(Continuação da semana passada)
CARROS, CARROS
Por Luís Fenando Silva Pinto
“Os primeiros carros que usei nas pistas americanas, entre 1997 e 2002, foram exemplos das fenomenais últimas gerações de Porsches com motor arrefecido a ar: um Porsche 964 (1990) e depois um 993 (1996). Eram carros de rua. A adaptação para a pista seguiu a regra de que “carro se prepara do asfalto para cima.
- Em primeiro lugar, fiz um alinhamento com (generoso) câmber negativo para ganhar agilidade na aproximação das curvas
- Troquei as pastilhas de freio usadas na rua por pastilhas de competição, com material de atrito extremamente resistente. Porsches têm freios superdimensionados para a relação peso-potência e velocidade, mas as pastilhas de rua, que podem durar meses ou anos em uso diário, não aguentam um fim de semana de uso intenso na pista
- Usei pneus progressivamente melhores — até chegar aos slicks (lisos), sabendo que eles duram pouco, mesmo quando têm borracha sobrando na banda de rodagem. A substancia sintética (o nome em inglês é plasticizer) que permite que os slicks fiquem mais moles e mais aderentes quando ganham temperatura, tolera um número limitado de ciclos de aquecimento/esfriamento. Em geral, depois de 20 baterias, a aderência acaba
- Substituí (no caso do 993) a suspensão original, com amortecedores apenas hidráulicos por uma suspensão de pista, regulável, e com gás nos amortecedores (pressurizados)
- Encurtei a relação de marchas. Tanto no câmbio de 5 marchas do 964 quanto no de 6 marchas do 993, a solução eficaz foi uma troca de pinhão e coroa para encurtar a relação final e, consequentemente, todas as marchas, que permitiram uma entrega de potência muito mais cedo nas saídas de curvas
- Instalei bancos e cintos de segurança de competição. Estar bem posicionado para dirigir traduz-se não só em segurança no caso de um acidente, mas em melhora no desempenho. O corpo é o instrumento principal da pilotagem e um banco de competição, com estofo mínimo, transmite diretamente às pernas, às costas — e daí ao cérebro — as alterações no equilíbrio do carro produzidas a cada aceleração, freada e curva. Um bom banco, onde o piloto não fica escorregando para o lado nas curvas, permite liberdade para que as mãos no volante e na alavanca de câmbio façam o ajuste fino de trajetória e seleção de marchas. Ainda mais importante, a firmeza do banco de competição dá liberdade de ação às pernas — e principalmente ao pé direito — que precisa ter força para impor a maior pressão possível na freada (e suavidade em seguida, soltando o pedal), além de agilidade para voltar imediatamente a pisar fundo no acelerador.
• Busquei leveza no veículo. Depois de remover os pesados bancos de rua, além de alto-falantes, tapetes, etc., o passo seguinte foi trocar peças da carroceria não essenciais para a segurança, como o capô e os para-lamas. O que era aço foi substituído por peças mais fortes mas muito mais leves, feitas em compósito de fibra de carbono. - Deixei os motores em paz. Ignorei a tentação de instalar supercarregadores ou turbocarregadores, já que os carros não saíram da fabrica com esses equipamentos e não tiveram tolerâncias internas ou sistemas de circulação de óleo projetados para isso. Ignorei também chips de desempenho, que em geral apenas adiantam o ponto de ignição e, se tiverem mapeamentos pouco sofisticados, podem destruir os anéis dos pistões com detonação prematura. Além disso, coisa que os fabricantes não explicam, chips pedem o uso de gasolina melhor refinada — de 100 octanas, por exemplo — que é muito mais cara.”
“O Porsche 964 tinha 250 cv e pesava 1.120 kg. O 993 era mais potente — 286 cv — porém era mais pesado, 1,390 kg. Para compensar, usei uma suspensão de pista melhor e mais leve, além de estender o “regime de emagrecimento” à tampa do motor, toda em aço, com asa retrátil, um componente de peso considerável. Substituí por uma tampa em compósito de fibra de carbono com asa integrada. O carro ficou apenas 50 kg mais pesado que o 964, mas com motor mais forte e suspensão mais precisa, ganhou em desempenho.”
A partir de 2003, mudei a estratégia. Passei a usar na pista apenas carros fabricados… para pista. O primeiro foi um Cup Car ano 2001. Com 370 cv, 1.140 kg de peso, limite de 7.000 giros e um chassi muito rígido, o Cup Car representou um enorme salto em desempenho e a necessidade de melhorar — muito — a precisão ao pilotar. Tudo necessita concentração maior: as acelerações são surpreendentes, as freadas brutais, as entradas nas curvas e as acelerações nas saídas não admitem hesitações. O ritmo é intenso e exige concentração absoluta — ou fica difícil manter o controle do carro. Mas o resultado é fora do comum. Se estiver com pneus novos, um Cup Car pode diminuir entre 8 e 11 segundos o tempo registrado por um 964 ou um 993, mesmo bem preparados, em um circuito de apenas 3,6 quilômetros.”
“O carro seguinte foi inesquecível. Em 2006 troquei o Cup Car por um Porsche RS ano 2003. Com 435 cv em um motor de alto desempenho (limite de 8.500 rpm), o RS necessitava aquecimento correto de freios e pneus antes de deixar de se comportar como um cavalo chucro, capaz de produzir escorregões laterais até nas retas, ao início de cada bateria. Um desses carros, de mesmo ano de fabricação, venceu a 24 Horas de Daytona, apesar de não estar na categoria principal. Na longa corrida, enquanto os protótipos que lideravam foram tendo problemas mecânicos, o Porsche RS da equipe californiana The Race’s Group, obedecendo uma estratégia agressiva, se impôs e venceu a competição que é uma das mais importantes do automobilismo, mesmo sendo um GT e não um DP (Daytona Prototype). Passei anos disfrutando o desempenho e aprendendo muito com o RS. E tive um bônus: a artista plástica Patrícia Secco, uma grande amiga, gostou da cor original do carro, laranja (foto de abertura), e encomendando a mesma tinta usada pela Porsche — marca Silken — decorou o carro com elementos em branco, preto e amarelo. O RS passou a ir à pista com a pintura única, parecendo um carro de corrida Apache.”
“Meu penúltimo carro foi mais violento ainda, mais difícil de dirigir — novamente me ensinou muito — mas, no cômputo geral, foi uma dor de cabeça. Em 2014, troquei o RS por um Daytona Prototype ano 2006, fabricado por Max Crawford em Denver, Carolina do Norte. O carro, com chassis em compósito de fibra de carbono, bloco do motor em alumínio do departamento de competição da Ford, cabeçote Roush desenvolvendo 500 cv (potência limitada eletronicamente, podendo ser remapeada para 750 cv) e pesando 1.100 kg, provou ser um desafio tentador. A caixa de câmbio sequencial com acionamento eletropneumático controlado pelas borboletas no volante mudou o estilo de pilotagem: o pé esquerdo teve que ser educado para acionar o freio pesado (sem ABS) e o pé direito, sem jamais deixar o acelerador, teve que aprender a ir forte até o fundo, mas com modulação suficiente para evitar excesso de rotação nas rodas traseiras, capaz de induzir o DP a entrar em cavalo de pau a cada saída de curva.”
“Pela experiência que acumulam, instrutores seniores do PCA ganham a liberdade de entrar em pista no grupo Vermelho usando o carro que quiserem, por extremo que seja (com exceção de carros de fórmula, pelo risco potencial de destruição se forem atingidos por um carro mais pesado). O meu interesse em dominar um protótipo me cegou para detalhes importantes: em uma bateria de 30 minutos, um DP nem começa a esquentar pneus, freios e câmbio pneumático. Foi projetado para correr 24 horas sem desligar o motor, cercado por uma equipe onde cada integrante (ou dois) cuida de mecânica, aerodinâmica, eletrônica e suspensão. Em lugar de contar com uma estrutura assim, passei seis anos indo à pista (ah, a teimosia) com o auxílio de apenas um ajudante. Antes de estar plenamente aquecido e ter os sistemas funcionando em harmonia, um DP é extremamente arisco. Dependendo da temperatura do asfalto, pode ficar por duas, às vezes três voltas, à beira da perda de controle. Resultado: durante sete temporadas, eu tive — se tanto — umas onze ou doze oportunidades de correr baterias inteiras usando o desempenho pleno do protótipo. Foram momentos inesquecíveis: é difícil apagar da memória um carro com equilíbrio dinâmico impecável; que “gira” em torno do piloto (a base do banco está abaixo do nível dos eixos) e que tem potência suficiente para, quando os pneus estão em perfeita aderência, fazer curvas em velocidades que parecem desafiar a física. Isso só aconteceu em eventos no auge do verão, onde na segunda bateria da manhã ou da tarde, o DP, ainda morno desde a bateria anterior, entrava rapidamente em aquecimento pleno. Quando tudo “clicava”, a bateria era puro deleite.”
“Mas pouco deleite não compensa muita dor de cabeça… Nesse ano de 2022, abandonei os extremos. O DP deu lugar a um Cup Car competente, geração 997.2, ano 2010. Com 475 cv e 1.200 kg de peso, o Cup é facilmente páreo para o desempenho dos melhores dias do DP. E traz lembranças: também não tem ABS, ou seja, exige firmeza mas muita atenção para as freadas não travarem as rodas e destruírem os slicks. E também veio equipado com câmbio eletropneumático — só que mais eficiente. No protótipo, ar comprimido era enviado a um acumulador e só então a pressão alimentava as linhas pneumáticas que acionavam as mudanças de marchas. No Porsche, o sistema é compacto. O atuador fica literalmente em cima da caixa de câmbio sequencial. Linhas pneumáticas curtas e resistentes comandam os engates, reduções de marchas e interrupções momentâneas da ignição. As borboletas no volante respondem a toques leves. Quando as luzes no painel indicam que estou a 8 mil giros, cada marcha superior é engatada em uma fração de segundo, sem necessidade de tirar o pé do fundo no acelerador. Nas freadas, as reduções também são imediatas, sem uso da embreagem (o pedal só é acionado para mover o carro do ponto-morto para a primeira marcha ou a ré). O DP produzia um sorriso feroz dentro do capacete quando estava funcionando perfeitamente… mas era coisa rara. O Cup Car produz um sorrisão — o tempo todo em que se está na pista.”
CL