Em 1993, eu ainda estava na Revista Quatro Rodas. Por isso, fui cobrir o lançamento do mais novo hatch médio do mercado brasileiro: o Fiat Tipo. O evento foi numa grande festa no Rio de Janeiro, num final de semana de setembro de 1993. Na ocasião, eu e Ricardo Dílser, meu sobrinho então com 21 anos (atual editor e apresentador do programa Auto Esporte na TV Globo), estávamos presentes, os dois pela Quatro Rodas. Para aquele lançamento, centenas de jornalistas do país inteiro haviam sido convidados. Pudera, não era para menos: era o primeiro modelo da Fiat naquela categoria de hatches médios.

Na época, só para que se tenha uma ideia, a marca italiana queria vender cerca de 500 unidades do carro, importado da Itália. Mas o sucesso do Tipo foi tão estrondoso que, logo nos primeiros meses, já estavam emplacando o triplo do que havia sido previsto. Na época, em 1993, a Editora Abril, que editava a Quatro Rodas, possuía um tal “código de ética” proibindo que seus jornalistas recebessem prêmios, bonificações ou vantagens de marcas ou instituições. Desde uma caneta até uma casa, tudo proibido.
Falava-se que presentes de até 10 dólares eram permitidos, e o que passasse disso deveria ser cordialmente devolvido. Sem conversa. Claro que estava incluído nisso tudo os convites para viagens. Assim, o convite formal da Fiat para o lançamento do Tipo foi recusado pela editora, que arcou com hospedagem e outras despesas da nossa viagem (fomos e voltamos de carro). A coisa era esquisita: se participássemos de um jantar de lançamento, tínhamos que pagar a nossa conta, algo extremamente complicado num evento com centenas de convidados. Mas, regras são regras, e nós, como funcionários da editora, tínhamos que segui-las.

Pois bem, no último dia do evento, depois da apresentação, de dirigir o carro e coletiva de imprensa, fomos convidados para um evento à parte no charmoso Jockey Club Brasileiro, na Gávea. Lá, num dos páreos de corridas de cavalos, a imprensa convidada poderia fazer apostas num dos cavalos. Quem acertasse o ganhador, iria para uma fase final do desafio: nela, o jornalista de sorte teria que acertar, numa caixa cheia de chaves, a correta para ligar um Fiat Tipo que estava lá estacionado.
Chegando ao Jockey Club deparei-me com o diretor superintendente da Fiat, o italiano Pacifico Paoli, comemorando o lançamento do novo hatch médio com ninguém menos que o executivo-chefe da Editora Abril Thomaz Souto Corrêa. Dessa forma, me senti mais encorajado a participar do tal desafio de quem levaria o Fiat Tipo 0-km para casa. O chefe do meu chefe estava presente, então me vi “autorizado” a concorrer também, mesmo indo contra o “código de ética”.

Como não entendo nada de cavalos, e muito menos das suas corridas, estava completamente perdido em escolher um possível vencedor. Nesse caso, fiz valer a minha experiência de vida: desci da arquibancada em que estávamos para aquele salão de apostas onde ficam os viciados e aficionados por corridas de cavalos. Lá, com eles, fiz uma enquete: quem seria o vencedor do páreo para a pista de grama seca. Como eu e o Dílser estávamos juntos, combinei com ele: “Vamos pegar os dois cavalos com mais apostas. Você fica com um, e eu com o outro”.
Nossos esforços deram resultados: o cavalo que eu havia escolhido ganhou, e aí eu fui para a fase final da prova. Um carro desses, na época do lançamento, era oferecido no mercado brasileiro por cerca de US$ 17 mil (era época da inflação feroz, da economia dolarizada), hoje algo ao redor dos R$100 mil. Só bastava eu escolher, naquela caixa cheia de chaves, a única que ligaria o Tipo 0-km que estava lá estacionado. Também combinei outra coisa com o Dílser: quem ganhasse o carro, daria metade do valor ao outro. Acordo de cavalheiros!

Mesmo sem saber se poderia receber o prêmio, por conta do tal código de ética, fui disputar a final. Antes, me dirigi ao chefão da Abril, que estava lá presente. Expliquei o que estava acontecendo, e comentei os impasses de receber um prêmio da Fiat. Thomaz Souto Corrêa, na euforia do evento, me disse: “Você está aqui representando a Quatro Rodas, e não vai fugir da raia. Vai lá, pega a chave certa, ganhe o carro e comemore muito!”.
Mas eu sabia que a coisa não era simples assim, afinal disputaria o carro com outros cinco jornalistas. Na caixa, que uma simpática moça insistia em balançar, havia seis chaves, e uma delas era a correta para ligar o carro. Ou seja, uma para cada participante.

Lembro-me como se fosse hoje. Disse para a tal moça: “Pode balançar a caixa o quanto quiser. Vou pegar a chave certa e ligar o carro, mesmo sabendo que isso vai me dar encrenca no trabalho!”. Todos os jornalistas escolheram suas chaves, e, um por um, fomos tentar ligar aquele Tipo. Convincente, eu não estava preocupado, e algo me dizia que ganharia o prêmio. Não deu outra! Na minha vez, entrei no carro, liguei o contato e dei a partida.

Assim ganhei um Fiat Tipo 1,6 1994 0-km, cor azul metálica, na charmosa carroceria de duas portas. Mas eu não sabia se poderia realmente levá-lo para casa. Por isso, não fiquei tão feliz assim, e logo alguém da Fiat veio me perguntar: “Isso é cara de quem acabou de ganhar um carro 0-km?”. Prontamente respondi: “Só eu sei a dor de cabeça dentro da Editora Abril que esse presente vai me dar…”. Fiz fotos com o superintendente da Fiat, com o presidente da Abril, com o carro, todos juntos, tudo era festa. Ter o chefão da Editora ali, vendo tudo e me parabenizando, já poderia ser um aval para, de fato, levar meu carro.

Fiz uma proposta para o presidente da Abril: “se não me liberarem esse carro por conta do código de ética, posso doá-lo ao teste de longa duração da Quatro Rodas, o que acha?”. Nem terminei a frase, e já tive resposta: “o carro é seu, e quem ganhou foi você! Abril e Quatro Rodas, se quiserem um para o teste, que comprem na concessionária. Esse é seu!”.
Saímos, eu e o Ricardo Dílser, do Jockey Club Brasileiro, rumo a São Paulo. Na segunda-feira pela manhã, fui logo fui chamado pelo meu chefe Carlos Costa, o diretor de redação, que queria detalhes do tal prêmio que eu havia ganhado da Fiat. O danado sabia mais do que eu! Foi logo dizendo que não poderia recebê-lo, afinal a empresa não permitia, mas não contava com a autorização do presidente da Abril. Na época, coisas do Brasil, mas a aplicação do valor do carro (US$ 17 mil) me renderia, por mês, mais do que o salário que eu ganhava como repórter especial.
Esse foi o meu outro contra-argumento: se fosse mandado embora, conseguiria mais dinheiro na venda do carro do que com meu salário. Apesar do absurdo, assim estava o mercado na época: dinheiro aplicado valia mais que salário, trabalho ou conhecimento. Emilio Camanzi, gerente de Comunicação da Fiat na época, logo me ligou perguntando onde deveria ser entregue o carro que ganhei. Falei-lhe sobre os impasses com a Editora, mas era tarde: a nota fiscal do Tipo já estava em meu nome, e a Receita Federal havia sido avisada que eu tinha ganhado o carro como prêmio. O processo não tinha volta: o carro era meu e ponto final.
Recebi meu Fiat Tipo “zerinho” em casa. Dentro da Editora Abril, meu chefe até tentou negociá-lo comigo, pagando a metade do valor (US$ 8,5 mil), mas eu só venderia pelo valor de mercado. E olhe lá. Depois de algumas semanas, o carro empoeirando na minha garagem, já tinha documentação em meu nome e licenciamento em dia. Fui atrás do diretor de redação para saber o que deveria ser feito, e dele ouvi o que queria: “você ainda não está usando seu carro novo? Deveria! Esse assunto já morreu aqui dentro, pode ir curtir seu Tipo 0-km!”.

Minha negociação com o Dílser foi fácil: dei para ele um VW Gol 1000 que havia acabado de comprar exatamente pela metade do valor do Fiat. Ele adorou seu novo “Gol quadrado”, com menos de 1.000 km rodados, e saiu feliz. Fiquei com o Tipo azul metálico por uns dois ou três anos, até vendê-lo. Não foi o melhor carro que já tive, passou longe disso, mas pelo que custou, estava ótimo!
DM
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