Para quem pensa que carro a álcool foi uma novidade brasileira do final dos anos 70, um engano. Na realidade, Henry Ford já vendia os seus modelos T em 1908 com a opção da versão a álcool. Além dos modelos convencionais a gasolina, o consumidor tinha a opção de comprar o carro em uma configuração movida por álcool hidratado. E, olha que esse carro foi produzido por quase duas décadas, de 1908 até 1927, o que significa que, no mercado americano, essa versão alcoolizada teve demanda por todo esse tempo.
Mesmo lá nos EUA os carros a álcool eram interessantes para muitos compradores, como fazendeiros produtores de álcool oriundo do milho, como continuam a fazer por lá. O Ford T a álcool usava o mesmo motor da versão a gasolina, um 2,9-litros de quatro cilindros em linha, porém ele entregava quase 18% a mais de potência quando funcionava com álcool (de 17 para 20 cv).
Aqui no Brasil, os modelos T “nacionais” chegaram a partir de 1919, e um tempo depois ganharam também a tal versão a álcool. Quem os comprava eram os produtores brasileiros do combustível, só que a partir da cana-de-açúcar, que tinham dificuldade de adquirir gasolina em suas regiões remotas, que ainda era vendida em latas, dependendo da parte do país. Por isso, lá atrás na história já existiam os carros a álcool, uma primazia que, infelizmente, não foi da engenharia brasileira. Pena que essa história hoje é pouco lembrada.
Mas, no início dos anos 70, o mundo foi atemorizado com a crise do petróleo. Os árabes, então os maiores fornecedores do “ouro negro” no mundo, resolveram se reunir e colocar o preço do barril a um valor que eles achavam justo. Afinal, antes, com a abundância dessa matéria-prima, cada barril custava 2 dólares, número que em três meses foi multiplicado por seis, passando para 12 dólares (500% de aumento). Depois disso, o mundo nunca foi mais o mesmo, e toda a cadeia produtiva derivada do petróleo teve aumentos astronômicos, inclusive a gasolina.
Aqui no Brasil, nós éramos dependentes em 80% do petróleo importado, e isso impactou negativamente na nossa economia como um todo. Na época, o governo federal (militar), com a intenção de reduzir essa dependência, que nos fazia exceder muito os custos com a compra dos barris, resolveu por criar um plano que tirasse a nossa frota nacional, ou pelo menos parte dela, desse “vício” do petróleo.
Em 1975, nasceu o Prálcool, criação do governo e dos fabricantes de carros considerado o maior plano mundial de incentivo ao uso de biocombustíveis. No caso, o álcool hidratado, que em 2009 foi “rebatizado” etanol — álcool ou etanol é a mesma coisa. As marcas logo fizeram com que suas engenharias trabalhassem a todo vapor para entender e desenvolver motores para esse novo combustível, praticamente desconhecido para a grande maioria.
Em uma associação entre a Chrysler do Brasil e o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), a marca forneceu alguns Dodge 1800 para serem adaptados ao combustível derivado da cana-de-açúcar. Os primeiros carros, basicamente, eram iguais aos movidos a gasolina, ainda com baixa taxa de compressão, e carburador e curva de avanço modificados. Um deles, inclusive, está exposto no CTA, em São José dos Campos, SP.
Os tais carros funcionavam bem, mostrando o potencial daquele que seria o novo biocombustível brasileiro. Sabia-se na época que o grande problema inicial do álcool era o alto consumo, afinal de contas, energeticamente falando, enquanto a gasolina fornece em sua queima 10.800 kcal/kg de energia, o álcool hidratado não passa de parcas 6.500 kcal/kg. Ou seja, para fornecer a mesma potência é necessário queimar mais álcool.
Mas o álcool, apesar do valor energético mais baixo, oferece uma vantagem indiscutível: seu poder antidetonante permite taxas de compressão muito mais altas quando comparadas à nossa gasolina (que, nos anos 1970, era para lá de pobre em octanagem). Só para que se tenha uma ideia, na época, enquanto a gasolina era de 87 octanas RON, a do álcool é 110 RON (equivalentes, o álcool não tem a iso-octana). Por isso, a taxa de compressão dos motores podia ser aumentada, por exemplo, de 7,5:1 de um motor dos anos ’70 para, pelo menos, 10:1 graças a essa característica.
Com isso, a potência das versões a álcool era substancialmente maior do que a das movidas a gasolina, e a condução do carro movido pelo combustível de cana era mais agradável, com boa potência em menores rotações, embora se notasse certa aspereza de funcionamento. A potência era mais generosa em todos os regimes, mostrando um bom potencial daquele combustível.
O governo também criou uma série de dificuldades ao consumidor para frear o consumo de gasolina: os postos fechavam aos finais de semana (da zero-hora de sábado a 6h00 de segunda-feira). Não era permitido viajar com galões cheios de combustível, tampouco aumentar a capacidade do tanque dos automóveis (permitido só nos caminhões ônibus) e a fiscalização era frequente. Basicamente, não era possível utilizar muito o carro, e as viagens mais longas se tornavam inviáveis, especialmente nos modelos de motor grande que consumiam mais. Mas a indústria tratou logo de aumentar capacidade dos tanques, para o que não havia restrições;
Até as competições automobilísticas foram proibidas por portaria do Conselho Nacional do Petróleo em julho de 1976, efetivo a partir de 1/1/1977, mas voltariam no dia 7 de setembro seguinte, desde que utilizando álcool, o que fazia reduzir os tempos de volta nas diversas pistas Brasil afora devido aos motores ainda terem taxa de compressão para gasolina).
Quando comecei a correr em 1981, ainda via preparadores “apanhando” com os motores a álcool, e a grande discussão da época era com relação à taxa de compressão. Isso, inclusive, dentro das engenharias das fábricas: ninguém sabia o quão resistentes eram os motores movidos por aquele combustível, o quanto durariam e os seus pontos fracos. Meu Passat 1976 de corrida, tinha uma modesta taxa de 10,5:1, temendo o comprometimento do sistema de arrefecimento ou mesmo levando a quebra de um pistão ou problemas mais sérios no motor.
Transição atrapalhada
Antes que a indústria automobilística produzisse os carros a álcool, em 1978 o governo, pelo CNP, fomentou o uso do álcool mediante a conversão dos motores da frota a gasolina existente por meio de homologação de retíficas para essa finalidade. Feita a conversão, a retífica fornecia um selo para ser colocado no carro, condição para os postos que começavam a vender álcool poderem abastecer. Foi uma venda controlada por a produção de álcool ainda ser pequena. Mas a solução — adaptação — era longe do ideal em termos de eficiência dos motores convertidos.
Fabricantes entram em cena
A Fiat saiu na frente ao ser a primeira fabricante a homologar uma versão a álcool do 147 1300 em julho de 1979, porém o carro só estaria nas concessionárias a partir de novembro. A Volkswagen se adiantou e por poucos dias, final de outubro, já dispunha do Passat 1500 a álcool nas concessionárias.
Clique nas fotos com o botão esquerdo do mouse para ampliá-las e ler as legendas
Lembro que na época não existia e sequer se falava em uma opção flexíveis em combustível, que funcionasse com ambos, puros ou misturados em qualquer proporção era um ou outro, apenas. A GM pintava seus motores de cores diferentes para identificar o combustível, para que não houvesse confusões na manutenção ou na identificação: amarelo quando a álcool e azul, quando a gasolina. A Ford aprontou seu Corcel II a álcool em 1980, três após o lançamento do modelo, ]
Outros estímulos para se optar por um carro a álcool foram a venda do combustível nos fins de semana liberada e, muito importante, em tempo de preços dos combustíveis serem nacionais e tabelados, o álcool custar metade da gasolina, com óbvia vantagem no custo por quilômetro.
No começo de 1980, as principais marcas do mercado já tinham seus representantes movidos pelo biocombustível. Funcionavam satisfatoriamente bem, mas tinham problemas frequentes: partida a frio muito difícil (principalmente no inverno), funcionamento deficiente na fase fria, além do consumo elevado (estávamos acostumados com o maior alcance da gasolina).
Para a partida a frio havia desde o começo famoso “tanquinho”, o pequeno reservatório de gasolina no compartimento do motor, que por meio de pequena bomba elétrica fazia a gasolina chegar à boca do carburador facilitando a partida do motor ou mesmo tornando-a possível quando a temperatura baixasse de 14 ºC. O consumo maior logo foi aceito com naturalidade pelos brasileiros (melhorou também graças as maiores taxas de compressão e ajustes na alimentação) e o carro a álcool pegou para valer na década de 1980.
Morte e ressureição do carro a álcool
Muitos pensam que a foi a falta de álcool no quarto trimestre de 1989 que decretou a morte do carro a álcool. A falta foi inesperada e realmente causou problemas para os donos desses carros. Mas passada a crise do fornecimento as vendas logo voltaram à quase normalidade. O que matou essas versões foi um fator internacional, o preço do barril de petróleo ter despencado e a gasolina mais barata ter tornado o carro a álcool inviável quanto ao custo por quilômetro, cerca de 20% que o dos carros a gasolina. Tanto que eram comuns as conversões de carros a álcool para gasolina. Entre o final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 a produção e venda de carros a álcool foi ínfima.
A ressureição do álcool deveu-se exclusivamente ao advento do carro flex, começando pela Volkswagen em março de 2003 com o Gol Total Flex, logo acompanhado pelas demais fabricantes. Não fosse o carro flex o álcool teria sido sepultado, pois a falta de 1989 ficou indelével na memória do mercado.
Já no início dos anos 1990, os motores a álcool haviam se tornado bem mais equilibrados, e todos os problemas técnicos foram resolvidos com o surgimento da injeção eletrônica, que aí acertou de vez aquelas falhas. A injeção direta acabou com qualquer resquício de dificuldade de partira a frio. Hoje são apostas fortes inclusive para um futuro breve, mesclando a tecnologia híbrida (combustão + eletricidade) com as vantagens desse biocombustível. Mas a caminhada do álcool sem dúvida foi longa, e em novembro de 2025 completará 50 anos no Brasil.
DM
A coluna “Perfume de carro” é de exclusiva responsabilidade do seu autor