
Abaixo temos três exemplos deste sensor montado nos carros, indicador por setas vermelhas, tanto em carros com tração apenas traseira, (Porsche) como em carro com tração integral (Ferrari e Peugeot).
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Se um pico de torque acima do limite for identificado, será avaliado se foi um acaso de pista, como uma subida mais brusca na zebra, ou se o carro está com mais torque do que deveria. Isto está diretamente ligado ao BoP, o Balance of Performance (equilíbrio de desempenho), que nivela os carros em termos de desempenho para que a corrida seja mais equilibrada, mas, já dei minha opinião sobre isto aqui no AE quanto ao que isto representa.
Durante o evento todo, os carros passam por inspeções da FIA, o que é normal, assim como em todas as outras categorias sérias do automobilismo, a fim de garantir que todos estejam conforme as regras. No caso dos Hypercars, no lugar dos tradicionais gabaritos de medições, réguas, trenas e esquadros, a FIA utiliza um sistema de escaneamento 3D com uso de laser.
As equipes são obrigadas a enviar o modelo 3D do carro completo para a FIA, e com um escâner 3D a carroceria e todo o assoalho são mapeados e as informações das regiões controladas pelo regulamento são sobrepostas. Se o carro estiver com dimensões diferentes do “teórico” mostrado no 3D, pode ser punido ou até desclassificado. Desta forma, é possível conferir praticamente o carro todo de uma vez só, um trabalho de alguns minutos que se fosse ser feito da maneira tradicional, poderia levar horas. Sistema similar também é adotado na F-1.
Este vídeo mostra o uso do escâner durante uma prova da IMSA.
O WEC ainda permite uma grande variabilidade de projetos entre as diferentes equipes, diferente da Fórmula 1, onde os carros acabam sendo cada vez mais parecidos em função das restritas normas técnicas. No Endurance, o regulamento tenta nivelar o desempenho final e não a forma de se projetar, com isso, vemos diferentes soluções entre os carros.
Muito se fala em questões de segurança, principalmente nas atividades de box. A segurança passiva dos carros, sua forma construtiva, já é o que existe de mais avançado para proteger o piloto no caso de um acidente. A preocupação com os demais envolvidos, como a equipe de box, faz com que alguns procedimentos sejam mandatórios.
Em todas as paradas de box, o abastecimento é feito separadamente das trocas de pneus. Depois do abastecimento feito, apenas o mecânico responsável por conectar a mangueira ao bocal do tanque pode estar perto do carro. Também é colocado um cabo de aterramento no carro, com uma presilha tipo “jacaré”, igual ao usado nos cabos de carregar bateria, para evitar que alguma descarga elétrica possa gerar uma faísca e iniciar um incêndio.
Depois da mangueira de reabastecimento ser desconectada, apenas quatro mecânicos podem fazer atividades no carro. Nas trocas de pneus, uma dupla troca os pneus dianteiros, primeiro de um lado e depois do outro, e outra dupla faz o mesmo para os traseiros. Qualquer outra atividade mais complexa é feita dentro da garagem, onde o carro entra com o auxilio de plataformas com rodinhas que facilitam a manobra. Dentro dos boxes, outros mecânicos podem ajudar.
As trocas de piloto podem ser feitas a qualquer momento da parada, inclusive durante o reabastecimento, que é o mais comum a fazerem uma vez que não se pode fazer mais nada enquanto o carro está com a mangueira conectada. Me parece um contrassenso, uma vez que manipulação de combustível deveria ser feita sem mais ninguém perto por questões de segurança, mas…
Combustível
O combustível utilizado no WEC é o chamado Excellium Racing 100, fabricado pela TotalEnergies, sendo este um bioetanol 100% renovável feito à partir de resíduos de produção de vinhos na Europa. Curiosamente, o cheiro do combustível é adocicado, diferente de um álcool convencional de posto de combustíveis.
Com o sistema de tração híbrido dos Hypercars, ao sair do box, os carros tendem a sair rodando com a motorização elétrica, e depois já na pista de rolamento dos boxes, o motor a combustão é acionado em um poderoso estrondo. Isto, para a maioria dos carros, mas o Peugeot 9×8 fazia diferente. Por ter a tração elétrica no eixo dianteiro (regra dos carros LMH, como o Toyota e Ferrari), o motor a combustão era acionado com o carro ainda parado. Assim ao arrancar, o carro tracionava as quatro rodas. Talvez algum pequeno ganho de aceleração eles conseguiam com isto, perante ao demais competidores que só movimentavam o carro com o motor elétrico e depois de embalar, acionavam o motor a combustão. Lembrando que os carros tipo LMDh (Le Mans Daytona Hybrid, como Porsche, Cadillac, BMW, Lamborghini e Alpine têm o motor elétrico montado no eixo traseiro, ou seja, sua tração é apenas traseira.
Os Hypercars possuem toda a parte de circuitos e cabeamentos de um carro elétrico, com bateira de 900 V que pode chegar a um pico de 1.000 V de tensão em algumas situações. Por ser alta tensão, o carro todo tem que ser isolado e protegido contra falhas para garantir sua operação de forma segura. Luzes-espia na cor verde posicionadas nas laterais do para-brisa indicam que o carro está seguro para ser manuseado.
A corrida
A Toyota dominou a prova desde os treinos, e na classificação garantiu os dois primeiros lugares, marcando a pole com o tempo de 1:23,140 min. A velocidade máxima registrada no evento foi de 289,3 km/h atingida pelo Toyota. Na categoria GT3, a pole foi do Lamborghini da equipe feminina Iron Dames, com 1:34,413 min. A velocidade máxima dos GT3 foi atingida pelo Corvette Z06 LMGT3.R, com 261 km/h.
Comparando-se os tempos com os de 2014, a última vez que a WEC esteve em Interlagos, a pole havia sido feita pela equipe Porsche com o 919 LMP1 com o tempo de 1:17,676. Vale lembrar que, em 2014, os carros da LMP1 pesavam 875 kg e tinham uma potência máxima de 900 cv, enquanto que um Hypercar pesa 1.030 kg com potência máxima combinada do motor a combustão com o elétrico de 680 cv. Para referência, em 2023 a melhor volta na Fórmula 1 foi de 1:10,021 (e em 2014 a pole foi de 1:10,023).
Na corrida, a Toyota foi dominante, mantendo um controle da liderança diante dos Porsches 963 da Penske, que resultou numa vitória do carro 8 com quase uma volta de vantagem sobre o segundo colocado, o Porsche 963 Hypercar da Penske. Na GT3, a vitória ficou com o Porsche 911 da equipe Manthey, tradicional time alemão de provas de Resistência, com uma volta de vantagem sobre o segundo colocado, o Aston Martin da equipe Heart of Racing.
O resultado completo pode ser visto aqui. Abaixo, os vencedores das duas categorias.
O melhor ronco
Por unanimidade, o ronco dos carros americanos foi o favorito do público. O Cadillac LMH, de motor V-8 aspirado, assim como os Corvettes e os Mustangs da GT3, se destacavam em meio aos demais, graças ao fato de não terem turbocarregadores que abafam o som do escapamento. Todos os outros competidores eram mais silenciosos, com os turbos confinando parte do ronco do motor.
O que podemos aprender com o WEC? A organização técnica da prova é um exemplo a ser seguido, com todo o controle feito nos carros para garantir o atendimento às regras, bem como a parte desportiva. Diferente da F1, onde punições são aplicadas depois da corrida, com adição de tempo ao total do carro para calcular qual sua posição final, ou até mesmo punições para corridas seguintes, tudo no WEC é resolvido na hora. Algo errado foi identificado? Punição imediata com stop-and-go ou drive-through. É muito mais justo e realista.
O evento trouxe um bom público a Interlagos, mesmo com alguns problemas de organização na venda de ingressos, acesso aos locais do evento, excesso de pessoas nas visitações de box, mas a soma total ainda foi bem positiva. A etapa de 2025 em terra brasileira por ora está confirmada, o que indica que o Automobile Club de l’Ouest (ACO) viu com bons olhos o evento apresentado pelos promotores locais. Oremos para que continue assim.
MB
Algumas fotos do evento (Fotos: autor e Gerson Borini)