Os aficionados pela Porsche estão ligados nas recentes notícias do primeiro Porsche estar indo a leilão pela RM Sotheby’s na semana do automóvel antigo de Monterey, na Califórnia, em agosto próximo, junto com o grupo de eventos de antigos que inclui o grande encontro de Pebble Beach.
O carro em questão é o chassi 38/41 fabricado em 1939, logo antes da Segunda Guerra Mundial. Mas o que há de tão especial neste carro? É um Porsche antigo muito raro, mas a sua mera existência representa algo muito maior, algo que perdura até hoje.
Nos anos 30, Ferdinand Porsche era um dos mais requisitados projetistas de automóveis do mundo. Seu contato com o governo alemão era sólido e permitiu que ele tivesse condições financeiras e suporte para criar carros de competição extremamente sofisticados e rápidos. Vale lembrar que na época, o automóvel ainda era uma invenção recente, e também era uma forma de demonstração de capacidade técnica local.
Alguns dos frutos deste suporte do governo foram os lendários Auto Union, projetados por Porsche para disputar as corridas de Grande Prêmio contra os carros da Alfa Romeo, Maserati e Bugatti, os mais fortes competidores da época. Com estes carros, além dos Mercedes-Benz “flechas de prata”, a Alemanha conseguiu se destacar no automobilismo europeu.
O automobilismo era a paixão de Porsche, mas o que ele foi incumbido de criar foi um carro popular para a grande massa alemã. Era o nascimento do nosso querido Fusca, que você pode ler aqui muitos outros textos do nosso especialista no assunto, o Alexander Gromow. A Alemanha precisava de um carro barato e de fácil construção, possível de ser construído com agilidade. Porsche criou o que foi chamado de KdF-wagen.
O nome veio de um dos departamentos do sindicatos do trabalhadores da Alemanha, Kraft durch Freude (Força através da Alegria na tradução), que teve grande responsabilidade no financiamento do projeto do carro popular. Era a base para o Fusca que conhecemos hoje. Na época, ele era nomeado internamente como Tipo 60, um passo seguinte do Tipo 12 de 1931, a primeira visão de Porsche do que deveria ser um carro simples e popular.
O desenvolvimento do novo carro estava praticamente concluído e os planos de fabricação do KdF-wagen caminhavam bem em 1939. Não só o novo carro do povo de Hitler estava para nascer naquele ano, mas também um sofisticado sistema de autoestradas interligando diversas regiões do país. Eram as autobahnen que surgiam, outro grande investimento do governo.
No cenário político, a paz na Europa estava indo de mal a pior por conta dos conflitos armados em diversos países. Invasões e crises locais estavam crescendo de forma que os governos já não se entendiam bem. A Alemanha estava apoiando um grupo ideológico, ao qual a Itália já fazia parte, e a relação entre os dois líderes destes países crescia a cada dia. Foi uma questão de tempo até que Benito Mussolini declarou apoio a Hitler perante a guerra civil espanhola, na qual ambos apoiavam os nacionalistas liderados pelo general Francisco Franco.
No fim dos anos 30, os dois líderes já haviam firmado diversos pactos de cooperação política e militar. Uma forma de juntar diversos acontecimentos em uma única “comemoração” foi a ideia de fazer uma prova de automobilismo. Esta ideia veio de ninguém menos que Ferdinand Porsche, que convenceu Adolf Hühnlein, o responsável do governo por eventos automobilísticos, a criar uma corrida para ajudar na divulgação do KdF-wagen que logo entraria em produção.
A corrida seria um evento em estradas abertas (saudando as novas autobahnen) que ia da Alemanha à Itália (celebrando o pacto de Hitler e Mussolini), com foco no lançamento do carro do povo de Hitler projetado por Porsche. Esta era a base para a corrida que seria conhecida como os 1.500 km de Berlim a Roma. A prova teria até a data marcada para acontecer, em setembro de 1939, para coincidir com o início da produção do KdF. Inicialmente ocorreria em 1938, mas já fora postergada para 1939.
Para apimentar ainda mais esta corrida e mostrar ao resto da Europa que a engenharia alemã era superior, a empresa que viria a se tornar a Volkswagen encomendou a Porsche três unidades especiais do KdF-wagen. Ele teria liberdade para colocar em prática todo seu conhecimento dos carros de competição nesta versão especial do KdF.
Utilizando a base do carro de produção, Porsche projetou uma nova carroceria, mais aerodinâmica, para aproveitar bem os novos trechos de boas estradas do percurso definido para a corrida, com o objetivo de chegar a 170 km/h. Estes carros especiais ficaram conhecidos no meio da Volkswagen como o tipo 60K10, mas Porsche se referia a ele como o Tipo 64.
A base do chassi do KdF-wagen foi mantida, bem como o conceito do motor traseiro de quatro cilindros contrapostos. Para reduzir peso do carro, Porsche refez todo o assoalho do carro em alumínio, assim como toda a nova carroceria, desenhada por Erwin Komenda, o mesmo que desenhou os primeiros Fuscas e posteriormente o Porsche 356 e o 550 Spyder. A fabricação das peças ficou a cargo da Karosseriewerk Reutter, empresa de carrocerias de Stuttgart que já havia fabricado os primeiros Tipo 12 e outros derivados do projeto de Porsche para o Fusca.
Melhorar a aerodinâmica do carro era mandatório. Todos os recursos possíveis foram usados, como cobrir totalmente as quatro rodas para evitar interferências no fluxo de ar ao redor do carro. O habitáculo era bem estreito, quase que impraticável de se ter duas pessoas dentro do carro simultaneamente. O carro também seria mais longo que o KdF-wagen para ser estável em alta velocidade.
Como a corrida de Berlim a Roma seria uma longa jornada, dois estepes foram colocados no carro, montados debaixo do capô dianteiro. O tanque de combustível, também dianteiro, foi reposicionado e invadiu o espaço do passageiro, que teve o banco deslocado para trás, não ficando alinhado com o do motorista devido à escassa largura.
Ferdinand Porsche sabia das capacidades de seu projeto do KdF, e manteve a mesma suspensão nos carros de corrida, apenas aumentando a constante das barras de torção e a carga dos amortecedores . Também não poderia desviar muito do projeto original, pois os carros seriam apresentados como KdF ao público e nas propagandas.
O motor boxer de quatro cilindros e 1-litro foi modificado com válvulas maiores, maior taxa de compressão e carburação dupla. Agora o motor gerava perto de 34 cv, quase 70% a mais que o original. Diversos componentes foram feitos em alumínio para redução de peso, como a grande carcaça da turbina de arrefecimento. Como o carro era mais leve, o motor mais potente, e a carroceria mais aerodinâmica, o diferencial teve sua relação final alongada para alcançar maiores velocidades.
O plano era construir três carros. O primeiro, o chassi de número 38/41, ficou pronto em agosto de 1939. Um pouco em cima da hora para uma corrida no mês seguinte, mas de qualquer jeito nem testes o carro teve que fazer, pois semanas depois da sua finalização, a guerra foi declarada oficialmente entre os países aliados, França e Inglaterra, e os países do Eixo. Todos os eventos de automobilismo foram cancelados imediatamente, bem como a corrida Berlim-Roma.
Porsche conseguiu ainda que os outros dois carros fossem terminados, o segundo em dezembro e o terceiro em junho de 1940. O segundo carro recebeu a numeração 38/42 e o terceiro foi o 38/43. Havia algumas pequenas diferenças entre os carros completos, como posição das lanternas traseiras, acabamento das molduras de vidro, a pequena grade dianteira, o para-brisa em si e até os faróis. De qualquer maneira, a forma da carroceria era a mesma.
Sem mais utilidade real para os três carros, o primeiro carro foi entregue a Bodo Lafferentz, um dos chefes da Companhia para o Desenvolvimento do Carro do Polo Alemão Ltda (‘carro do povo’ nesta caso era ‘Volkswagen’, uma expressão apenas, ainda não existia como marca), criada em 1937, além de ser do alto escalão da Schutzstaffel, mais conhecida como SS, que era o grupo de militares de confiança de Hitler. Com pouco tempo de uso nas mãos de Lafferentz, o 38/41 foi batido por ele e voltou para Porsche na intenção de ser reparado.
Tanto o segundo e como o terceiro carro permaneceram com Porsche. O 38/42 foi mantido como um carro de testes da Porsche para estudos de aerodinâmica e outros possíveis desenvolvimentos que poderiam ser aproveitados, já que o carro era diferenciado e seu potencial era muito maior que do KdF original. O terceiro carro foi usado por Ferdinand Porsche como veículo pessoal. Nada mau para um carro de uso de diário.
Não se sabe exatamente quando nem por que o carro 38/41 recebeu a carroceria do 38/43 de Porsche. É possível que não houvesse mão de obra suficiente ou material para reparar os danos do 41 causados por Lafferentz, uma vez que a guerra estava em andamento e praticamente toda a Europa parou para focar na produção de itens militares. Encontramos referências do carro 41 recebendo a carroceria do carro 43, e também do carro 43 recebendo o chassi do carro 41. Na prática é a mesma coisa, mas alguns se referem ao carro atual como o 41 e outros como o 43.
Como o local na Alemanha onde Porsche havia instalado sua firma de projetos era uma zona de risco de bombardeios aliados, Porsche deslocou tudo o que foi possível para a Áustria, na cidade de Gmünd. Na mudança também foram levados o 38/41 recuperado e o 38/42 de testes. Por um tempo, foram mantidos nas instalações da Porsche, mas depois Ferdinand levou os dois carros para uma de suas casas no vilarejo de Zell-am-See.
Durante o restante do período da guerra, os carros permaneceram salvos na residência da família. Ao fim dos conflitos, o exército americano tomou a Áustria e de passagem pela região, confiscaram o carro 42, deixando o 41 com Porsche. O 42 foi usado até se acabar pelas tropas americanas, tendo até seu teto cortado fora. Quando o carro não tinha mais nenhuma condição de andar, foi abandonado.
O carro 43 foi perdido durante a guerra, provavelmente destruído em algum ataque contra a região industrial da Alemanha onde ficava a firma de projetos de Ferdinand Porsche. No mesmo caso da discussão de quem recebeu o que, vamos dizer que o chassi do carro 43 é quem sumiu, uma vez que sua carroceria original estava no chassi 41.
Após a guerra, a produção dos carros civis estava se restabelecendo na Europa, e Porsche pode voltar a pensar em seus automóveis para o público. O tipo 64 não seria viável para uso comum, então já com o projeto de um novo carro em mente, Ferdinand manteve o 38/41 em seu uso pessoal e partiu para o projeto do que viria a se tornar o Porsche 356, em planos desde 1947.
O 41 foi usado por Porsche até 1948, onde já desgastado, foi enviado para a Itália para ser recuperado por Battista Farina, que seria mundialmente conhecido como Pinin Farina, especialistas em carrocerias de alumínio, como era o caso destes Porsches especiais de corrida. O carro depois foi comprado por um piloto austríaco chamado Otto Mathé, que levou o carro e um monte de outras peças sobressalentes, e alguns restos do carro 42. Ele fez o registro do carro na região de Tyrol, sua terra natal, e por conta disto o carro recebeu a placa T2222.
Por anos Otto correu com o 38/41 em diversos eventos pela Europa, especialmente na Áustria. É muito provável que ele tenha sido o primeiro a colocar um carro com o nome Porsche na pista de corrida em 1949. Pouco antes de vender o carro para Otto, Ferdinand havia colocado seu nome gravado no bico do carro, do mesmo jeito que muitos outros vieram na sua sucessão. O nome escrito com a tradicional grafia P O R S C H E em letras largas estava lá. À vista de todos era um verdadeiro Porsche, não um Volkswagen.
O carro passou para o próximo proprietário somente em 1995, quando Otto faleceu. Thomas Gruber, um grande colecionador de Porsches, comprou boa parte da coleção de Otto. Depois disto, o 38/41 trocou de mãos mais algumas vezes, até chegar ao leilão que vai ocorrer em agosto.
Lembra quando Otto comprou o carro e um lote enorme de peças? Pois bem, a partir deste lote, o grupo que estava responsável em cuidar de parte da coleção de Otto (Prototyp Museum Hamburg, na Alemanha) e tinha outros carros dele em mãos, descobriram que muitas peças de seu estoque continham a gravação 38/42. Era um indício de que no meio das peças havia os restos do segundo carro. Conseguiram juntar praticamente tudo que era único do Tipo 64, exceto a carroceria de alumínio, para que fosse possível recuperar o carro 38/42, destruído pelos americanos na guerra.
A carroceria foi encomendada para a Nostalgicar, empresa alemã especializada em carros clássicos. Juntando todos os pedaços originais com a nova carroceria, foi possível refazer o 38/42, que hoje está exposto no Prototyp Museum.
Pelo fato de este carro ser o único sobrevivente com praticamente todas as peças originais, ele é considerado por muitos como o primeiro Porsche verdadeiro, antecedente direto do 356, que foi o primeiro em produção seriada a receber o nome Porsche como marca. Por este motivo é esperado que seu leilão chegue a valores na casa do 20 milhões de dólares, provavelmente deve ser o Porsche mais caro do mundo a ser negociado.
Sem entrar no mérito da quantia em dinheiro, por quanto deve ou não deve ser vendido, o Tipo 64 número 38/41 é provavelmente o Porsche mais importante de toda a história. Não podemos dizer que foi ele quem deu origem à marca como a conhecemos, mas ele foi o primeiro a ter o nome Porsche gravado na carroceria, o primeiro a entrar numa corrida com o nome Porsche e foi o responsável em fazer a ligação entre o KdF-wagen e o 356.
Esse é o elo perdido da evolução da espécie. E também conseguiu sobreviver à Segunda Guerra Mundial estando no meio da Alemanha bombardeada. É um verdadeiro sobrevivente.
MB