Um dos canais de vídeo automobilísticos que eu mais gosto de ver é o Jay Leno’s Garage, onde o simpático apresentador americano mostra nos mínimos detalhes diversos carros de diversas épocas, detalhe por detalhe, desde a parte estética até como funcionam e suas peculiaridades. Como um verdadeiro petrolhead, ele não abre mão de mostrar a parte mecânica, seus modos de operação e como é andar com eles, e não importa o tipo de carro nem sua época de origem.
Recentemente, Jay gravou um episódio com o Chrysler 300D 1958 de um de seus funcionários, curiosamente equipado com um sistema de injeção de combustível que saiu em pouquíssimas unidades daquele ano. É um carro muito legal, a injeção é uma característica única e muito rara. O carro tem algumas modificações para ser mais “usável”, mas não é este o ponto onde quero chegar.
Durante o episódio, foi falado do Chrysler 300G de propriedade do próprio Leno. É um modelo de 1961, e que levantou um ponto a se pensar. Comparando os dois Chryslers, que são separados no nascimento por apenas três anos, é nítida a diferença entre um carro e outro. São duas frentes distintas, com outras características que demonstram o parentesco dos dois carros, como as grandes barbatanas do estilo “rabo de peixe”. Não é apenas um facelift, é uma mudança grande em muitas peças enormes e caras. E estas mudanças eram muito comuns no passado.
Hoje em dia, não existe mais tanta alteração de uma geração para outra de um mesmo automóvel, que dirá entre ano-modelos diferentes. Os carros são basicamente os mesmos por anos seguidos, e muitas vezes é impossível distinguir o ano de um carro moderno apenas pela sua aparência. No passado, os carros mudavam praticamente todos os anos, e não só no detalhe do farol dianteiro ou no friso da porta.
Para exemplificar onde quero chegar, vamos ver como foi a evolução dos Chrysler ao longo dos anos, tendo como referência um carro igual ao de Jay Leno, um 300G de 1961. Comparado com o 300D mostrado no seu programa, a frente é bem diferente. Os faróis passaram de duas duplas paralelas para duas duplas diagonais, com o desenho da grade grade acompanhado seu posicionamento.
Voltando dez anos no tempo, o Chrysler de 1951 não tem nada a ver com o carro de 1961. É até possível arriscarmos dizer que não são da mesma marca, tamanha é a diferença entre eles. Em 1951, as linhas do carro seguem um certo padrão de design que havia na época. Formas bem arredondadas, com os três volumes do carro bem delimitados (frente, habitáculo e porta-malas). Comparado com o 300G, era um desenho conservador. As características marcantes do carro foram mudando ano a ano, até chegar no modelo de 1961.
No passado, os carros americanos seguiam uma temática para seus desenhos. Nesta época do Chrysler, era a vez da chamada Corrida Espacial, onde o tema dos foguetes e das naves espaciais ditavam o que se entendia por “moderno”. Parecer com um foguete era ser moderno. Daí vieram as berrantes lanternas traseiras em forma de longas gotas, representando o fogo do sistema de propulsão dos foguetes, ao final dos longos e protuberantes “rabos de peixe”. Bonito ou não, era uma temática da época, e que nenhum fabricante se continha em seguir e mesmo em inovar.
Adiantando dez anos em relação ao 300G, pegamos o exemplo do Chrysler 300 de 1971. Outra mudança radical de conceito que, novamente, é difícil falar que os carros são da mesma família porém distantes apenas dez anos. O modelo de 1971 era bem mais quadrado, puxando todas suas características de forma para os retângulos. Linhas retas, fortes, bem definidas. Se pularmos de 1951 para 1971, podemos falar simploriamente que o carro passou de redondo para quadrado. Não sou designer, tão pouco entendido do assunto, mas é nítida a mudança em vinte anos.
Obviamente todos os carros da época evoluíram. O mundo evoluiu, as tendências de mola evoluíram, a percepção das pessoas mudou, e o conceito de moderno seguiu a onda do mundo ao seu redor. Os carros apenas seguiram o rebanho, mudando de forma.
E o que fez isto possível? Ao meu ver, dois pontos: a criatividade dos desenhistas da época e a liberdade para poderem trabalhar. O 300G e outros de sua geração foram desenhados pelo genial Virgil Exner, que levou para a Chrysler o conceito visual que ele chamou de Forward Look (algo como visual adiante, referindo-se ao futuro), que mudou um pouco as proporções dos seus carros, com teto mais baixo e linhas mais suaves. Ele mesmo gostou muito da invenção dos primeiros “rabos de peixe” nos Cadillacs do fim dos anos 40, que reverenciavam o caça P-38 Lightning. Este Cadillac foi obra de Harley Earl, outro visionário do design automobilístico americano. E já neste período, os carros evoluíam de tal forma a serem reformulados profundamente a cada versão.
Tanto Exner como Earl tinham a liberdade para criar seus designs. A indústria era rica e próspera no período pós-guerra. O mercado estava ávido por novidades e podia pagar por elas. Isso fazia com que a cada ano os carros tivessem que ser modificados, assim os compradores teriam sempre a oportunidade de adquirir o “carro do ano”, e ter um era símbolo de prosperidade, sucesso e status social.
Como os fabricantes tinham recursos financeiros que vinham com o mercado automobilístico em alta, criar novos ferramentais de estampagem e fundição não eram limitantes para os novos designs. Vejam como a Chevrolet modificou sua linha em um período de poucos anos, passando pelos famosos Bel Airs.
Com o passar dos anos, o mercado foi sofrendo mudanças. A abundância de compradores com dinheiro e fabricantes com recursos foi diminuindo por vários fatores. Crises econômicas, crises políticas, guerras que jogaram o preço do barril do petróleo nas alturas. Tudo isso diminuiu o mercado ávido por novidades e disposto a pagar por elas, ano a ano.
Os projetistas bateram na primeira barreira, a limitação financeira. Os fabricantes não mais poderiam se dar ao luxo de investir milhões de dólares todos os anos para ter um novo modelo de carro, uma vez que o mercado não absorveria tantos carros novos que dessem o retorno financeiro necessário para pagar a conta dos ferramentais e dos desenvolvimento. Para se ter uma ideia, o desenho dos Chryslers de Exner eram conhecidos como The New 100-Million Dollar Look (o novo visual de 100 milhões de dólares, alusão aos investimentos feitos pela Chrysler para chegar ao desenho dos carros na época). Desta forma, as alterações foram ficando menores ou mais espaçadas no tempo. Uma total reestilização não aconteceria mais de ano em ano, mas sim a cada cinco anos, talvez.
Apenas para pontuar, falo aqui do mercado americano, pois é muito mais fácil enxergarmos as variações e impactos diretos no desenho final dos carros, mas o raciocínio vale para o mundo todo, alguns lugares em maior ou menor escala.
Outro ponto que limita muito a liberdade dos designers são as regulamentações governamentais, principalmente sobre segurança. Com estas regras, criam-se padrões que obrigatoriamente devem ser seguidos por todos os fabricantes, e estes padrões pouco mudam ao longo do tempo. Por isso vemos pouca diferença entre os carros modernos, tanto entre modelos da mesma marca, como entre modelos de marcas diferentes.
Pegando um gancho no que o MAO falou recentemente aqui no AE sobre as regulamentações que são impostas e que afetam diversos aspectos de um carro, inevitavelmente um deles vai ser o design. Quando se criam leis e normas sobre segurança veicular, o projeto dos carros é afetado diretamente e eles acabam convergindo, pois existe um objetivo comum que deve ser atingido. Cria-se um padrão a ser seguido, e que para ser atendido, os carros acabam ficando parecidos, pois o mesmo padrão vale para todos.
Juntando os recursos escassos com as limitações impostas, o resultado não poderia ser outro. Cada vez mais vemos carros parecidos nas ruas, pouco ou nada diferentes de um ano para o outro. É caríssimo investir em ferramentas de produção em peças que são sensíveis, por exemplo, ao resultado de um crash test. Já é difícil atender aos requisitos impostos com um projeto, e alterar o projeto mantendo os resultados não é barato. Muitas vezes os carros recebem pequenas alterações visuais, que são os chamados facelifts, mas a estrutura invisível aos olhos que fica por trás das grades e para-choques, é exatamente a mesma do modelo anterior. É mais barato fazer desta forma, e no mercado tão acirrado como o de hoje, não fazer isso é quase que uma certeza de fracasso.
As mudanças que os carros sofriam em um período de 20 anos no passado nem de longe são da mesma escala das que vemos numa janela de 20 anos hoje. Vejam como o Honda Civic mudou em vinte anos.
Falei anteriormente que dois pontos permitiram que os carros mudassem tanto no passado. Uma delas é a liberdade dos projetistas, que já vimos ter sido arrancada deles, ou por conta de custo, ou por conta de regras. O outro ponto, que é a criatividade, esta permanece a mesma. A prova disto são os inúmeros carros-conceito que vemos por aí, e que nunca deixaram de existir, sempre chocando o mundo com muitos recursos extravagantes e ousados. Só que estes conceitos geralmente ignoram tanto o custo como as regras.
Obviamente os carros modernos são mais seguros, mais silenciosos, mais confortáveis, mais isto e mais aquilo, mas será mesmo que não estamos passando do ponto? Como o MAO falou, não temos mais a opção de escolha, apenas podemos comprar o que nos é imposto e tudo segue a mesma regra rígida.
Se você quisesse comprar um equivalente ao 300G dos dias de hoje, ficará passando vontade, ou gastará milhões para ter um supercarro que, com alguns jeitinhos, atende as legislações e os designers puderam ter liberdade de criar sem muitas restrições quanto a custo, diferente de um carro de produção em massa. Mas quem pode pagar por isso são poucos. Para os meros mortais, temos que nos contentar com os “carros padrões”.
MB