Em tempos de pessoas furiosas na internet e de vigilância de tudo o que se diz e se escreve — até mesmo por aqueles que não dominam o assunto ou sequer tem um mínimo conhecimento — arrisco-me a ser alvo de algum desses segmentos. Ainda assim, não me furtarei de comentar o que gostaria.
Recentemente revi o filme “Metrópolis”, de 1927. Continuo achando-o muito bom, mas, claro, não dá para exigir que tenha os travellings de câmera de um Brian de Palma. Não que lhe faltasse talento a Fritz Lang. Faltava-lhe tecnologia. Na época, a câmera ficava praticamente parafusada ao chão. Como fã de cinema, a todo momento revejo outros filmes antigos e sempre faço questão de analisar a época e o contexto em que foram filmados. Acabei de rever “Blade Runner”, o de 1982, preparando-me para ver o de 2017 e me peguei fazendo reparos a uma cena em que Harrison Ford fecha a porta para Sean Young, coloca-se no caminho dela e manda que ela diga uma série de frases para ele. Claramente, algo que hoje seria considerado machista, misógino, estupro, etc, etc, etc. Três décadas atrás obviamente não era. E continua uma cena linda, sexy, que diz muito sobre o relacionamento dos dois.
E por que toda esta disgressão cinematográfica, dirão os autoentusiastas? Simples. Hoje vejo comerciais dos mais diversos tipos, ou mesmo programas brasileiros e encontro diversos atentados ao Código de Trânsito Brasileiro — sem falar no bom senso. Faço a ressalva de que me refiro apenas ao conteúdo nacional, pois sempre pode haver algumas variações de um país para outro, embora as normas de trânsito em si sejam basicamente as mesmas sempre. Mas em alguns países o uso de capacete por motociclistas e ciclistas é obrigatório e em outros não, apenas por ficar num exemplo.
Acho que nem tanto ao Céu nem tanto à Terra. Mas querem um exemplo recentíssimo? Programa de esportes que acompanha a atleta Carol, jogadora de vôlei de praia. Precisa a pessoa que vai no banco de trás se debruçar bem no meio do banco, sem cinto algum, para conversar com ela enquanto ela dirige? Não sou de exagerar nos policiamentos, mas custa dar um bom exemplo? Ou então, entrevistá-la fora do carro? Mesma coisa com jornalista de esportes papeando com jogador de futebol enquanto este dirige. Precisam andar pela faixa da esquerda enquanto todos os outros carros são obrigados a ultrapassar pela direita? Ou mostrar o indigitado com o cotovelo esquerdo apoiado na janela, bração para fora o tempo todo. Precisa? Claro que não. Fico com a impressão que o repórter não conhece o Código de Trânsito (o que seria um horror, pois sempre achei que jornalista deve saber bastante sobre tudo e, geralmente, tem habilitação para dirigir) ou fica com medo de chamar a atenção do atleta — o que também seria um absurdo. Afinal de contas, é um ser humano, não um deus do Olimpo. E a mitologia está cheia de casos de humanos que desafiaram deuses do Olimpo. Alguns bem-sucedidos, diga-se de passagem.
Esses são aqueles pequenos exemplos que vão ficando no subconsciente de todos nós. Acompanhei com enorme entusiasmo o seriado “Mad Man”. Entusiasmo não, obsessão talvez fosse a palavra mais adequada de tão fã que fiquei. A série mostrava o mundo da publicidade em Nova York no final dos anos 1950 até o início dos anos 1970 e a reconstrução de época era um primor. Numa cena, o personagem principal faz um piquenique num parque com a mulher e os filhos pequenos. Ao final, arremessa uma lata de cerveja ao longe, sacode a toalha de mesa que estava sobre a grama, dobra-a e guarda no porta-malas, deixando todo o lixo para trás. Ele era especialmente mal-educado? Nem um pouco. Era um comportamento normal então. Claro que fiquei chocada, mas entendi como algo da época. Por isso não me horrorizo quando vejo meus DVDs de “A Feiticeira” e Samantha leva Tabatha numa cadeirinha para lá de precária no banco da frente de um carro conversível (foto de abertura). Os conhecimentos que se tinha de segurança veicular naquela época eram esses, mas hoje? Por que fazer filmes publicitários sem respeitar a legislação? E, claro, não me refiro apenas a comerciais de carros ou motos. Todos devem fazer isso. Não faz sentido dar um mau exemplo quando se pode mostrar como fazer certo.
Outro clássico frequentemente desrespeitado é ultrapassagem com faixa dupla continua. Geralmente quando se mostram dois carros numa estrada, no mesmo sentido para comparativo ou quando se quer mostrar dois veículos do mesmo modelo em cores diferentes. Barbaridade! E é tão fácil de resolver: basta mostrá-los juntos quando a faixa é pontilhada ou fazer a manobra numa autoestrada tipo Imigrantes ou Castello Branco, com várias faixas na mesma direção. Difícil? Nem um pouco, não?
Novamente, sem policiamento retroativo que acho isso uma chatice e um despropósito. Se 30-40 anos atrás levar uma criança no colo dentro de um carro era aceitável no Brasil, hoje viola o CTB e é reprovável. Se o produtor ou o diretor de um comercial acha essa norma uma tolice, direito dele. É só não filmar uma cena com uma criança dentro de um carro. Se o fizer, tem de ser numa cadeirinha. Simples, não? Mas é ridículo querer censurar filmes antigos porque as crianças andavam no colo dentro dos carros. É claro que não me refiro aqui a esse tipo de atitude, mas a outras que agora se pretende punir retroativamente como se quis proibir e censurar a literatura de Monteiro Lobato tachando-a de racista. Como dizia o escritor espanhol Ortega y Gasset, “o homem é o homem e suas circunstâncias”.
Mudando de assunto: tem gente que gosta de torturar os números até que eles provem o que se quer. Outros nem os torturam, apenas usam os que lhes convêm. Semana passada, a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo divulgou números sobre emissão de multas e alguns meios de comunicação os publicaram sem sequer analisar ou questionar — como é praxe, aliás. Ufa! Segundo a autoridade, nos dez primeiros meses deste ano foram emitidos 6,5 milhões de multas. Desse volume, 467 mil veículos teriam recebido 4 milhões de multas, o que significaria que 5,5% da frota seria responsável por mais de 60% do total de autuações. Enquanto isso, 6,3 milhões de veículos (75% do total) não teriam recebido nenhuma multa.
A Prefeitura e parte da imprensa, apressaram-se a dizer que isso significa que não há indústria de multa e que apenas uma pequena parte da população é que comete as infrações enquanto a maioria respeita as normas de trânsito. O problema desta teoria é a base de cálculo. A CET usa um dado absolutamente irreal de frota de 8,5 milhões de veículos (carros de passeio, ônibus, caminhões, motos). Digo irreal porque todas as autoridades de trânsito, de várias autarquias e departamentos, já reconheceram em vários governos que os números estão totalmente desatualizados, pois não há obrigação de dar baixa nos veículos no Detran. Tanto é que constam desses 8,5 milhões 215 veículos fabricados em 1901 e absolutamente todos os veículos com mais de 50 anos de fabricados. Ou alguém acha que eles ainda circulam diariamente e que, por isso, estão sujeitos a multa? Um número mais realista utilizado por especialistas é que a frota circulante seja a metade desse total, de 3,8 milhões de veículos, o que é muito mais provável até porque não haveria sequer vias suficientes para abrigar os tais 8,5 milhões de veículos. Assim, ainda que os 467 mil infratores contumazes possam ter 8,4 multas cada um eles correspondem a 12,3% da frota circulante e não a 5,5% como diz a Prefeitura. E as demais 2,5 milhões de multas foram aplicadas a um total de 19,3% dos tais 8,5 milhões de veículos segundo a CET, o que dá 1,7 milhão de veículos. Acontece que esse 1,7 milhão não corresponde a 19,3% da frota circulante mas sim a 44,7% dos 3,8 milhões efetivamente em circulação. Logo, quase metade dos motoristas recebeu, sim, uma multa nos primeiros dez meses do ano – além dos outros 12,3% que concentram boa parte das multas. Esta distorção, aliás, não foi inaugurada por esta administração municipal, mas está sendo perpetuada. Infelizmente.
NG