Uma das características que distinguem os Fuscas e as Kombis é a sua capacidade de enfrentar estradas com lama. Neste sentido eu recebi um causo de meu amigo João Cássio Bellini(*) sobre uma Kombi que seu avô comprou para ir para a fazenda; era branca, básica (modelo Standard) diferente da anterior que o avô dele possuía, que era “saia e blusa” branco e vinho.
A Kombi da fazenda
Por João Cássio Bellini
Essa história é sempre contada por meus pais. O acesso à fazenda de meu avô se dava por meio de uma estrada de terra que ligava a estrada municipal à sede da fazenda. Um trajeto de cerca de dois quilômetros que cruzava dois cursos de água próximos que, quando chovia, não raro se fundiam numa grande área inundada. Neste acesso havia uma grande reta em declive de aproximadamente 1,3 quilômetro que saía da cota 638 e chegava na cota 690.
Uma longa descida de 52 metros em tão pouca distância representa uma declividade de 4%! Parece pouco, mas de terra e com chuva não é.
O trecho em dias secos não representava qualquer incômodo, todavia com a menor chuva já ocorria a formação de lama e poças de água. Chegar à fazenda, como era “morro abaixo”, era fácil, entretanto sair da propriedade complicava.
Era necessário vencer longa e, agora, desafiadora subida que ficava escorregadia. Os carros patinavam e em caso de maior esforço, as rodas abriam buracos na estrada e o veículo afundava na lama.
Até início da década de 1970 havia na fazenda um Jeep CJ6 “Bernardão”, de 4 portas; todavia, a confiabilidade do velho Willys já não era das maiores e seu desempenho, em condições adversas, medíocre. Além disso, como todo veículo de eixo rígido, caso ele afundasse e encostasse a “bola” (carcaça) do diferencial na lama, aí é que não saía mesmo.
Por volta de 1970, meu avô, que sempre teve Kombi (a família era grande, cinco filhos), resolveu comprar uma outra Kombi para uso particular, só que desta vez, dotada de diferencial travante, como era chamado pelo Volkswagen o diferencial bloqueante. É a mesma coisa, apenas os nomes são diferentes.
O jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro — ano 1968 edição 22938-01 — publicou uma nota de lançamento da “camioneta” com diferencial travante, com foto da alavanca para acionar a luva de travamento das planetárias na caixa de satélites do diferencial e outra do painel, além de um texto explicativo, reproduzido abaixo:
Foi o veículo que fez a diferença! A Kombi simplesmente não atolava naquele trecho. Subia os 1.300 metros dos córregos até à estrada municipal vagarosamente e se uma das rodas traseiras patinasse, impedindo a Kombi de andar — por construção e princípio de funcionamento o diferencial envia torque para a roda que tem menos atrito — bastava puxar a alavanca abaixo do banco do motorista e a perua se tornava um “tratorzinho”, subindo devagar mas com firmeza e convicção um trecho que mesmo o “Bernardão”, com tração nas quatro rodas, costumava fazer feio.
Meu pai, um ótimo motorista em condições adversas, simplesmente adorava a Kombi “traçada” (em verdade, um apelido incorreto e impreciso por a Kombi não ter tração 4×4). Segundo ele, a Kombi sempre foi um ótimo veículo para trafegar no barro, mas precisava ter um pouco mais de peso na traseira.
Essa Kombi era fora de série! Ao menor sinal de perda de tração bastava puxar a alavanca, esperar as duas luzes acenderem, engatar a primeira e seguir sem qualquer problema, independente de ela estar vazia ou carregada.
Infelizmente depois de alguns anos, meu avô passou a perua para a fazenda e depois de muitos problemas de diferencial (culpa do mau uso dos motoristas não instruídos para operarem o conjunto), a Kombi foi vendida.
Mudança simultânea
A introdução do opcional diferencial travante para a Kombi, em 1976, foi simultânea à mudança da suspensão traseira, que passou da arcaica semieixo oscilante para a mais eficaz tipo braço arrastado, com ganho apreciável de estabilidade do utilitário. Isso tanto por não haver mais a funesta variação de câmber em função do curso da suspensão, quanto por centro de rolagem (roll center) abaixar consideravelmente. Esse modelo foi o primeiro “T-1,5” brasileiro.
O movimento do câmbio para as rodas era feito por semiárvores dotadas de juntas universais em cada extremidade. As semiárvores encontravam as caixas de redução no cubo das rodas que eram uma herança das primeiras Kombis e cuja função era aumentar o torque nas rodas — lembrando que as primeiras Kombis tinham motor de apenas 1.131 cm³, 25 cv e 5,5 m·kgf.
Na suspensão anterior também havia semiárvores, mas elas não eram visíveis por ficarem no interior do tubos que eram os próprios semieixos. Esses tubos tinham articulação junto às tampas do diferencial apenas e as semiárvores encaixavam-se diretamente nas caixas redutoras.
Curiosidade: devido à caixa de redução, para a roda girar para frente a semiárvore tinha que obrigatoriamente girar ao contrário. Esse o motivo de a coroa do diferencial precisar ser montada no câmbio no lado diverso do Fusca (e do Karmann Ghia). Em relação ao sentido de marcha da Kombi, a coroa precisava ser montada pelo lado direito do transeixo.
Era devido às caixas de redução que a reação ao torque, ao arrancar era fazer o veículo elevar a traseira em vez de abaixá-la, como no Fusca.
Mas juntas universais são propensas a folgas e depois quebras, o que era frequente nas Kombis. O problema só acabou quando nos modelos de 1978 em diante passaram a ser utilizadas juntas homocinéticas, simultaneamente com a eliminação das caixas de redução (o diferencial foi encurtado para compensar a perda da redução nas rodas). Outro ganho com o fim das caixas de redução foi a substancial e benéfica redução do peso não suspenso, um grande inimigo do bom comportamento em qualquer veículo.
Um fato que eu soube recentemente, por intermédio de um ex-funcionário da fazenda, é que a Kombi do meu avô era realmente boa de lama, mas tão boa que o pessoal pensava que podia fazer de tudo com ela. Como eu disse, depois de algum tempo o meu avô deixou a Kombi “traçada” para uso na fazenda.
Durante chuvas fortes os dois pequenos cursos de água que cruzavam a estrada se enchiam, podendo ficar “emendados” um com o outro. Num desses dias o motorista que vinha trazendo óleo diesel da cidade em tambores de 200 litros resolveu “enfrentar” a água e acabou com a perua sendo arrastada pela água em direção ao mato. E assim ficou a perua, largada por uns três dias enquanto não deu uma boa estiagem para poder arrastar a Kombi de volta à estrada. Este fato ilustra a razão da Kombi acabar sofrendo tantos problemas técnicos que acabou tendo que ser vendida.
JCB
(*) O João Cássio Bellini, 39 anos, é paulistano. Iniciou sua vida profissional gerenciando a propriedade agrícola da família, dedicada à cafeicultura. Atualmente é industrial e reside em Marília (SP), distante 446,1 km via BR-374 da capital.
AG
Registro aqui o meu agradecimento à João Cássio Bellini pela participação nesta coluna.
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