Pelos retrovisores também revemos nossas lições de vida. Esta, profissional, veio dos tempos da faculdade de Engenharia.
No último ano da graduação, um colega já se achava o que sabia tudo de carro. Direcionava tudo que estudava para a área automobilística. Era de família de agricultores e na época mediana a ponto de lhe propiciar um curso universitário, e disso tinha orgulho.
Presunçoso, considerava-se um ás no volante, mas estava mais para asno volante…e o avô provou isso.
Tinham casa no litoral e para lá iam de vez em quando; o velhinho sempre no banco de trás e ele, claro, o “piloto” já que seu pai não dirigia.
O carro não era do ano, mas dava para o gasto até que seu pai conseguiu adquirir um bem mais novo e de uma geração tecnicamente mais moderna.
E lá foram todos, mesma rota de sempre. Três horas de viagem.
Só que desta vez, ao final da viagem, seu avô surpreendeu a todos com a seguinte frase: “Meu neto, desta vez teu pai acertou, este carro é bem melhor e eu estou menos cansado”. Nunca havia reclamado, desta vez até elogiou.
Meu colega ficou surpreso e intrigado (eu também); afinal, como podia uma pessoa analfabeta definir algo que dependia de tanta engenharia? Pura prepotência nossa.
Pensando depois com humildade a mensagem foi captada; quem entende de carro é quem usa. Desde então, nós dois seguiríamos com este foco no ponto de vista do cliente em nossas carreiras.
Percepção de conforto
Por outro lado, anos mais tarde, já atuando na área de testes e avaliações veiculares, ouvi do presidente da empresa que o cliente é rei, mas não é Deus, numa direta alusão de que o dito popular “o cliente sempre tem razão” precisa ser visto com ressalvas.
Quem trabalha com isto tem o compromisso de buscar o melhor para o futuro usuário, mesmo que ele não tenha a menor ideia e conhecimento técnico, caso do avô do meu colega. E atender também os que têm ideias e conhecimento, embora não trabalhem com isto, caso de tantos entusiastas e aficionados.
Guardadas as proporções, é como o sommelier está para o vinho, a vinícola e os consumidores.
A percepção daquele avô, e nossa, está baseada no conceito de conforto veicular, que é diferente do mais conhecido, e que é por vezes confundido com aconchego e comodidade..
Assistir TV naquela macia poltrona nos proporciona aconchego, desde que não haja movimento. O controle remoto é a comodidade..
Este conceito de maciez se aplicava aos grandes carros americanos de outros tempos, mas que, com o movimento, produzia indesejáveis oscilações e vibrações ao corpo humano.
Conforto (automobilístico) é dado primordialmente pela calibragem do eixo dianteiro do veículo, pois é por ele que vêm os impactos, oscilações e vibrações. Não pode ser muito dura nem muito macia e ao mesmo tempo deve manter a carroceria sempre a mais estável e parada possível em todas as situações de movimento do veículo. Difícil, não?
Os pneus são a única pequena área de contato com o solo, já os amortecedores são o “estetoscópio”, como dizia um chefe que eu tive.
Trabalhando nestes dois, uma vez que são os controladores de movimentos da suspensão, bem como nos demais componentes e geometria, podemos chegar nessa desejada neutralidade da carroceria. Melhor que isso, só mesmo se a suspensão for adaptativa.
Então, como medir o tal conforto de marcha?
Desde décadas atrás há estudos sobre a exposição humana às vibrações por questões de saúde no ambiente de trabalho.
Daí partir para pesquisa em veículos foi natural; afinal, de qualquer tipo e tamanho, também podem ser ferramentas de trabalho.
Experiências convergiram para vários fatores.
Um deles é de que são importantes a aceleração (rapidez) imposta pela vibração e a frequência (repetição num período) com que ocorre, além da amplitude (tamanho) e direção dessa vibração.
Também primordial é a duração (tempo de exposição) e em quais partes do corpo humano.
A massa encefálica se movimenta na caixa craniana e não tolera grandes oscilações e impactos causando fadiga mental e física, enjoos, por exemplo. Já os formigamentos e trepidações nos comandos do veículo e nos pontos de apoio do corpo no banco (este um filtro de vibrações) causam fadiga muscular e cervical.
Experimentos levaram a referências numéricas utilizadas como meio-termo nas análises.
Por exemplo, ressonâncias exercidas nos músculos provocam cansaço geral no organismo quando causadas por vibrações nas frequências entre 5 Hz e 6 Hz. Já as frequências ao redor de 20 Hz prejudicam as vértebras cervicais.
Os limites mais sensíveis de frequência estão entre 4 e 8 Hz para as vibrações verticais e ao redor de 2 Hz para as vibrações transversais e longitudinais.
Explicando, Hz é o símbolo de Hertz, homenagem ao físico alemão Heinrich Hertz (1854-1897), a unidade de medida do SI (Sistema Internacional) que identifica um ciclo de evento periódico (rotação, vibração, etc.) a cada segundo.
Por sua vez, para evitar danos e cansaço, é melhor que as acelerações verticais permaneçam abaixo de 0,02 G (G é símbolo da unidade não pertencente ao SI e definida como igual à aceleração da gravidade e geralmente arredondada para 1 G = 9,8 m/s².
A ISO – International Organization for Standardization (Organização Internacional para Padronização, em tradução livre) visando criar padrões para testes e obtenção de resultados palpáveis (numéricos), emitiu em 1978 a norma ISO 2631, reeditada como ISO 2631-1 em 1997, onde se encontram curvas de ponderação para o limiar de percepção e o limiar de fadiga do corpo como um todo nas faixas de frequência de 1 Hz a 80 Hz.
A mesma ISO emitiu em 1986 a norma ISO 5349, reeditada como ISO 5349-1 em 2001, para as extremidades (braços e mãos no volante) na gama de frequências que vai de 6,3 Hz a 1.250 Hz.
O avô daquele colega não sabia, nem nós, mas já havia gente trabalhando nisso. Ainda bem!
MP