Quando o Ronaldo Berg escreveu a coluna “Mil Milhas, sonho de muitos pilotos”, de 22/04/18, muitos “filmes” passaram na minha cabeça. A frase-título não poderia ser mais verdadeira.
Nos anos 1950/1960 a Mil Milhas Brasileira (foto de abertura) exercia um verdadeiro fascínio sobre adolescentes, jovens e adultos. O mais notável é naqueles anos a divulgação ser quase exclusivamente pelos jornais, pois até a televisão era incipiente, havia começado em 1950 apenas.
Havia uma ou outra revista, como a Revista de Automóveis e a Carro à Vista, ambas do Rio de Janeiro. Em São Paulo havia um jornal especializado muito bom, o HP. Era em alguns poucos jornais de grande circulação e nessas publicações especializadas que as notícias das corridas chegavam. A Quatro Rodas só seria fundada em 1960 e a Autoesporte, em 1964.
Lia-se sobre a prova italiana Mille Miglia nas revistas estrangeiras e nos veículos de comunicação citados e isso, associado ao fato de haver uma prova deste extensão no Brasil, dava um sabor e um interesse inusitado pela Mil Milhas Brasileira para quem gostava do automobilismo.
Esse interesse cresceu com um filme de 1954 chamado “Caminhos sem volta” (The Racers), que tratava do automobilismo europeu, começando pelos carros esporte e passando à Fórmula 1 — esta ainda novidade, havia começado em 1950. Uma boa parte do filme, cerca de 1/4, era dedicado à Mille Miglia. Assisti-o pela primeira vez quando tinha 13 anos; meu irmão, 15. Lembro até hoje, foi no cine Roxy, em Copacabana. Desnecessário dizer, repetimos a sessão.
As imagens da prova no filme são mesmo sensacionais, com tomadas incríveis. Transmite exatamente o espírito da época. Imperdível para quem aprecia automobilismo de competição de verdade. Pode ser encontrado em VHS na Amazon dos EUA.
O que assisti — de novo, a 17ª vez… — há uns anos é de um amigo do Arnaldo Keller. do interior de São Paulo. Tentei copiar a fita VHS, mas havia bloqueio contra cópia.
Essa prova italiana era de estrada, partia de Brescia, descia pela costa do Mar Tirreno, chegava a Roma, e depois ia para a outra costa da “Bota”, para então subir para o norte pela costa do Mar Adriático. Realizava-se num dia e não chegava a 11 horas nos últimos anos — a derradeira, de 1957 (a primeira foi em 1927), foi vencida pelo italiano Piero Taruffi, com Ferrari 315 S, V-12 de 3,8 litros, em 10h27min47s. Não havia estrada fechada para treinos, os pilotos treinavam com estradas aberta mesmo, era o jeito.
Muitos pilotos levavam copiloto, ou navegador, para ir “cantando” as curvas, como nos ralis de velocidade. Mas Taruffi foi sozinho. Sua média horária, 152,708 km/h, é impressionante para as estreitas e sinuosas estradas de então.
A Mil Milhas Brasileira
A Mil Milhas Brasileira foi criação do radialista Wilson Fittipaldi (pai de Wilsinho e Emerson), da Rádio Panamericana, associado ao presidente do Centauro Motor Clube, Eloy Gogliano. A genialidade da dupla consistiu em realizar uma prova dessa distância, desse vulto, 1.600 quilômetros em circuito fechado em vez de estrada, no único autódromo brasileiro de então, Interlagos.
Assisti a primeira Mil Milhas, Viemos eu, meu irmão e um amigo da turminha da Gávea, no Fusca 1200 1955 de casa. guiado pelo nosso primo David Sharp, de 24 anos, portanto habilitado, para assistir a primeira Mil Milhas. Não sei como, mas o Fusca percorreu os 405 quilômetros da Via Dutra em 4 horas e 5 minutos — tempo líquido, descontada uma parada para lanche e outra para reabastecimento. O acelerador (ainda de rodinha) não saiu do batente a viagem toda. Claro, tráfego quase zero, caminhões praticamente inexistentes, pedágio nem pensar, e não topamos com nenhum policial rodoviário federal naquele sábado 25 de novembro de 1956.
Ficamos extasiados com o que vimos e na mente ficou cravado o “sonho” de um dia correr a Mil Milhas. A minha realização estava bem longe, 1973, quando corri minha primeira Mil Milhas com um Opala com modificações permitidas pela Divisão 3, com o Jan Balder. Chegamos em quarto, após uma série de problemas, entre os quais a “demolição” do câmbio, ficando as três horas finais só em quarta, que é marcha direta no Opala, por isso deu para terminar. Por pouco não subimos no pódio: a três voltas do final o Opala do Raul Natividade nos passou.
Mas voltemos ao tema dessa história, o sonho de correr a Mil Milhas.
O primo Billy (irmão mais moço do David) tinha o mesmo sonho. Ele e um amigo, Peter Kuenerz, de família abastada, tinha um Jaguar Mk VII, um carro incrível no seu tempo, motor seis em linha de 3,4 litros, 160 cv, câmbio de quatro (!) marchas. Os dois combinaram de correr a segunda edição da Mil Milhas, a de 1957.
Vieram a Interlagos (somos todos cariocas, lembre-se) para “ver como era”, andar com o carro num dos inúmeros treinos que havia na época. Andaram, sentiram o gosto de andar num autódromo, se sentiram confortáveis — o primo mais que o dono do Jaguar.
Na viagem de volta, o Billy tirava um cochilo no banco traseiro do Mk VII quando ouviu um “estrondo”, segundo ele me contou depois. “O capõ!”, gritou o Peter. O capô havia aberto e voado, arrancado pelo vento relativo, romperam-se as duas dobradiças. Pararam e foram buscar o capô, que ficou bem danificado. Colocaram-no como deu no banco traseiro e chegaram ao Rio.
Mas parou aí o sonho do Billy. O Peter se desinteressou de correr e não teve jeito de convencê-lo a voltar atrás.
Eu e o Billy éramos muito amigos, não só o fato de sermos primos. Infelizmente perdi-o no dia 3 de outubro último, de complicações numa cirurgia abdominal. Tinha 80 anos.
Esse fato está ligado a outro aqui no AE, a história do Boeing B-377 Stratocruiser contada há pouco (14/4) pelo leitor Josenilson Veras: os pais do Peter faleceram no acidente do Stratocruiser da Pan American no Brasil, ficando ele, o irmão Afonso e a irmã Marly órfãos ainda bem jovens.
Dois anos depois o Billy, agora empurrado pelo meu irmão, resolveram “fazer” a Mil Milhas. Mas carro nenhum dos dois tinha, assim saíram a campo. Todo domingo procuravam alguma coisa que andasse, nos Classificados do Jornal do Brasil e, principalmente, que coubesse no parco orçamento — de mesada — deles.
Apareceu um sério candidato ao projeto, o preço era bom e o carro tinha credenciais “esportivas”: um Cord 810 1936, à venda num subúrbio carioca, se não me engano em Maria da Graça. Motor V-8 de 4,75 litros e 125 hp (126,7 cv) e… tração dianteira. Babaram pelo carro. O câmbio era de três marchas mais overdrive, vale dizer, quatro marchas. Só que era semi-automático, pré-seletivo — uma minúscula alavanca em que se passavam as marchas por ela, mas a troca só se consumava apertando a embreagem. Para arrancar era normal, apertar o pedal de embreagem, usar a alavanquinha para pôr em primeira , e soltar a embreagem.
Fizeram de tudo para que o dono do Cord, o Oswaldo,reduzisse bem o preço, mandaram lá embaixo, mas não teve conversa, mesmo havendo uma empatia imediata entre os três. Teve até um momento de descontração quando passou uma boazuda na calçada onde estavam negociando e o Oswaldo disse, “Depois a gente passa a mão e vão nos chamar de tarados!”. Mas, nada feito, o mano e o primo voltaram para casa desolados. Mas ri muito com o que o Oswaldo disse.
Um bom amigo meu, o Luiz Carlos Barbará, tinha na família um Mk VII também, fiz muita lenha com esse carro assim que tirei carteira em novembro de 1960, e ele vivia dizendo “vamos preparar o Jaguar para a Mil Milhas”. Mas nunca levamos a ideia adiante (nem sei se a família deixaria). Mas o sonho estava lá, firme.
Uma prova especial, única
A aura da Mil Milhas era mesmo especial. Além dos troféus normais, havia um enorme, de 1, 80 m, a Taça Bardahl, que era de posse da empresa, uma das principais patrocinadoras da prova. Era cópia da que há em Indianápolis, na qual havia gravada, como na original, a frase “Glória Imortal ao Vencedor da Mil Milhas Brasileiras”, e o nome dos vencedores que iam sendo acrescidos.
Tinha também a Miss Mil Milhas, glamour absoluto. E não poderia faltar o Hino da Mil Milhas Brasileira, entoado no autódromo todo em grande parte dos momentos que antecediam a largada — à meia-noite!
O Wilsão Fittipaldi e o Eloy Gogliano entendiam de promoção!
Sonho mesmo!
BS