É normal nos acostumarmos com algo e não nos darmos conta de como é bom. Caso do pneu radial, que não é novidade, pois todo carro hoje sai de fábrica com esse tipo de ‘pneu. Começou em 1960 com a chegada do FNM 2000 JK, fabricado aqui pela Fábrica Nacional de Motores sob licença da Alfa Romeo italiana. O modelo, lançado em 1958 na Itália, se chamava Alfa Romeo 2000 Berlina (berlina é sedã em italiano) e se destinava principalmente ao mercado americano. Mas não teve sucesso por ter pouco motor comparado aos carros de lá e seus V-8 de alta cilindrada e também por só ter câmbio manual, ainda por cima de cinco marchas. O carro aqui, como na Itália, saía com pneus radiais Pirelli Cinturato CF67 165-400 (o Cinturato CF67 é o da foto de abertura).
Demoraria oito anos para haver outro carro fabricado no Brasil com pneus radiais de série: Chrysler GTX. Era o pneu Firestone EV-211 ou Pirelli CF67,ambos na medida 185HR15.
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Só quem vivenciou a passagem do pneu diagonal para o radial pôde sentir o benefício que ele trouxe ao automóvel. Conheci o pneu radial no meu DKW-Vemag sedã 1961 e logo notei sua superioridade. Era um mundo novo, desconhecido, em termos de resposta de direção. Durante a primeira centena de quilômetros era comum iniciar uma curva e imediatamente tratar de descomandá-la um pouco, senão o nada doce encontro com o meio-fio (guia) interno seria certo.
O carro parecia andar mais, mais solto, perdia menos velocidade ao levantar o pé do acelerador. Movimentá-lo á mão sobre superfície plana e lisa requeria menos esforço do que com os pneus diagonais. Chamou-me logo a atenção a “barriga” do flanco do pneu, parecia estar com pressão abaixo da recomendada (pena não ter encontrado uma foto para mostrar) Era tudo novidade para mim.
O rodar tinha uma aspereza que o pneu diagonal não tinha. Naquele tempo muitas ruas eram calçadas com paralelepípedos e com os radiais e esse efeito era bem amplificado — até cerca de 40 km/h, porque depois disso as frequências se combinavam e o rodar era bem confortável. Eu brincava dizendo que depois de ultrapassada a barreira do som o voo se acalmava…
Outro ganho notável foi no piso molhado. Não havia comparação com os pneus diagonais. Parecia ser outro carro, como era bom andar mais rápido na chuva sentindo os pneus “morderem” o piso mesmo naquelas condição. O limite de fato aumentou, mas o momento de perda de aderência lateral vinha de uma vez, não era como com os pneus diagonais, que avisam a iminência desse momento. Isso levou muitos a acharem que o Cinturado era perigoso em piso molhado — o que eu refutava veementemente. Dava muita discussão.
Outra qualidade do pneu radial só fui conhecer no primeiro furo. Pelo fato de os flancos serem consideravelmente mais flexíveis do que nos diagonais, a perturbação do pneu rodando sem ar, na reta, é nada comparada com a do pneu diagonal. A menor perturbação é fator de segurança, pois a direção não puxa para o lado do pneu sem ar (ou para o lado oposto se a geometria de direção for de raio de rolagem negativo).
O pneu radial, em razão de sua pegada no solo constante com qualquer pressão de enchimento, pôs fim ao velho diagnóstico de pneu gasto no centro indicar pressão excessiva ou gasto nas duas extremidades da banda de rodagem, ser sinal de pressão baixa. Tanto que marcas como Renault hoje especificam pressão única para carro só com o motorista ou com carga máxima — teoricamente seria pressão excessiva com uma só pessoa a bordo. A Ford, recomenda pressões diferentes para a picape Ford Ranger, 30 lb/pol² para conforto e 38 lb/pol² para menor consumo de combustível, como o Gerson Borini apontou em teste recente da versão Ranger Black.
Eu mesmo, quando comecei a usar o Passat logo que lançado, achei a pressão de 26 lb/pol² exagerada para o piso do Rio de Janeiro e passei para 22 lb/pol², inclusive recomendando a redução de pressão aos clientes da concessionária onde eu era sócio e cuidava especialmente do pós-venda. Nunca as bandas de rodagem ficaram “no padrão” que se dizia ficar, — o da foto da esquerda abaixo — tampouco o Passat perdia capacidade de curva mesmo em velocidades de rodovia em tempos sem radar.
Houve um caso de rodar com pressão bem abaixo da recomendada na equipe de competição da Vemag. No circuito da Cavalhada, em Porto Alegre, os pilotos dos DKW-Vemag sedã reclamaram com o chefe de equipe, Jorge Lettry, que no curvão para a esquerda após uma descida os carros apontavam e saíam de traseira, perdendo velocidade. Sem que os pilotos soubessem, Lettry baixou a pressão dos pneus dianteiros para 13 lb/pol². Os pilotos aprovaram e assim os correram as 12 horas da prova sem nenhum problema. Os pneus eram o Pirelli Cinturato CF67 com composto diferente dos pneus normais que a Pirelli fabricava para uso em pista.
O pulo do gato
O que faz o pneu radial ser tão superior ao diagonal? O segredo está na disposição das lonas,, responsáveis por armar o pneu (a borracha em si não se presta para isso). Acreditava-se que dispostas em ângulo, abrangendo por parte da circunferência,, o pneu estaria bem armado. Até que alguém (ver adiante) deduziu que, de tão bem armado o pneu, a banda de rodagem se deformaria quando a carcaça se deformasse sob ação de um força lateral, como quando o veículo fizesse uma curva. Em outras palavras, a “pegada” da banda de rodagem não seria a que deveria ser.
Essa mesma pessoa concluiu que se as lonas fossem dispostas de maneira radial, de um lado ao outro do pneu. (de talão a talão) sua movimentação nas curva afetaria muito pouco ou nada a banda de rodagem. A carcaça “andaria” e a banda de rodagem, não (exemplo nos desenhos acima, pneu radial à esquerda). Esta seria suportada por uma cinta em toda a periferia da carcaça radial para lhe conferir rigidez e, assim, absoluta estabilidade da “pegada” no solo. E quando falei mais acima sobre o carro ficar mais leve de empurrar, o fato se deve a não haver praticamente o atrito entres as lonas cruzadas do pneus diagonal, como pode ser visto no desenho abaixo. E não havendo atrito o pneu radial aquece-se menos nas viagens. Por falar em lonas cruzadas, em inglês o pneu diagonal é conhecido por cross-ply tire.
Quem primeiro bolou essa solução foram os ingleses G. H. Hamilton e T. Sloper, em 1914, patenteando a ideia, e o americano Arthur W. Savage, em 1916, fabricante de pneus, projetista de armas de fogo e inventor, que também a patenteou. Mas, segundo o Wikipédia, onde obtive essa informação, tudo ficou só na ideia, não chegou a haver pneus radiais de fato.
Avançando no tempo chegamos à década 1940, quando a Michelin, na França, projetou, desenvolveu, patenteou e comercializou o pneu radial. ao qual deu o nome de X — ironicamente a letra remetendo a diagonal, a antítese de radial. O Michelin X foi desenvolvido em 1946 pelo pesquisador da fabricante Marius Mignol, que exercia a função de contador. Nada indica que em 1941, quando começou suas experiências, ele soubesse do trabalho de Hamilton e Savage.
A Michelin era dona da Citroën desde dezembro de 1934 (assumira o controle da Citroën em situação pré-falimentar a pedido do governo francês) e imediatamente, é claro, aplicou o novo tipo pneu num produto da marca, que foi no 2CV, em 1948. O segundo Citroën a deixar linha de produção com pneus Michelin X foi o 11CV em 1952 (e não em 1947, com muitos, eu inclusive, acreditavam).
Devido às suas inquestionáveis vantagens em comportamento dinâmico, redução do consumo de combustível e durabilidade sobe o pneu diagonal, o Michelin X logo tomou conta do mundo . Em 1970 a Ford, pioneiramente nos EUA. lançou o Continental Mk III com pneus Michelin X. E todos os fabricantes de pneus tiveram que aderir ao radial.
O Cadillac De Ville conversível 1970 do leitor e amigo Douglas Loiola (já o vendeu). assim que o comprou trocou os pneus diagonais por radiais 235/70R15. Em 2019 tive o prazer de dirigi-lo, o Douglas como meu copiloto, num rali de regularidade do Jan Balder. Mesmo com todo o tamanho e peso (6 m e mais de 2.000 kg) andava em Interlagos e fazia curvas muito bem. O motor V-8 de 7,4 litros propulsionava o carro com vigor (carro de sonho do leitor “Mr. Car”). Estávamos na reta dos boxes a cerca de 160 km/h quando o pneu dianteiro direito teve esvaziamento súbito (a calota integral decepou a válvula). O que aconteceu? Absolutamente nada, o carro continuou sob meu total controle até pararmos (para não estragar o pneu).
Ângulo de deriva
A maior aderência do pneu radial resulta, da menor deformação da banda de rodagem sob influência de forças laterais, Saiba que, embora não pareça, um pneu nunca vai efetivamente para onde está apontado, devido à elasticidade da borracha. Esse ângulo é chamado ângulo de deriva ou ângulo de escorregamento (slip angle em inglês). Quanto menor, melhor. Esse é um dos pontos altos do pneu radial que quem vivenciou sua chegada sentiu, como eu disse no começo.
Diagonal, impensável hoje
Dado o hábito da maioria dos motoristas de dirigir carros com pneus radiais, e temerário rodar sobre pneus diagonais. Inclusive, grande parte dos donos de Fusca, se não a maioria, tem carros atuais com pneus radiais e estão habituados com as reações desses pneus. Dirigir um Fusca com pneus diagonais, um carro de comportamento sobre-esterçante, não é lá muito salutar.
Em 1975 ou 1976 a Volkswagen lançou uma versão mais acessível do Passat, o Surf, e ao contrário do L e do LS, que saíam com pneus radiais, essa versão “jovem” vinha com pneus diagonais. Pois com 1.500 unidades vendidas, ainda nas concessionárias ou já nas mãos dos clientes, a VW resolveu empreender a troca gratuita de todos pelo radiais, tal era a deterioração das excelentes características do novo VW.
Hoje, em pleno 2021, donos de VW sedã, inclusive da série apelidada de “Itamar”, 47.000 unidades produzidas entre 1993 e 1996, estão com o sério problema de não conseguirr comprar o radial 165/80R15S, que simplesmente não existe mais. Só encontram — quando encontram — o diagonal Firestone F-560.
Quando a VW ´planejou a volta do Fusca em 1993, decidiu, acertadamente, que não teria mais o pneu diagonal 5.60-15, que foi a medida do modelo desde 1953 até o final de produção em 1986 (com exceção do 1600-S “bizzorrão” e do 1600 sedã, com diagonais 5.90-14, de 1974 e 1975, respectivamente), e sim radiais. A medida seria a correta, que constava nos manuais de proprietário como alternativa ao diagonal 5.60-15: 155SR15 ou, hodiernamente, 155/80R15S, a mesma do 1303-S Super Beetle ;alemão Não restou saída à VW senão aplicar no “Itamar” o “errado” 165/80R15S.
Já tentei diversas vezes nos últimos anos convencer as fabricantes de pneus a oferecerem “o pneu de Fusca”, mas a insensibilidade e/ou visão estreita das quatro — Bridgestone, Dunlop,, Goodyear, Michelin e Pirelli — é intrigante: rodam no Brasil 2 milhões de Fuscas e, de quebra. 10 mil DKW-Vemag que usam a medida 155/80R15S. Um mercado certo.
BS