Era uma vez…
Muitas histórias começam assim, e esta também. Estamos na Suécia há muitos anos atrás, mais especificamente em sua capital Estocolmo, que é, na verdade, um lindo arquipélago que tem cerca de 30.000 ilhas das mais diversas formas e tamanhos, lugar onde barcos não são só para o lazer, mas para o transporte também.
Era uma vez… um lindo barco a motor Chris-Craft de 26 pés (7,92 m) de comprimento fabricado em 1933 pela Chris Smith & Sons, originalmente acionado por um motor Kermath Sea-Wolf de seis cilindros que fazia o barco alcançar a velocidade de 42 nós (77,6 km/h — uma bela velocidade para um barco).
O seu primeiro proprietário foi um ministro inglês que ficou com ele por três anos. Aí começou a troca de donos até que chegou a vez do Stig Berggren que será um dos protagonistas desta história, já, já…
Era uma vez… uma linda e reluzente Kombi tipo Samba Bus zero-quilômetro, saia e blusa, estamos no ano de 1954. Fato é que esta Kombi Barndoor Deluxe sempre esteve registrada, como sempre rodando, ou seja, na ativa, na província de Östergötland, passando por vários proprietários que residiam em cidades como Motala e Linkoping, a apenas 30 milhas (48 km) de distância. Finalmente, a Kombi acabou com Stig Berggren em Norrkoping (sim, aquele que tinha comprado o barco), que fica a apenas 40 milhas (uns 64 km) de Linkoping. Para se ter uma noção desta região eu acrescento a ilustração abaixo tirada do Google Maps. Podemos notar que a região por onde a Kombi andou fica um pouco distante da capital Estocolmo. E eu aproveitei para indicar a localidade de Regna neste contexto; isto tudo está ligado a esta história.
Era uma vez… o dono de um barco já velho e de uma Kombi usada que decidiu inovar. Desmontou o convés do barco, pegou a Kombi e a cortou a meia-altura e a adaptou sobre o casco do barco. Este barco com cobertura de Kombi foi usado durante alguns anos. A estranha composição acabou chamando a atenção de um jornal local que publicou a nota abaixo no dia 14 de janeiro de 1984 e a foto que chamou tanta atenção foi tirada próximo ao lago no vilarejo de Regna — que também aparece em destaque na foto do mapa acima.
Pois bem, com isto esta Kombi passou a ser conhecida como “Regna ’54 Deluxe Bus” no meio daqueles que fazem parte de grupos que resgatam Kombis antigas tipo “Barndoor” (porta de celeiro).
Num dado momento o que restou do “Regna ‘54 Bus” foi desmontado do barco e largado na grama ali perto, como se pode ver na dramática foto abaixo, foto que foi descoberta indiretamente pelo pessoal que estava interessado em resgatar e restaurar o barco.
Pois é, o que contei até agora numa sequência histórica é o resultado de muita pesquisa feita pelo jovem engenheiro civil Ben Laughton; falarei sobre ele adiante. Ele tem um dos hobbies mais extremos no antigomobilismo que é o de resgatar e restaurar veículos antigos, com grande valor histórico, encontrados em condições que seriam de perda irreversível para a maioria das pessoas. E o foco dele são Kombis entre 1950 e 1955, se bem que outros modelos, como Fusca, também já andaram em seu sofisticado radar.
O grande milagre acontece quando algo de interesse potencial, que está oculto em uma floresta na Áustria, ou à beira de uma estrada sob uma vegetação que o escondeu na Suíça, ou, como neste caso, está jogado a beira de um lago na Suécia surge, é identificado e passa a ser observado. A informação inicial deflagra uma série de atividades que podem terminar em resgates inacreditáveis, pois este pessoal é simplesmente fantástico no que faz. Graças a este tipo de “missões impossíveis” vários exemplares renasceram de condições simplesmente deploráveis para “retornar à vida” fazendo o que parecia ser impossível; com isto aumentando o acervo mundial de veículos veteranos em condições de representar a história destes carros para muitas gerações futuras!
No caso do “Regna ’54 Bus” o seu projeto começou há um bom tempo em março de 2007, quando Rikki James mencionou esta descoberta em sua coluna na revista VolksWorld. A história dizia que um cavalheiro chamado Philip Von Mecklenburg havia descoberto os restos de uma Kombi Barndoor Deluxe ao lado de um lago na Suécia. Supostamente seu teto havia sido cortado há muitos anos para ser montado em um barco para uso no lago! A metade inferior havia sido jogada fora e o teto da Kombi era tudo que existia. Rikki incluiu uma foto dos restos desta Kombi, que ainda tinha seu painel da versão luxo original, maçanetas, ganchinhos para dependurar casacos e mecanismo do teto solar, e desde então o Ben conseguiu localizar as outras fotos que foram tiradas ao mesmo tempo.
Avançando um par de anos até 2009, o Ben conheceu Chris Stoneham, da Musclebus, que na época era o único importador e distribuidor para a Europa dos componentes de lataria de reposição para Kombis e Fuscas antigos fabricados pela empresa americana KF KlassicFab (que vêm sempre pintados na cor verde, o que os caracteriza).
Chris mora no local, na Suécia, e Ben acabou comprando um projeto de restauração de uma Kombi Standard ano 1951 — vamos falar rapidamente deste projeto adiante quando eu fizer a apresentação do Ben. Nesta visita o Ben também aproveitou para conhecer Chris e a sua coleção de Kombis. O Ben comentou: “Ele tinha um par de projetos que eu sempre tive interesse, então quando em 2011 ele me ofereceu um certo projeto que eu estava ansioso por ter, eu tive que dizer sim e rapidamente vender algumas coisas para levantar o dinheiro necessário para a compra”.
O que isso tem a ver com o projeto do “Regna ’54 Bus”? Bem, essa Barndoor Deluxe em particular era de propriedade de Chris naquele tempo, mas não se conhecia o seu número de chassi, ou seu número de carroceria ou qualquer outra forma de identificação (isto tudo ficou na parte de baixo da Kombi que tinha sido descartada pelo Stig Berggren), e assim o Chris o incluiu no negócio. Nesta altura o Ben comentou: “Eu pareço bastante satisfeito com a minha compra na foto antiga reproduzida abaixo, mas, na verdade, eu não tinha realmente um plano para esta Kombi”:
Tínhamos visto fotos de 2007 com o teto sobre a terra e ainda tomado pelo mato, abaixo outras vistas do teto já carregado sobre o reboque em 2011.
Ben pensou em implantar o teto em uma Kombi que tivesse o seu número de chassi, mas isso não parecia ser um plano que valesse a pena, financeiramente ou para a própria satisfação dele. Ele também havia trabalhado em um par de Kombis luxo sul-americanas e chegou a considerar usar esse teto para consertar suas estruturas retorcidas, mas novamente isto não iria cair bem para ele.
Os componentes do “Regna ’54 Bus” pertenciam à uma rara Kombi luxo com volante de direção no lado direito e, pensando bem, muito dela ainda existia. Com o passar dos anos, os projetos de restauração de Volkswagens Veteranos foram se tornando maiores e mais ousados. No que o Ben considerou o seguinte: “Alguns projetos incluíram tanto metal novo que quase nada do veículo original ainda existia. Eu imaginei que, se eu conseguisse achar o número do chassi desta Kombi, então eu poderia reconstruí-la com muito mais metal original do que muitos dos outros projetos existentes, incluindo alguns dos projetos de Samba Bus que conheço”.
Mas, para fazer uma restauração condizente era necessário achar um jeito de descobrir o número do chassi desta Kombi, e este parecia inicialmente ser um problema insolúvel.
Como primeiro passo o Ben localizou o Philip Von Mecklenburg na Suécia, ele tinha sido o primeiro a encontrar o teto lá em Regna às margens do lago. Mas ele não tinha maiores informações, esta tentativa não ajudou em nada.
Ai o Ben passou a estudar as alterações ocorridas naquele modelo de Kombi para ver se por este caminho seria possível afunilar a pesquisa. Era sabido que se tratava de uma Kombi fabricada entre 1953 e 1955, pois as vigias de teto eram de vidro e não de acrílico como nos modelos mais antigos. Mas o estudo das diversas modificações que ele levantou acabaram num beco sem saída, pois uma coisa era saber que modificações e ocorreram (ele descobriu várias delas, como a modificação das caixas de fusíveis do painel para uma caixa abaixo do painel), mas outra coisa era datar esta modificações e aí a coisa parou, pois não se tinha um cronograma das mesmas.
O próximo passo foi pesquisar estes detalhes nas Kombis luxo semelhantes que existem pelo mundo a fora, contatando vários proprietários em busca de informações; foi bacana ver o interesse de todos em ajudar. Depois de um tempo considerável ele conseguiu afunilar a possível data de fabricação para uma janela de três meses, o que deixava um espaço de uns 10.355 números de chassi para serem verificados.
Conforme o Ben disse então: “Sou muito grato ao amigo Tomas da Suécia. Ele tem acesso ao arquivo da Volkswagen no país e procurou essa janela de números de chassi aparecendo até 30 Kombis Deluxe com volante de direção no lado direito, embora por motivos óbvios eu não tivesse permissão para ver os números em si. Não havia nenhuma chance desta Kombi ter vindo de um país vizinho, assim nós estávamos chegando mais perto do que procurávamos”.
O Ben descartou três Kombis da lista imediatamente, pois ele as conhecia — eram Kombis “sobreviventes”. E assim, depois de meses de trabalho, ele ficou com 27 Kombis Barndoor Deluxe para determinar qual teria sido a sua, mas as informações pararam por aí. Ele nem tinha os números dos chassis. Não é exatamente gratificante chegar tão perto e ainda não ter um resultado. Mas, como costuma acontecer, a peça final do quebra-cabeça estava logo ali ao virar a esquina.
Ao longo do caminho, Ben estava compartilhando suas tentativas de encontrar o número de fabricação da Kombi com o Demian, um grande amigo dele que mora na Suécia. Ambos estavam inseguros sobre o sucesso daquela pesquisa, mas quando finalmente se chegou à janela com as 27 Kombis foi o Demian quem deu o próximo passo.
Demian decidiu ligar para a prefeitura da pequena cidade de Regna e perguntar se alguém se lembrava do velho barco com o teto de Kombi. E adivinha? Sim eles lembravam! O tal barco devia ter sido muito chamativo de tal maneira que alguém na prefeitura não só se lembrou do estranho barco, mas também se lembrou do velho dono: Sune Einarsson de Regna.
Demian rapidamente rastreou Sune que confirmou que o barco com o teto de Kombi tinha sido dele, e que quando ele o vendeu o novo proprietário não queria o teto de Kombi; que foi removido e deixado pelo lago em Regna, onde Philip Von Mecklenburg mais tarde o encontrou.
Foi aberta uma nova possibilidade de se obter os dados, mas Sune nunca possuiu a Kombi quando inteira, ele na verdade comprou o barco já com o teto de Kombi instalado de outro residente de Regna chamado Bo Carlsten.
A história deste estranho barco começava a ganhar um contorno mais claro. O próximo passo que o Demian deu foi localizar o Bo que confirmou que ele havia comprado o barco com o teto de Kombi como um projeto inacabado de um velho sujeito chamado Stig Berggren que vivia em uma aldeia chamada Aby perto de Norrkooping. Lembram do Stig? Já falamos dele aqui algumas vezes.
Quando o Demian finalmente conseguiu rastrear filho do Stig, na época com 67 anos, ele descobriu que Stig já havia falecido. O filho explicou, porém, que seu pai costumava construir todo tipo de projeto com sucata coletada ali por perto.
Foi muito excitante recuperar toda esta história, mas, de novo, não tínhamos dado nenhum passo adiante, pois somente confirmamos que o “Regna ’54 Bus” veio do quintal da casa do Stig, mas toda e qualquer documentação já tinha se perdido há muito tempo. Neste ponto o Demian teve mais um de seus “estalos”.
Demian havia explicado anteriormente que, enquanto a Suécia mantinha em seus arquivos os documentos de registro de todos os veículos que já haviam enfeitado uma estrada sueca, eles eram de pouca utilidade para mim, a menos que eu tivesse um número de registro para pesquisar, o que infelizmente não tinha.
Ele já havia feito algumas pesquisas on-line nos arquivos da Região Norte da Suécia, onde os dados já tinham sido digitalizados, e, com isto, eles conseguiram descartar outra Kombi Barndoor Deluxe da janela de pesquisa de números de chassi, porque a mesma tinha sido sucateada no norte do país. Mas, no geral, esses arquivos não eram de muita ajuda.
Agora, as coisas estavam um pouco diferentes. Agora eles sabiam onde a Kombi foi originalmente sucateada, então, também sabiam em que província a Kombi estava registrado por último. Isso significa que eles também sabiam em que arquivo teriam que procurar para encontrar os documentos de registro.
O sistema de registros públicos na Suécia é uma mistura dos Arquivos Nacionais, Arquivos Provinciais, Arquivos do Condado e Arquivos Municipais. Existem atualmente 25 províncias, e 21 municípios administrativos, o que significa que os 26 números de chassi remanescentes da janela de pesquisa estariam distribuídos por 21 conjuntos de arquivos.
No que o Bem concluiu: “Agora, sabíamos onde procurar o nosso número de chassi, mesmo que a distribuição em todo o país fosse desigual, e saber onde ele foi descartado significava que poderíamos fazer referência cruzada a qualquer documento que encontrássemos.”
Tudo isto é bastante confuso, e, para complicar as coisas, apareceu um massivo obstáculo adicional. A Kombi foi encontrada na metade sul da Suécia, onde os registros ainda não foram digitalizados. A única maneira de se conseguir encontrar o documento que se buscava, apesar de já se saber onde ele poderia estar guardado, seria vasculhar fisicamente caixas aleatórias de documentos de registro que cobrem todas as marcas e modelos de carros que já pertenceram àquela área da Suécia, todos listados em ordem por suas inscrições, as quais, obviamente, não eram conhecidas. Demian analisou isso e com o número de registros armazenados no arquivo local de Vadstena, que estava aberto apenas de 10h00 às 16h00 nos dias úteis, poderia levar várias semanas para completar a pesquisa.
Os arquivos em Vadstena estão alojados no deslumbrante Castelo Vadstena do século XVI, que certamente tornou a experiência mais agradável.
O cronograma dos quatro amigos que se reuniram para fazer a pesquisa no arquivo em abril de 2015, o próprio Ben, o Damian, o Dai e o Gustaf, estava apertado, mas o trabalho foi engrenando e o Dai acabou por encontrar uma Kombi que era uma excelente candidata para ser o “Regna ’54 Bus”, mas ainda faltava concluir a pesquisa em algumas outras caixas de documentos. A que foi encontrada pelo Dai era o modelo certo, a janela do número do chassi certa, pertencente à área certa, descartada no lugar certo.
Em abril de 2016 foi dada continuidade ao trabalho de finalizar a pesquisa com a busca cruzada das caixas de documentos que ainda não haviam sido verificadas. Desta vez o Gustaf não pôde participar.
O Ben, com alívio e alegria, disse: “Sabendo o que sabíamos de antes sobre como os arquivos funcionavam ajudou a acelerar os trabalhos e nós voamos através das caixas naquele momento. É muito estranho, nós nos esforçarmos tanto para não encontrar algo, mas foi exatamente isso que aconteceu e ficamos aliviados que nenhum outro candidato apareceu e pudemos ter certeza de que eu definitivamente tinha os documentos de registro para a Kombi correta! Eu era um homem muito feliz e agora os trabalhos de recuperação poderiam começar de uma maneira bem fundamentada!”
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Aqui termina a primeira parte desta “eletrizante” matéria, na qual descobrimos a história desta Kombi e determinamos o seu número de chassi, abrindo a possibilidade de fazer uma reconstrução usando o máximo de materiais contemporâneos que for possível encontrar. Mas sim! Esta Kombi irá voltar a rodar por conta própria e na Parte 2 veremos como foi que este milagre ocorreu.
Também na Parte 2 vamos conhecer o Ben um pouco melhor e ver mais alguns de seus inacreditáveis projetos que foram levados a cabo.
Navegador interno: Parte 2
AG
Esta foi mais uma das matérias iniciadas por imagens que vi na Internet e depois fui a fundo pesquisando suas origens e conseguindo contatar o responsável por este resgate inacreditável. Como vamos ver, apesar do inusitado deste resgate, há muitos outros em condições igualmente muito difíceis de reconstrução. Outro aspecto que fica patente é o valor dado a estas Kombis veteranas fora de nosso país, coisa que no Brasil não ocorre, nossas Kombis mais antigas e que ainda não foram sucateadas estão sendo exportadas para países que sabem o valor que elas têm.
Agradeço ao Ben Laughton pelo apoio que deu para esta matéria; para a qual fiz pesquisas em sites como, The Samba, Wikipedia, Google Maps, etc. Também parabenizo o Ben por estes trabalho inusitado e bem sucedido que tem resgatado vários veículos Volkswagen veteranos de uma maneira absolutamente incrível.
O Bem liberou para mim o material que ele havia postado no site The Samba, além de responder perguntas específicas que fiz por e-mail.
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