Nesta semana escreverei sobre a China e o seu gigantesco mercado.
A ideia não é chover no molhado, mas trazer elementos para entendermos os motivos que levaram este país, que até os anos 1990 era conhecido por copiar veículos do ocidente, a se tornar uma potência.
Iniciarei a coluna realizando uma divisão histórica da indústria automobilística chinesa, que dividi em cinco fases:
I) Pré-Industrialização
Pouco se tem a agregar exceto o fato de que o primeiro projeto de veículo automotor, na verdade um caminhão de porte médio denominado Minsheng 75, e sua fábrica foram destruídos com a Invasão japonesa da Manchúria em setembro de 1931.
II) Fase Pós-Instauração da República Popular da China (1949-1980)
Nesta fase o desenvolvimento da indústria automobilística foi restrito pela falta da livre concorrência e pelos resquícios da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976) em que o objetivo era manter as premissas do comunismo. Uma pequena exceção ocorreu entre 1950 e 1960 quando a China desenvolveu um caminhão para uso militar baseado em um outro caminhão russo. Nesta fase também foram criadas diversas fábricas de montagem de veículos, a maioria com foco em caminhões de uso militar ou industrial.
III) Reforma Econômica (1980-2000)
Com uma produção interna demasiadamente limitada para a sua demanda, a China passou a importar muitos veículos automotores. Mesmo com um imposto de importação de 260% as importações subiram a níveis que ocasionaram problemas na balança comercial daquele país e por este motivo foi decretada a suspensão de 2 anos na importação de veículos no final de 1985.
Uma política de joint-venture de 1979, obrigatória para empresas externas que queriam atuar na China, viabilizou o início de uma nova indústria automobilística aproximando o capital e a tecnologia das empresas mais desenvolvidas, com destaque para as companhias de capital norte-americano, europeu e japonês.
Mesmo em kits CKD com baixa transferência tecnológica, a alta produção tornou os chineses conhecedores do processo de manufatura. Nos anos 2000 as empresas que trabalharam em regime de joint-venture eram:
– Beijing Jeep
– Changan Suzuki
– Changhe Suzuki
– Dongfeng Citroën
– FAW-Volkswagen
– Guangzhou Peugeot
– Shanghai Volkswagen
– Soueast Motor
E outras empresas de capital chinês também passaram a atuar a partir da metade dos anos 1990.
– Brilliance
– BYD
– Changan
– Changfeng Motor
– Changhe
– Chery
– Geely Auto
– Great Wall Motor
– Hafei
IV) Era do Crescimento (2001-2020)
Em 2001 a China entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC) para basicamente deslocar a sua economia anteriormente apoiada no modelo socialista para uma economia de mercado (o que ficou denominado por economia socialista de mercado) e, mais importante, para ter garantias das regras da OMC de que suas exportações não seriam discriminadas; por outro lado os demais membros da OMC seriam atraídos pela grandiosidade do mercado chinês em fase de abertura e também estariam lastreados por regras que restringiriam a exportação chinesa a ponto desta não se tornar um incômodo para as economias locais.
Já fazendo parte da OMC, a China passou a diminuir as tarifas de importação dentro de suas fronteiras possibilitando acesso dos consumidores chineses aos veículos novos bem mais atualizados aumentando a competição dentro daquele mercado e derrubando os preços de forma contínua, ano a ano. Grande parte deste consumo ocorreu pela ascensão da classe média motivada pela grande sinergia da China com a nova economia do mundo capitalista que teve como base os setores de maior valor agregado. Antes, bom recordar, a China já iniciava este processo como exportadora de produtos processados de baixa e média tecnologia e complexidade.
Enquanto as joint ventures com as empresas estrangeiras dominavam o mercado das classes média e alta, pequenas e médias empresas automobilísticas estatais e privadas chinesas iniciavam a produção para atender o mercado interno. Entretanto, as empresas estrangeiras vinculadas as joint ventures transferiam pouca ou nenhuma tecnologia e se prestavam a basicamente efetuar cópia dos veículos ocidentais com modificações pouco tecnologicamente representativas. Iniciou-se assim o desenvolvimento de veículos desde o começo do processo de criação em que a indústria chinesa passou a adquirir conhecimento e a desenvolver seus padrões e suas patentes.
Em paralelo, num processo de consolidação orientada pelo governo chinês, uma série de pequenas empresas fecharam ou se consolidavam e a China iniciava o seu caminho para se tornar uma potência nesta área.
Em 2018 o Governo Chinês anunciou o fim da obrigatoriedade das joint ventures permitindo que as empresas estrangeiras assumissem a propriedade das operações das fábricas estabelecidas naquele país. A ideia era aumentar a competitividade do mercado interno e facilitar o desenvolvimento da indústria local. No mesmo ano liberou empresas estrangeiras que investissem em novas energias de atuar no país; a Tesla iniciou suas operações fabris a partir deste decreto.
Para entendimento do crescimento do mercado, segundo dados da OICA (Organização Internacional de Fabricantes de Automóveis), a China passou de 2.334.440 de carros e comerciais leves produzidos em 2001 (8ª maior produtor mundial) para 25.225.242 unidades em 2020 (1º colocado). Em 2001 a China detinha 4,15% da produção mundial passando para 32,50% no mesmo período.
Outros dados: em 2006 a China ultrapassou a Alemanha na produção mundial de veículos; em 2008, aproveitando-se da crise global, ultrapassou os EUA e em 2009 alcançou a posição do Japão, naquela oportunidade o líder mundial. Desde então a China permanece na liderança neste quesito.
V) Período Contemporâneo (2021 – atualmente)
Em 2009 a China criou o “Plano de Ajuste e Revitalização da Indústria Automobilística” que estabelecia as premissas da produção e do desenvolvimento dos veículos elétricos chineses. Sem condições de brigar em igualdade de condições com os veículos a combustão interna das empresas tradicionais, a estratégia foi desenvolver um novo segmento que atendia as necessidades ambientais de redução das emissões ao mesmo tempo em que evitaria a dependência do petróleo externo. Tal ação se provou mais do que acertada e surtiu efeito mais do que positivo.
Entendendo a importância das baterias no arriscado plano de mudança para uma indústria de veículos elétricos, ainda no início dos anos 2000, o governo chinês passou a dar ênfase no desenvolvimento desse elemento. Apesar de ter recursos naturais restritos nesta área, passou a controlar a matéria-prima necessária muito antes que qualquer concorrente entendesse a importância de minerais como lítio, cobalto, cobre, níquel, estanho, grafeno,… e ainda mais relevante, dominou o processo produtivo destes elementos e da fabricação da bateria. Para surpresa do ocidente, tudo transcorreu de forma extremamente discreta.
A ampla utilização dos veículos eletrificados bem como o relativo revés das marcas tradicionais em acompanhar esta mudança fizeram da China uma verdadeira potência em relação a eletrificação. Hoje mais de 75% das baterias de íons de lítio, aproximadamente 85% da produção de anodos e 70% da capacidade global de produção de cátodos são produzidos na China.
Com subsídios governamentais, isenções tributárias e acordos políticos, diversas marcas surgiram e desenvolveram ainda mais a tecnologia dos veículos elétricos. Entidades governamentais chinesas e governos locais adotaram os veículos elétricos no transporte público resultando num volume significativo em especial nas grandes cidades. Em paralelo, o governo chinês adotava um controle da produção e da qualidade das baterias elétricas visando uma competição interna saudável que propiciasse a inovação tecnológica.
Com o passar do tempo o excesso de produção dos veículos elétricos levou as fabricantes chinesas a aumentar as exportações e expandir as vendas no exterior. Importante destacar que a indústria chinesa ainda produz veículos com motores a combustão interna, mas conforme já destacado não são os veículos mais atraentes ou os mais competitivos daquele mercado.
Os veículos chineses deixaram de ser apenas cópias com baixa inovação de veículos ocidentais para entregar design, tecnologia, qualidade, segurança e inovação com um preço competitivo. Ricardo Bacellar, um dos maiores analistas da indústria automobilística brasileira e apresentador do programa Papo de Garagem, costuma dizer que a indústria chinesa fez a ‘lição de casa’ e investiu massivamente em unidades fabris de alta capacidade, na infraestrutura interna e portuária, na logística, em educação e no desenvolvimento geral da indústria, ou seja, em todas as frentes necessárias para se tornar competitiva.
Ilustrando a atratividade da indústria chinesa nos dias atuais, abaixo alguns nomes de prestígio na área de design que atuam na China:
– Benoit Jacob: designer na GAC e ex-desinder do BMW I8
– Giles Taylor: designer da FAW e ex-designer do Rolls-Royce Cullinan
– Jozef Kabañ: designer da SAIC e ex-designer do Bugati Veyron
– JuanMa Lopez: designer da XPENG Motors e ex-designer do Ferrari LaFerrari
– Phil Simmons: designer da GWM/Tank e ex-designer da Land Rover Range Rover
– Stefan Sielaff: designer da Zeekr e ex-designer da Bentley Continental GT
– Wolfgang Egger: designer da BYD e ex-designer do AUDI R8
E intrigante como o mundo dá voltas. Até 2018 as empresas estrangeiras eram obrigadas a forma joint-ventures com outras empresas chinesas para participarem do mercado. Atualmente grandes grupos procuram as empresas chinesas para desenvolvimento e apoio nas áreas de eletrificação e tecnologia. Não sendo restritivo, Stellantis, Volkswagen, BMW, Mercedes, Jaguar Land Rover, entre outras fazem parte deste grupo de empresas.
Atualmente a China possui aproximadamente 150 marcas ativas sendo próximo de 100 as marcas domésticas.
Por fim vale finalizar esta coluna com algo que aprecio… números.
Com base nas vendas globais disponibilizados pela empresa MARKLINES, percebe-se que quase todas as principais marcas chinesas apresentaram um crescimento elevado nas vendas entre 2023 e 2024. Veja abaixo:
BYD: 43,90%
CHERY: 32,40%
GEELY: 22,40%
FAW: 14,20%
GWM: 8,00%
BAIC: 7,90%
CHANGAN: 3,30%
GAC: -8,10%
SAIC: -19,30%
Além disso, a empresa também disponibilizou a participação de mercado da China em relação as vendas globais. Atualmente o país desponta como líder absoluto com 35,0% das vendas seguido de longe pelos Estados Unidos com 18,3%, Índia (5,8%), Japão (4,9%), Alemanha (3,5%) e Brasil (2,9%).
E esta dominância aparentemente está longe de ter um fim.
Não adianta… Seja por determinação legal, seja pelo desenvolvimento natural da indústria automobilística, gostando ou não, querendo ou não, os veículos serão, num futuro breve, em sua maioria eletrificados. O mix variará de país a país de acordo com as questões regionais. Alguns países serão majoritariamente elétricos como hoje já ocorre com Noruega; outros como o Brasil, irão iniciar o processo com os híbridos leves e atingirão a maturidade com os híbridos puros plug-in.
A questão que predomina é: quantos destes veículos serão MADE IN CHINA.
MKN
A coluna “Visão estratégica” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.