Um dos maiores absurdos praticados hoje contra o motorista brasileiro é obrigá-lo a pagar por uma infração cometida pelo dono anterior do veículo. É de um surrealismo kafkiano e difícil acreditar que um órgão público tenha coragem suficiente para afrontar o cidadão de modo tão vergonhoso. Entra na lista dos surpreendentes desaforos públicos…
Como se desenrola?
Ao se comprar um carro usado, há uma série de exigências do órgão público a serem observadas, não só por quem compra, mas também pelo vendedor. Um deles é obter o “Nada Consta” no Detran, que comprova não haver débitos pendentes de multas ou outros tributos até aquela data. No caso de alguma pendência, ela deve ser quitada para viabilizar a transação. Assim que efetivada, o comprador comunica a transferência ao Detran por um documento que era chamado de DUT (Documento Único de Transferência) utilizado (em papel) até 2020. Desde então foi substituído pelo o APTV-e (Autorização para Transferência de Veículo- eletrônico).
Embora o cartório onde se reconheceram as firmas do vendedor e comprador já esteja conectado ao Detran, a quem a operação é comunicada eletronicamente, é necessário comunicar formalmente ao Detran a venda do veículo. Após se cadastrar no órgão vá à seção Veículos, depois Transferência de veículo e mudança de endereço e preencha os poucos dados solicitados. Isso para evitar ser responsabilizado por infrações de trânsito (ou até crimes de trânsito) que poderão ser cometidos pelo comprador. Mas a recíproca não é verdadeira.
Apesar de cumpridas todas as formalidades, ainda pode surgir uma inesperada e desagradável surpresa por absoluto desrespeito do Detran com o comprador do carro, verdadeiro escândalo: semanas ou até meses depois de estar de posse do automóvel, o novo dono pode ser surpreendido com a cobrança de uma ou mais notificações atrasadas relativas a infrações cometidas pelo dono anterior.
Pior, pode haver multas emitidas pelos Detrans de outros estados ou pelos Departamentos de Estradas de Rodagem estaduais, até do mesmo estado, as quais o proprietário não necessariamente tem conhecimento, o que constituiu uma aberração em si só. O correto é todas as multas serem repassadas para o Detran que licenciou o veículo e este órgão proceder com cobrança da multa. Com a comunicação eletrônica atual inexiste qualquer dificuldade para isso.
Não adianta espernear: por mais surrealista e imoral que seja, é muito mais prático para o Detran cobrar do novo dono, embora o órgão tenha nome, endereço, CEP, RG e telefone do proprietário anterior, que cometeu de fato a infração. Mas responsabilizar o atual é muito mais prático, fácil e de efeito imediato pois, caso não pague pela infração que não cometeu, tem os pontos registrados no prontuário, o valor vai para a dívida ativa e o veículo não poder ser transferido.
O Detran, consultado, recomenda — hipocritamente — que o novo dono cobre a multa do anterior. Solução no mínimo risível, num país em que sequer passa pela cabeça de alguém entrar na Justiça para cobrar o valor de uma infração de trânsito. Para que complicar o que se pode simplificar, deve ser o raciocínio egoísta, tacanho e velhaco do governo…
Parlamentares indignados com esta aberração já tentaram eliminá-la, mas foram barrados pelo governo federal, pois apesar de ser uma óbvia distorção, beneficia os cofres públicos.
Uma nova tentativa é o projeto de lei do deputado Pedro Júnior, do Tocantins, aprovado no mês passado pela Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, por seu relator, o deputado Gilberto Abramo, do Republicanos de Minas Gerais.
Este PL desvincula do veículo e de seu novo dono as infrações praticadas pelo anterior e lançadas com atraso no Sistema de Registro Nacional de Infrações de Trânsito (Renainf).
Entretanto, muita água ainda vai rolar debaixo da ponte até que talvez seja cancelada esta aberração, pois o projeto ainda deverá ser aprovado por outra comissão, a de Constituição, Justiça e Cidadania. Depois, pela Câmara e Senado. E ainda corre o risco — como já ocorreu no passado — de o projeto ser aprovado pelos parlamentares, mas vetado pelo presidente da República. Preocupado em preservar esta arrecadação, por mais imoral que ela seja.
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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