Quem acompanha minha coluna sabe da minha paixão por números, lógica e bom senso. Talvez a palavra certa não seja paixão e sim obsessão. Os mais exagerados chegariam a falar em TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), mas, vá lá, podem dizer isso que não me ofendo. Sempre tratei as estatísticas com muito respeito, mas com um certo distanciamento crítico quanto à coleta de dados e especialmente suas conclusões.
Isto dito, vamos à bronca da semana contra o jornalismo e as estatísticas. Sei que Jornalismo é matéria de Humanas. Eu mesma achava que tinha dificuldades com números e por isso tomei uma atitude radical, como boa pessoa persistente que sou. Cabeça-dura para alguns, porém não néscia (para mim, pelo menos, hehehe). Meus leitores mais antigos lembrarão que já mencionei que não posso lutar contra a genética e os meus antepassados vascos, galegos e italianos – além de eu mesma ser argentina e taurina. Ou seja, mistura perfeita para alguém mais persistente do que cachorro do interior correndo atrás de carro.
Como sou teimosa e gosto de desafios, mesmo tendo decidido aos seis anos de idade pelo Jornalismo (portanto, Ciências Humanas) quando cheguei ao então segundo grau, resolvi me autodesafiar e optei por seguir no curso de Exatas no então Colegial. Era meu primeiro ano de Brasil e para meu orgulho passei direto, e com ótimas notas, em Português e em todas as matérias, exceto as fatídicas Matemática, Física e Química. Peguei o tal do exame de segunda-época. Mas consegui ser aprovada em dezembro. Nem “março” nem “depê”. Ou seja, não era tão ruim assim. E sem ajuda de professores, nem de pai nem mãe, ambos químicos.
Para piorar meu autoflagelo, minha mãe dera dado aulas particulares de Física e Química na Argentina durante alguns anos. Felizmente, eles nunca me cobraram fora do que seria razoável e de forma razoável. Lembro que quando eu tirava 9 em Inglês, Educação Física ou mesmo Castelhano, era um “Filha, o que aconteceu?” de preocupação, não de cobrança. Mas quando voltava com um 6 em Física ou Química era motivo de comemoração. Eles sabiam das minhas aptidões e das minhas dificuldades. Ajudou a não me traumatizar e, depois, a apreciar essas matérias.
O que eu mesma não sabia era que havia muita mais gente com dificuldades em Ciências Exatas lá fora. Também não imaginava que tão poucos fizessem o dever de casa, se esforçassem por entender aquilo para o qual naturalmente não tinham tanta facilidade. Para mim, Física, Química e Matemática eram algo assim, como ciências ocultas, até que descobri como funcionam e para que servem e aprendi a gostar delas. Também descobri que eu nem era tão ruim assim — a barra de comparação com que eu mesma me media é que era muito alta. Mas no mundo real, pena que tenha tanto colega de profissão que maltrata as Ciências Exatas.
Ainda lembro do jornalista porta-voz da Rio 2016, em plenos Jogos Olímpicos do Rio, dizendo numa coletiva de imprensa para tentar justificar a cor verde da água de uma das piscinas: “Descobrimos que Química não é uma ciência exata”.
Dados
Pesquisando dados sobre trânsito, encontrei no portal G1 uma notícia com dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) que diz que “o uso de celular na direção é a terceira maior causa de mortes de trânsito no Brasil, segundo informou o Jornal Hoje. Ao todo, são 150 vítimas por dia e 54.750 por ano, segundo a associação. Essa combinação só perde em números de fatalidades para o excesso de velocidade e a embriaguez ao volante.” Aliás, esses números constam do site da própria Abramet. Ok, vamos supor que este dado esteja correto. Como pode, então, o site da própria Abramet dizer que os acidentes de trânsito provocam cerca de 40.000 mortes todo ano? (segundo o Ministério da Saúde, os acidentes de trânsito são a segunda maior causa de mortes por fatores externos no Brasil; em 2017, foram registradas 35.300 mortes no trânsito).
Em 2017, por exemplo, foram 47.000 segundo a mesma fonte. E, se usar ao celular enquanto se dirige é a terceira causa, o total de mortes deveria ser de, pelo menos, 162.753 pessoas ao ano supondo, por óbvio, que não há nenhum outro motivo de morte no trânsito, o que sabemos não ser verdade. Ainda, se há sobreposição de causas, isso deveria ser dito claramente e discriminado e não feita a soma simples, mas pela forma como são computadas as, por assim chamar, estatísticas, não é o caso.
Tenho algumas hipóteses, caros leitores:
– uso de celular na direção, ainda que provoque acidente com morte, não é considerado acidente de trânsito. Seria acidente de telecomunicações?
– se o uso de celular no trânsito é a terceira causa de acidentes de trânsito fatais com 54.750 vítimas por ano, para que no total morram 40.000 pessoas no trânsito no Brasil, por ano, sendo que há outras duas causas que provocam ainda mais mortes, quantas teriam ressuscitado?
– se a primeira e a segunda causa de mortes no trânsito são, respectivamente, excesso de velocidade e embriaguez, e o total de vítimas por ano é de 40.000, mas morrem 54.750 pessoas apenas por usar celular enquanto dirigem, “bora” dirigir bêbados e a milhão que, pelo visto, morrem menos pessoas – ou ressuscitam mais. Claro que há um problema entre o total de mortes, que deveria ser superior a 54.750 por esta ser a terceira causa em relação às outras duas, mas se ninguém percebeu. vai ver que papai do céu também não. e vai ver que se a gente fizer isso poderemos ficar por aqui mesmo e terminar nossa vidinha em paz (modo irônico no máximo). Mas confesso que voltar à vida tipo personagem do seriado The Walking Dead não me agrada. Posso não ser superlinda e maravilhosa, mas virar zumbi feia desse jeito já seria demais. (foto de abertura)
Juro que não compreendo. Então, fui buscar esclarecimentos e entrei em contato com a própria Abramet, mas a resposta foi de mortes totais no trânsito e de mortes provocadas pelo uso de celular no trânsito. Por e-mail me disseram que não tinham os números que eu queria. “Há, de fato, uma pesquisa feita pela entidade com o tema de celulares no (sic) volante, com alguns dados, mas ela é do ano passado (início) e está com o especialista responsável pela mesma. Nem eu, nem a Abramet em si tem (sic) acesso ou conhecimento de atualizações ou dos dados especificamente. Quanto às mortes, não temos dados exatos de nenhum dos anos, com as especificações que você deseja”.
Copiei inclusive a vírgula errada na última frase e continuo sem entender se os dados divulgados em maio eram de uma Abramet paralela, se aquelas informações foram uma alucinação coletiva da imprensa toda (e que atingiu o próprio site da entidade), se perceberam a dicotomia entre os dois números ou se foram procurar o estagiário que fez o texto para que ele explique. O fato é que o comunicado à imprensa está lá no site da associação desde maio, com essas mesmas informações. Por via das dúvidas, fiz um print screen e guardei. Foi escrito por jornalistas e enviado a jornalistas mas, pelo que parece, nem quem escreveu nem quem recebeu e publicou checou nada e depois quando solicitados dizem que não tem os dados que divulgaram. Então, tá. Explicações, se tiverem, caros leitores, para esta redação.
Outra coisa esquisita é que esta mesma estatística está no mesmíssimo patamar há dois anos e não achei absolutamente nenhuma errata de nenhum meio de comunicação. O número foi divulgado em setembro de 2017, em 2018 e, novamente, em maio passado, o Maio Amarelo pela prevenção de acidentes de trânsito. Se for assim, as multas, a fiscalização e as campanhas de conscientização não adiantaram nada. Estranho, muito estranho.
Lembro da história que narrei aqui quando a Prefeitura de São Paulo saiu dizendo que em todo o ano de 2016 não houve nenhuma morte por atropelamento na marginal do Tietê e atribuiu isso à diminuição dos limites de velocidades. Toda, e digo com certeza, toda a imprensa publicou a declaração do burgomestre e seu secretário de Transportes exceto o AUTOentusiastas — euzinha neste espaço. Ninguém checou. Duvido que ainda exista algum jornalista que não tenha um espertofone que lhe permita digitar e buscar no gúgol se a informação está correta. Foi o que eu fiz e, shazam!, em segundos me apareceu um caso de atropelamento na marginal naquele ano. Escrevi sobre isso à época. Nem procurei mais porque quem distorce dados sobre um pode distorcer sobre 100.
Mas como diz a frase, “de onde nada se espera é que não vem nada mesmo” e por isso de políticos esperamos pouco. Novidade, embora já nem tanto, é saber que seremos enganados por jornalistas — na maioria não intencionalmente, mas apenas por preguiça e indolência. Claro que muitas vezes estas duas produzem resultados que confirmariam as teorias previamente traçadas por esses escribas e que certamente interessam a alguém. Mas muitas vezes é preguiça ou burrice, mesmo.
Na minha época de jornal diário cansei de ir para a rua com uma premissa para uma matéria e voltar com outra. Simplesmente a história não se confirmava. Não quer dizer que não haja caso a apurar, embora às vezes não haja mesmo. Desta vez, por exemplo, uma boa reviravolta seria uma matéria sobre a amnésia seletiva que acomete políticos ou, ainda, sobre a falta de recursos de arquivo para checar informações ou, quem sabe, sobre uma pane mundial no gúgol que tenha impedido as pesquisas sobre números e que tenham feito esse pessoal chegar a uma conclusão tão errada (modo irônico ativado).
Lembro também quando escrevi também neste espaço sobre jornalistas que ficam apenas repetindo o que alguém diz e, no máximo, ouvem o outro lado. Não, jornalismo não é isso. Jornalismo é apurar notícia, não ser porta-voz de dois lados. Isso está mais para Diário Oficial ambidestro do que para imprensa. Infelizmente, hoje estamos em algum lugar entre esses dois reinos.
Bom, o que podemos concluir de tudo isto? Que estatísticas (foto 3) não sérias não servem para nada — apenas para conseguir mídia enquanto esta não perceber que está sendo usada para divulgar informações erradas. Como base para estabelecer políticas públicas, especialmente na área de segurança no trânsito, não podemos fazer nada com números assim. Nadica de nada. Bem, talvez apenas discutir neste espaço e eu ter, mais uma vez, assunto para minhas escrevinhações. Mas podíamos ficar sem essas besteiras, né?
Mudando de assunto: vi pela televisão a Corrida do Milhão da Stock Car, mas não entendi por que o Lucas di Grassi não cumpriu a punição. Vontade de chegar em primeiro mesmo que não valesse? Sei lá. Só sei que em toda categoria na qual ele participa, especialmente quando os carros são iguais ou muito parecidos entre os participantes, como na Fórmula E e na própria Stock, o sujeito se destaca. Na Fórmula 1 não tinha carro.
NG