Acredito que, de fato, há carros que passam por nossas vidas nos momentos certos e muitas das vezes se tornam inesquecíveis por isso.
Meu relato desta vez (o primeiro foi em 17/04/2017) é a respeito de um desses carros, adquirido como um dos primeiros passos de uma necessária readequação financeira no início dos anos 2000. Eu trabalhava com meu pai e o caixa da empresa não se encontrava nos seus melhores dias, com uma baixa substancial no fluxo de trabalho. Era uma situação ainda mais crítica para um pai de primeira viagem, com um filho recém-nascido.
Eu tinha na época dois carros, um Fusca 1967 — que foi o tema central de outro texto apresentado pelo grande Alexander Gromow — e um Fiat Premio CSL 1993. A escolha do eleito para ser vendido foi relativamente fácil, seria o Fiat e por diversos fatores. O VW na época não valia muito (acreditem, mesmo sendo eu o segundo dono e estando estruturalmente tão perfeito quanto quando saiu da fábrica), eu já tinha grande xodó por ele e o seu concorrente direto vivia apontando comigo, o que lhe rendeu o merecido apelido de “Bonitinho, mas ordinário”, clara referência a uma obra de Nélson Rodrigues.
De fato, ele fazia jus a ambos os adjetivos: por se tratar de um sedã 4-portas preto, versão topo de linha, e ainda ter as rodas de 14” do Uno Turbo, que o deixava visualmente bem agradável. Porém, entre outros fatores, o seu motor 1,6 Sevel parece ter criado uma antipatia gratuita comigo no instante em que nos conhecemos, dando-me recorrentes problemas, o principal e persistente era o sumiço de água do sistema de arrefecimento contra o qual todas as medidas lógicas, possíveis e imaginárias já haviam sido tentadas — e custeadas — sem sucesso, e foi assim que ele acabou “eleito voluntário ao sacrifício”.
Várias foram as andanças atrás de um carro que pudesse tomar o lugar do “bonitinho”, como casado e pai precisava de um carro com carroceria de características minimamente parecidas com as dele, mas mais em conta, de manutenção mais barata e confiável.
Numa dessas, procurando algo que interessasse me deparei com um Chevrolet Monza duas-portas 1985 fase I, preto (foto de abertura, meramente ilustrativa como as demais) e me chamou a atenção o fato de na mesma loja haver vários integrantes da família Fiat Uno, me lembro de ter pensado: De duas, uma: ou o dono da loja gosta muito, ou estão todos “encalhados” e ele não vai nem querer bater os olhos no “bonitinho!
Parei o carro numa das ruas laterais da loja e fui conversar. Para minha felicidade o proprietário de fato gostava deles, sendo inclusive uma bela Elba seu carro se uso pessoal. Papo vai, papo vem, e ele demonstrou tanto interesse no meu carro quanto eu no dele (mesmo devidamente alertado para o incômodo que eu passava com o arrefecimento do carro), as condições também eram favoráveis, afinal eu pegaria um “troco” no negócio, ou seja, para mim melhor somente se ele fosse 4-portas em vez de duas pela facilidade no que se refere ao entra e sai de cadeirinha, bolsa e outras “tralhas” infantis.
Carro aprovado com poucas ressalvas pelo mecânico de confiança (vide comentário do motor mais abaixo), negócio feito e algum dinheiro no bolso para alívio geral da nação.
Já nas primeiras voltas o carro impressionou de forma positiva, mesmo mais simples que o seu antecessor (o Chevrolet só tinhas os vidros elétricos e abertura elétrica do porta-malas, dentre os opcionais oferecidos na época), o manuseio do câmbio era tão agradável e diferente que sequer permitia uma comparação (simplesmente outro nível). Seu rodar bem mais macio e focado no conforto deu imediatamente a impressão que da noite para o dia os buracos das ruas da cidade haviam sido tapados. O bom espaço interno, a disposição e até o consumo do motor 1,8-l (com carburador de corpo simples e movido a álcool) foram agradáveis surpresas. Obviamente não se tratava de um carro perfeito mesmo estando com tudo funcionando, apesar de demonstrar ter sido relativamente bem cuidado, mas alguns detalhes eram bem perceptíveis:
– o motor apresentava uma pequena batida de comando (tradicional nestes motores);
– a lata da saia dianteira estava um pouco amassada, e por causa disso havia sido coberta com um spoiler “paralelo” dos modelos 90;
– os retrovisores externos haviam sido substituídos por modelos mais modernos;
– uma pequenina batida na caixa de direção era perceptível trafegando em pavimento ruim;
– as laterais traseiras inferiores tinham alguma irregularidade, coisa ainda bem discreta, somente notável com uma olhada criteriosa, e só.
Neste meio tempo mudei-me para Santa Catarina por motivos profissionais fazendo idas e vindas para São Paulo com relativa frequência, muitas saídas de “desbravamento” pelo interior daquele estado com suas estradas curvilíneas, de topografia variada e repleta de muitas paisagens lindíssimas e, claro, algumas aventuras, como uma vez em que juntamente com a família e o Fusca 67 junto fui convencido por meu pai a atravessar uma área alagada no litoral paulista, obviamente que o Fusca passou sem se ressentir e o Monza acabou tendo de ser rebocado pelo próprio “idoso” VW, felizmente sem maiores consequências além de meus xingamentos íntimos…
Este Chevrolet foi um grande companheiro por cerca de quatro anos, período no qual esgotei alguns tubos de silicone na busca de interromper infiltrações de água na área traseira do carro (que motivavam o aparecimento de ferrugem nas soleiras citadas), o que acabou rendendo ao carro o apelido de “Feiticeira” (personagem de Joana Prado muito conhecido na época).
Durante este período foram pouquíssimos problemas enfrentados, e a grande maioria de fácil solução na base do “faça você mesmo” (importantíssimo se relembrar o motivo pelo qua ele veio fazer parte da família). O mais curioso deles para mim foi que certa época o carro passou apresentar algumas pequenas, mas perceptíveis, falhas só que elas apareciam somente quando chovia (?!), e depois de muito olhar, pensar, analisar e praticamente nada entender, resolvi buscar no mais próximo possível das condições reais de uso. Com motor ligado e armado de uma mangueira, depois de algum tempo comecei a “regar” a frente do carro para ver se o comportamento do motor se alterava, e, acreditem: Bingo!
O que acontecia era que a mangueira de condução da água do radiador para o vaso se expansão passava praticamente encostada ao cabo da bobina chegando no distribuidor, e quando o ventilador puxava água da chuva e umedecia a mangueira por fora, devido a idade do cabo ele “centelhava” em direção à mangueira. Com a troca dos cabos e um providencial encurtamento da mangueira, falhas nunca mais.
Enfim, ele foi uma muito acertada e grata aquisição para uma época de “vacas magras”, demonstrando até alguma economia com combustível (cerca de 7,5 km/l na cidade e 11 km/l na estrada). Vale aqui uma ressalva: entenda-se por “cidade” algo com cerca de 30 mil habitantes no interior de Santa Catarina, na qual congestionamento era três carros parados no mesmo semáforo, tendo valido bem mais que o investimento financeiro necessário para a sua aquisição e provando que não é necessário um grande (ou médio) investimento para se ter um carro que seja confiável, confortável, espaçoso, atenda satisfatoriamente ao que precisa e dê prazer ao motorista.
Sua história comigo terminou em 2004 — com o dito cujo tendo feito valer cada um dos mais de 70.000 km rodados neste período. Isso sem necessidade nenhuma intervenção no conjunto mecânico, o que atestou o comentário do mecânico à época da sua compra: “Está batendo um pouquinho de comando, mas é coisa leve… se você não deixar ferver, usar um óleo bom e fizer as trocas direitinho, terá motor para rodar muito ainda” — quando devido a uma mudança de planos foi trocado por outro carro que eu gosto muito, um Escort Mk4 1,6 Hobby. Mas aí já é outra história.
Nilton Luís Rodrigues
São Paulo, SP