A história dos desenvolvimentos de Cesar Castano ainda duraria outras três décadas. Em novembro de 1926, Castano se inscreveu na corrida que inauguraria a pista de Los Toboganes, em Esperanza, na província de Santa Fé. Suas duas retas de 7 quilômetros seriam muito favoráveis ao carro, mas a prova seria duríssima: 507,5 quilômetros, com a expectativa de durar 3h30. As curvas tinham uma largura de 25 metros e eram todas inclinadas (superelevadas). Um sonho para mim, que sofro assistindo provas em circuitos estreitos e insossos como os que têm sido inaugurados nos últimos anos e utilizados para Fórmula 1. O sentido era anti-horário.
Os carros, claro, deveriam parar para reabastecer (combustível e óleo), mas também para trocar os pneus — e as velas! Exceto um Bugatti, os outros participantes eram carros de rua adaptados para a competição.
Na inauguração autódromo o público era de incríveis 15.000 pessoas — lembrando novamente: interior da Argentina, interior de Santa Fé e anos 1920. Que tal? Outra curiosidade: não houve uma lista completa de colocados na prova, pois depois que os primeiros completaram a corrida a pista foi invadida e não houve como tirar o público para os demais carros recebessem a bandeira quadriculada. Ou seja, depois de um certo colocado ninguém soube em que posição os outros chegaram. Isso é o que eu chamo de verdadeiro autoentusiasmo.
Pilotado por Esteban Ballestretti e Vicente Fagole como acompanhante, o carro de Castano havia obtido no treino a velocidade média de 161 km/h e largaria em nono lugar — largaria porque as posições do grid eram sorteadas e as largadas eram individuais, contra o relógio. Mas na primeira acelerada o comando de câmbio quebrou. O próprio Castano foi empurrar o carro para que Ballestretti engatasse a marcha diretamente e conseguisse correr. Mas a total desproporção entre o gigantesco peso do carro, seu assoalho e os pneus, fez com que o fundo do carro se soltasse já na quarta volta — não sem antes cravar 161 km/h de média novamente.
Logo depois a roda dianteira direita se soltou, o carro desgovernou-se, bateu muito forte, derrubou exatos 14 postes do alambrado que delimitava a pista, capotou várias vezes e os dois ocupantes foram ejetados do carro . Ballestretti ficou 24 horas desacordado, mas conseguiu se recuperar, mas Fagole veio a falecer. O vencedor da prova foi Ernesto Bossola, com o Bugatti, que terminou a prova em 3h31 à média de 144,1 km/h.
Na foto do carro acidentado dá para ver o gigantesco motor, um seis-cilindros em linha dividido em dois blocos com o comando de válvulas com duas árvores verticais no centro para acioná-lo. Ah! E um detalhe: freios somente nas rodas traseiras pois, como já dizia Ettore Bugatti, os carros foram feitos para correr, não para frear. Sério — bem, sério que ele dizia isso, não que eu leve a sério um comentário desses.
Fênix
Tal qual uma fênix, que renasceu das cinzas, os que sobrou do carro foi comprado por um cidadão de Esperanza, Aristides Robert, que o encurtou, baixou o chassi, acrescentou uns patins no trem dianteiro para que caso uma roda se soltasse o carro se apoiasse neles e deslizasse sem perder o controle.
O próprio Robert assumiu o volante do carro em setembro de 1928 no III Grande Prêmio da Província de Santa Fé, mas acabou abandonando depois de penar com os persistentes problemas de estabilidade. O carro foi então comprado por Gabriel Sagrera, que o reformou e participou de diversas provas da categoria Mecânica Argentina, sobre a qual falei neste espaço e em várias oportunidades nas 500 Milhas de Rafaela — chegou em quarto lugar em 1947 e em 1950 — mas muito modificado e com outro motor. Depois disto, não consegui mais rastrear o carro que, suponho, assim como outros deve ter acabado desmanchado em alguma oficina.
Mas voltemos a Buenos Aires. No final dos anos 1930 e no começo dos 1940, o interesse por carros é grande na Argentina (foto de abertura), mas o domínio é de carros importados. Em 1945 Castano funda a Fábrica Argentina de Automóviles C.C. e começa a produzir uma picape leve (para meia tonelada de carga) com motorização baseada no DKW, dois cilindros, 700 cm³ e 20 cv. Era o pós-guerra e a maior necessidade era por utilitários leves para transportar mercadorias, especialmente dentro das cidades, daí o foco nesse tipo de veículo.
O lançamento oficial foi em junho de 1946, mas o veículo nunca chegou a ser produzido em série. Castano negociou seu projeto com a estatal IAME (lembram dela? Falei sobre essa história aqui) que comprou os desenhos e as matrizes do “Castanito”, que foi utilizado no desenvolvimento e na produção dos sedãs e das picapes Institec. Vejam como as histórias se amarram umas nas outras. Aliás, a picape Justicialista havia sido desenvolvida com base nos projetos de Castano, que vendeu também o projeto dele e de outros veículos desenvolvidos por ele, como o Castanito, o furgão Castanito e o carro esporte com motor radial de avião Hudson.
O veículo, também chamado Castanito (isso não facilita em nada meu trabalho, pois todos os projetos de Castano tinham esse nome) foi desenhado tendo como referência o utilitário DKW Schnellaster, com motor dois-tempos de dois cilindros – uma combinação econômica e simples de produzir. A tração era dianteira e o carro tinha um bloco único de motor e transeixo com câmbio de 4 marchas, mais o radiador. O motor de arranque era também o dínamo, sistema combinado chamado Dynastart, e a ignição era por bobina e platinado.
O veículo era montado sobre um chassi de travessas reforçadas, a distância entre eixos era de 2.700 mm e a bitola dianteira de 1.420 mm. A suspensão dianteira era independente e a traseira de eixo rígido com feixes de molas tipo cantilever (¼ elípticas). Os freios eram hidráulicos a tambor nas quatro rodas.
O radiador na frente do carro era de bronze e tinha um escudo com as iniciais C.C. e uma esfinge, também de bronze, na extremidade do capô, em memória à filha de Castano, que havia morrido num incêndio. Pelos planos de Castano, o motor equiparia não apenas os veículos da marca, mas também poderia ser fornecido para outros fabricantes de carros.
Depois de produzir cerca de 20 unidades, o Castanito foi canibalizado pelos veículos da IAME – que conseguiam uma escala maior de produção.
Mas a Fábrica Argentina de Automóviles C.C. continuou produzindo outros itens, especialmente rolamentos e ferramentas para a estatal petrolífera argentina YPF. Assim como aconteceu com outros fabricantes daquela época, a indústria petrolífera florescia e acabava absorvendo parte dos produtos feitos pela indústria automobilística. Depois de alguns anos, a fábrica voltou, mais uma vez, à atividade automobilística e em 1955 Castano desenvolveu um protótipo de uma moto chamada “Adelante” (ok, voltamos a melhorar um pouco nos nomes dos veículos argentinos) e, mais uma vez, a derrubada do governo de Juan Domingo Perón tirou o apoio financeiro e Castano arquivou seu projeto.
Atualmente, mesmo a memória desta história é esparsa e mais conhecida dos, digamos, iniciados no assunto. Se bem que a história de Castano passa longe de ser apenas de sucessos, seus projetos continuaram sendo produzidos, ainda que por outras mãos, por vários anos. Pensando bem, não é pouca coisa para um imigrante pobre que começou tudo de uma forma tão artesanal.
Mudando de assunto: semana passada passei por uma situação bizarra, mas cada vez mais comum. Segue a foto com o absurdo provocado pelo que eu chamo de “burrice natural”, pois “inteligência artificial” passou longe. A título de esclarecimento, o diálogo começou quando eu enviei uma saudação, disse meu nome e fiz três perguntinhas para uma loja pelo WhatsApp deles. O que se seguiu foi esta coisa surreal. Foi algo irritante, mas confesso que ri durante uns 10 minutos. Provavelmente de nervoso.
NG