Desde os primórdios dos motores de combustão interna, a árvore de comando de válvulas, peça que comanda a abertura das válvulas e permite seu fechamento pelas molas, é fundamental para o desempenho do motor. Por isso, a forma de seu acionamento é igualmente importante. Vale ressaltar que a árvore de comando de válvulas sempre gira à metade do regime de rotações do virabrequim. Assim, se o motor estiver a 5.000 rpm, isso significa que a árvore de comando de válvulas vai girar a 2.500 rpm.
Tal relação matemática deve-se ao fato de o motor precisar cumprir seu ciclo de quatro tempos (admissão, compressão, explosão e escapamento) em duas rotações do virabrequim. Portanto essa relação de 2:1 é necessária para que a árvore de comando de válvulas possa controlar o ciclo. Se fosse 1:1 o ciclo passaria a ser de dois tempos, como a Toyota procurou desenvolver no começo dos anos 1990, embora fosse necessário um supercarregador (tipo blower) para forçar a mistura ar-combustível para dentro dos cilindros, já que nesse caso não há o tempo dedicado à aspiração atmosférica.
Um parêntese: é comum ouvir-se falar em “eixo-comando de válvulas”, mas a peça transmite movimento, por isso é uma árvore, no caso árvore de comando de válvulas. Eixo é usado para descrever um item estático em torno do qual algo gira.
Ao longo do tempo, muitas soluções técnicas foram encontradas pelos projetistas para acionar, de maneira sincronizada, a árvore de comando de válvulas, a partir do virabrequim. Em minha curiosa vida de pesquisar motores, uma de minhas grandes paixões, vi sistemas complexos e inusitados que cumpriam esta função. Mas o que prevaleceu, por facilidade construtiva e de manutenção, foram as engrenagens, a corrente (semelhante à das bicicletas) e, mais modernamente, a correia dentada.
É preciso atentar para as duas localizações possíveis da árvore de comando de válvulas nos motores: o bloco e o cabeçote.
Quando é no bloco seu acionamento é relativamente simples devido à pequena distância entre o virabrequim e o comando. Pode ser por um par de engrenagens helicoidais ou por corrente parecida com a das bicicletas. Como exemplo de árvore de comando no bloco podemos citar o motor dos Renault Dauphine/Gordini,/1093 e Willys Interlagos. Ele utilizava um par de engrenagens para o seu acionamento, e praticamente não causava problemas aos seus proprietários.
Quando chegou o Ford Corcel, com motor também Renault, mas um novo modelo maior e mais robusto, foi adotada a corrente, que mostrava silêncio e suavidade no funcionamento, e precisão no sincronismo do virabrequim e comando de válvulas.
O “porém” é que, com o passar do tempo, começava a criar folgas no esticador da corrente (não mostrado no desenho), que era hidráulico e exigia a troca periódica de um kit composto de duas engrenagens, uma corrente e um novo esticador. Apesar dessa necessidade de troca, elas ocorriam bem depois dos 100 mil km, e para fazê-la, era necessário remover uma pequena tampa na frente do motor. Uma operação que não era das mais fáceis e simples, mas que também não era tão complexa caso o mecânico estivesse munido das ferramentas corretas.
Já o arranjo de árvore de comando de válvulas no cabeçote exige um acionamento da árvore de comando mais complexo. Ele pode ser por engrenagens, por corrente e por correia dentada, esta usada pela primeira vez no pequeno cupê alemão Glas 1300 GT, apresentado no Salão de Frankfurt de 1963, que tinha árvore de comando de válvulas única.
Quando são duas árvores de comando de válvulas no cabeçote. a complexidade aumenta no caso de se usar engrenagens. A foto abaixo fala por si só:
As engrenagens, normalmente compostas de uma no virabrequim e várias intermediárias até chegar na da árvore de comando de válvulas, mostram-se mais confiáveis, robustas e duráveis. Não necessitam de praticamente nenhuma manutenção adicional. Desvantagens? Mostram um momento de inércia bem elevado, há o próprio atrito de funcionamento, o que não condiz com a disposição e agilidade dos pequenos e compactos motores atuais, além de serem ruidosas. Mas é um sistema bastante caro e por isso só visto nos motores sofisticados.
Vale ressaltar que quando surgiu o motor Ford Cosworth DFV em 1967, um dos mais vitoriosos da Fórmula 1, o V-8 de 3 litros possuía quatro comandos de válvulas — dois em cada cabeçote, como na foto acima — acionados por engrenagens de dentes retos, mesmo este motor atingindo rotações na casa de 10 a 12 mil rpm. Os técnicos assim o quiseram por uma questão de confiabilidade e precisão de operação, e aquele mundo de engrenagens de dentes retos poderiam produzir um barulho ensurdecedor (coisa que não fazia muita diferença em um carro de Fórmula 1).
Já o acionamento por corrente é incomparavelmente mais simples, seja uma ou duas árvores de comando de válvulas no cabeçote. As duas árvores do motor Alfa Romeo 2-litros do FNM 2000 JK eramacionadas por corrente, como no desenho ilustrativo abaixo:
O motor E.torQ 16-válvulas só tem uma árvore de comando, acionada por corrente:
Como dito acima, em 1963 o Glas 1300 GT inovou com o acionamento da árvore de comando de válvulas no cabeçote por correia dentada de borracha reforçada com cordonéis de nylon.
No início, todos só viam vantagens: silêncio de funcionamento, precisão do sincronismo entre virabrequim e comando de válvulas, facilidade de manutenção (pois era externa, e a troca não necessitava de muitas ferramentas), além do custo baixo da própria correia quando precisasse ser substituída. Nessa balada, vieram Chevrolet Chevette, VW Passat, Fiat 147, Ford Maverick 2300 e por aí vai. Todos utilizavam o então modernismo da correia dentada mesmo em motores de dupla árvore de comando de válvulas.
Até a Cosworth produziu um motor de competição com correia dentada para acionamento das duas árvores de comando de válvulas, o 2-litros BDA que chegamos a conhecer aqui no Lola T210 na Copa Brasil, em 1970, em Interlagos. O pequeno Lola, nas mãos de Emerson Fittipaldi, derrotou o potente Ferrari 512 S 5-litros do italiano Giovanni Moretti, numa das mais emocionantes disputas já vistas no autódromo paulistano. Volta após volta o Ferrari despachava o Lola nas retas, mas no miolo do circuito (o antigo, de 7,960 km) o Lola chegava na linha de chegada na frente.
Mas um problema que os projetistas não haviam considerado é que a grande maioria dos consumidores não estava acostumada a fazer manutenção preventiva do sistema de distribuição. Tanto as engrenagens, que praticamente não exigiam reparos, quanto a corrente, que demorava para apresentar fadiga, faziam com que os usuários nem se lembrassem da manutenção desses componentes.
Outro aspecto desconhecido dos projetistas era o hábito de lavar o motor pulverizando querosene, derivado do petróleo inimigo nº 1 da borracha, o que abreviava a vida da correia dentada.
Repentinamente, apareceram nos planos de manutenção a troca da correia dentada a cada 30, 50 ou 80 mil quilômetros (o Passat sequer tinha previsão de troca). Quase ninguém lembrou disso, e o fato é que utilizavam correia até seu rompimento, lá pelos 80 ou 100 mil km. O que acontecia? O motorista ficava a pé, afinal a árvore de comando de válvulas simplesmente parava de girar e, consequentemente, o motor não funcionava mais.
Em casos mais sérios e dependendo do motor, por inércia do conjunto, o virabrequim poderia empurrar, via bielas, os pistões para cima, que podiam atropelar uma ou mais válvulas abertas e aí o estrago total estava feito, pois se perdia cabeçote, válvula, pistões, e se o azar fosse grande, poderia até um pedaço de válvula quebrar o bloco. Perda total para o motor. O motorista só descobria a duras penas o preço do modernismo: Ou fazia a manutenção preventiva correta, ou corria o sério risco de quebrar o motor inteiro.
Depois de décadas, os projetistas voltaram um pequeno passo na evolução da engenharia: a maioria dos motores modernos, em especial os compactos, voltou a utilizar a boa e velha corrente de comando, que pode, com o passar da quilometragem, ficar ruidosa, apresentar folga entre os elos e a árvore de comando sair da sincronização original, mas nunca deixar o motorista na mão ou ter motor danificado parcial ou totalmente. Uma marca que se precaveu foi a Porsche quando projetou o boxer de seis cilindros para o 911: o engenheiro do projeto Ferdinand Piëch, neto do Prof. Ferdinand Porsche pensou em usar correia dentada para acionar ás duas árvores de comando (uma em cada cabeçote), mas acabou usando as correntes inglesas Renold de dupla fileira.
Assim como em outras verdades da vida, a engenharia também volta um pouco atrás. E, olha, que esse “voltar” não é muito, principalmente se considerarmos todo o ganho em confiabilidade e manutenção mais duradoura, que exige menos preocupações.
DM