Lembro-me como se fosse hoje. No, início de 1976, eu era sócio de concessionária VW no Rio de Janeiro, a marca estava num bom momento com toda sua linha, em especial Passat, Brasília e Fusca, e me intrigavam as notícias e anúncios preliminares do Fiat 147, que iniciava produção na nova fábrica em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte.
Por isso, meses mais tarde, quando Fernando Mariano, editor do caderno de veículos do jornal O Globo, me convidou para ir com ele ao lançamento do 147, em setembro, achei oportuno, pois seria uma ocasião ímpar para conhecer o carro que prometia forte concorrência para a marca que nós representávamos.
Depois das apresentações técnicas e mercadológicas chegou o momento mais esperado por toda a imprensa presente, dirigir o novo carro saindo da Pampulha e indo até Ouro Preto, praticamente 100 quilômetros por rodovia de asfalto em bom estado.
Imediatamente vi um elenco de qualidades no 147, como conforto de rodagem, bom desempenho do motor de 1.049 cm³, e espaço interno. Ainda no trajeto de teste fiquei curioso de ver como seria a capacidade de arrancar em subidas em estrada de terra pelo fato de ser um tração-dianteira de motor transversal, portanto mais recuado do que no Passat e seu motor longitudinal lançado dois anos antes e que era muito bom nessa condição.
Na rodovia, já mais perto de Ouro Preto, vi uma estrada de terra e com subida, e não pensei duas vezes, deixei o asfalto. A curiosidade foi prontamente satisfeita, era tão bom quanto o Passat. Eu soube depois que o pessoal da Fiat ficou em polvorosa quando deu por falta de um carro na chegada em Ouro Preto, mas não demorei a chegar e expliquei ,ficando tudo bem.
Dois anos depois dessa experiência eu deixava a concessionária (fora vendida após um desagradável desentendimento de sócios) e ingressava… na Fiat, trabalhando na Diretoria Comercial, que ficava em São Bernardo do Campo na mesma avenida da fábrica da Scania. Minha função era representante de serviço no departamento de controle operacional da rede de concessionária e postos assistenciais Fiat. Foi quando, efetivamente, conheci o produto ao me ser atribuído um 147 L de serviço, e foi quando também que minha admiração pelo 147 cresceu.
Um carro singular
A engenharia do 147 era notável. Chamava a atenção a localização do estepe no compartimento do motor, nota 10 em uso racional do espaço, solução adotada já no 127. Normalmente estepes ficam no porta-malas, roubando espaço de bagagem, enquanto o cofre do motor não tem outra finalidade. Além disso, um peso que seria inútil na parte traseira, ao ficar na dianteira ajuda na tração das rodas motrizes dianteiras.
Mas o melhor da versão brasileira estava sob o capô. Em vez do 4-cilindros de 903 cm³, comando no bloco, três mancais e 45 cv do 127, havia um motor inteiramente novo, assinado por Aurelio Lampredi, o engenheiro que aumentou os pequenos V-12 Ferrari projetados por Gioacchino Colombo.
Esse motor era de 1.048,8 cm³ (76 x 57,8 mm), com taxa de compressão de 7,2:1,trazia comando de válvulas no cabeçote acionado por correia dentada, que atuava diretamente as válvulas por tuchos tipo copo com pastilhas para ajuste da folga de válvulas, com o virabrequim apoiado em cinco mancais. Entregava 50 cv a 5.600 rpm e 7,8 m·kgf a 3.800 rpm,. suficientes para movimentar com facilidade os 810 kg de peso em ordem de marcha — seus rivais, de mesmo peso, eram o VW 1300 de 38 cv e 1500, de 44 cv. O Chevette, de 1973, com motor 1,4-L de 59,7 cv, era maior e mais pesado, 837 kg. A sonoridade do escapamento do 147 era peculiar, algo ardida — “nervosinho”, como minha mulher a definia.
O câmbio de quatro marchas, alvo de tanta controvérsia, era comandado por uma alavanca de haste grossa com uma verdadeira esfera como manopla, fácil e agradável de manusear. O movimento de segunda para terceira “reto em frente” era notável, era desnecessário escolher o canal 3ª-4ª.
Reclamações do câmbio
Eu logo tive conhecimento de reclamações de que o câmbio era duro de engatar a primeira e de arranhar a ré. Como no meu 147 de uso a ré não arranhava, foi fácil deduzir que a causa só podia ser curso insuficiente do pedal. Como por questão de gosto pessoal não uso sobretapetes, o pouco curso do pedal era acentuado por eles. Recomendei que na produção a folga de embreagem fosse a menor tecnicamente possível e houve sensível melhora.
A primeira era de fato maus dura de engatar do que em outro carros, mesmo com a embreagem totalmente desacoplada. O motivo era o sincronizador de primeira e segunda utilizado, o tipo Porsche, patente da marca alemã, eficaz e durável mas com essa característica. Só foi resolvido quando em 1981 o sincronizador passou para o mais comum tipo BorgWarner, desde o começo o de terceira e quarta.
Entretanto, para atenuar o duro engate da primeira,a Fiat tentou demultiplicar o comando de câmbio com um intrincado sistema de varetas que em nada ajustou, tornando a seleção mais difícil, apesar de ter desaparecido a dureza de engate da primeira. Mas o resultado da melhora foi o novo sincronizador, não o comando de câmbio modificado. Já contei essa passagem aqui.
O câmbio era de quatro marchas todas sincronizadas, mas,curiosamente, muitos juravam que a primeira não era sincronizada, apesar de a fábrica dizer que era; ao ser passada com o carro em movimento, arranhava — só parecia, o ruído era como se não fosse sincronizada. A causa era construtiva: quando a luva sincrônica de 1ª-2ª se deslocava em direção à primeira, sua coroa dentada que fazia parte do arranjo de ré encostava — sem engrenar, claro — na engrenagem intermediária respectiva, produzindo o ruído.
Por acaso eu conhecia esse efeito no Fiat 850 cupê, de motor traseiro, de um amigo no Rio, o do “nhéc” ao engatar primeira com o carro andando.
Os pedais eram perfeitos, à italiana, permitia o punta-tacco “telepático”. Em contrapartida, muitos detestavam a posição de dirigir pelo volante alto e inclinado, tanto chegavam a colocar um calço entre o suporte da coluna de direção e a estrutura do painel para baixar o volante.Mas quem, como eu, entendia ser preciso dirigir “sobre o volante”, mais próximo dele, admirava a ergonomia do 147 nesse aspecto. Porém não havia um lugar adequado para o pé esquerdo, o que levava motoristas de 147 a manterem o joelho dobrado com o pé esquerdo “plantado” no assoalho (que até hoje me vejo adotando sem querer, logo corrigindo).
Bom de curva
Suspensão independente nas quatro rodas quando o 147 foi lançado só era conhecida no Fusca. Era assim também no Dauphine/Gordini/1093, mas estes não eram mais produzidos desde 1968. Todos os demais carros tinham eixo rígido atrás, só o Passat tinha eixo de torção. Por isso foi espantoso o 147 ser dotado de moderna suspensão independente nas quatro rodas, como vimos, acima.
Estreava novo modelo de pneu da Pirelii, o CN15 de medida 145SR13 (hoje seria um 145/80R13S) com rodas de aço 4Jx13.. A direção era rápida, relação 17,6:1 sem assistência, que combinada com distância entre eixos de 2.225 mm (3.710 mm de comprimento), o deixava dono de grande agilidade, ao mesmo tempo dando-lhe comportamento em curva exemplar. Excetuando o Passat, nada lhe era comparável nesse aspecto. O diâmetro mínimo de curva era de apenas 9,5 metros.
Freios eram disco-tambor com assistência a vácuo, mas o circuito hidráulico era duplo dianteiro-traseiro, só o Passat inovara com o duplo circuito em diagonal. Havia no freio traseiro limitador de pressão indexado à carga a bordo e as rodas E o freio traseiro era autoajustável, primazia nacional na categoria.
Foi a segunda carroceria hatchback da produção nacional, com suas conhecidas vantagens — tecnicamente a primeira foi o Brasília, embora seu porta-malas traseiro fosse raso e pouco prático devido ao motor boxer de turbina de arrefecimento alta. O porta-malas do 147 acomodava 360 litros (possivelmente de 280 a 300 litros pelo padrão VDA) e com o encosto do banco traseiro rebatido tinha–se 1.000 litros. A carga útil era de 405 kg.
Acelerava de 0 a 100 km/h em 18 segundos e chegava a 135 km/h, pelos dados de fábrica, números excelentes para a época. Seu consumo médio era de 13 km/l, que com o tanque de 45 litros lhe dava boa autonomia (no começa dos anos ’80 passou para 56 litros em razão dos postos fechados nos fins de semana).
O 147 era um carro notável, um expoente no seu tempo, embora demorasse um pouco para ser apreciado pelo consumidor brasileiro. Foram produzidas 709.230 unidades até deixar de ser produzido em 1987, convivendo três anos com seu sucessor Uno, que herdou todas as suas boas características envoltas num desenho miais moderno.
BS
(Atualizada em 29/02/20 às 16h40, correção de informação: o primeiro hatchback nacional foi o VW Brasília, conforme apontado pelo leitor Alexandre Zanariolli)
(Atualizada em 29/02/20 às 21h10, correção da informação da localização do estepe no Fiat 127, conforme informação do mesmo leitor acima)