Em 1993, o então presidente da República Itamar Franco assinou o decreto do Carro Popular de 7.500 URV. Essa moeda escritural para referência de conversão terminou em 30 de junho de 1994 e em 1º de julho a moeda passou de cruzeiro real para real, em que R$ 1,00 ficou ao par com o dólar. Portanto, falando em moeda brasileira atual, o carro popular tinha preço público definido de R$ 7.500 ou US$ 7.500. Mas em 29 anos, considerando a inflação acumulada dos EUA, esses 7.500 dólares viraram 15.352 dólares, e na conversão direta ao câmbio atual equivalem a R$ 76.760.
Mas voltemos aos primórdios do carro popular da década de 1990. Para ele ser criado houve um acordo com todos os fabricantes para a produção de modelos exclusivos com motor 1,0, e a exceção foi o Fusca com motor 1,6-l arrefecido a ar e potência similar aos 1-litro da época. O plano contemplava o IPI reduzido de 20% para simbólico 0,1% — simbólico porque só por lei pode ser eliminado de todo —, o PIS/Cofins não era tão alto como é hoje e o ICMS variava de estado para estado, assim como ainda acontece nos dias de hoje.
Mas a grande diferença foi a longevidade que foi dada ao programa, pois apesar de haver uma renúncia fiscal do IPI, haveria um ganho de arrecadação pelo esperado aumento do volume de vendas, e principalmente um aumento do número de empregos na indústria nacional, que corresponde à maior arrecadação de Imposto de Renda. E não somente os fabricantes de veículos ficaram contentes, mas toda cadeia de insumos de fabricação, como também os concessionários, lojas de veículos usados e até os fabricantes e instaladores de acessórios, afinal, o carro popular não possuía vários itens de conforto como vidros e travas elétricos, ou direção hidráulica, entre outros.
Com um cenário de longo prazo os fabricantes puderam desenvolver e lançar novos modelos que atendessem o novo programa, e um dos sucessos da época foi o lançamento do Corsa Wind 1,0 pela General Motors em fevereiro de 1994. Produzido em uma fábrica projetada para 14 carros por hora, o fabricante viu-se em palpos de aranha ao identificar a necessidade de produzir mais de 40 carros por hora para atender à demanda.
A cadeia de fornecedores não estava pronta para uma aceleração vertiginosa em pouco espaço de tempo. A falta de veículos no mercado causou o aparecimento do ágio. Os concessionários começaram a cobrar valores exorbitantes, obrigando o então vice-presidente da General Motors do Brasil, André Beer, a ir à TV e pedir para que não pagassem nada a mais.
A GM deixou de vender pela falta de veículos, e a Fiat alavancou as vendas do seu modelo popular, o Uno Mille. Outros fabricantes também lançaram seus modelos básicos com motor 1,0 e todo mundo foi muito feliz por um bom tempo.
Mas não demorou para a sanha arrecadadora do novo governo instalado em 01/01/1995 (Fernando Henrique Cardoso) fazer com que o IPI de 20% voltasse a ser cobrado nos carros populares, o PIS/Cofins teve aumentos, o ICMS também foi majorado em alguns estados até chegarmos ao cenário atual em que cerca de 46% do valor pago por um automóvel são impostos. Se considerarmos que o cidadão com emprego formal paga até 27,5% de imposto de renda sobre sua remuneração para ter o montante da compra do carro, o imposto embutido no valor do veículo é bem mais alto.
Em que pese o aumento da carga tributária dos últimos 20 anos, as novas regulamentações de emissão de gases e segurança também encareceram os veículos. Muitos motores precisam ter injeção direta — o Onix é exceção — e catalisadores com maior carga de metais preciosos para atender os requisitos. Os tanques e linhas de combustível precisam de tratamento especial, os freios com ABS são obrigatórios, assim como as bolsas infláveis. Itens inexistentes nos carros de 1994 e que ninguém gostaria de remover.
As regras anunciadas pelo governo federal no dia 25 de maio passado e complementados no dia 5 de junho ainda não estão totalmente claras, mas o objetivo de ter veículo popular no valor entre R$ 50 mil e R$ 60 mil é utópico, pois mesmo com a redução máxima de R$ 8 mil já anunciada, os veículos mais baratos da atualidade, Renault Kwid e Fiat Mobi, custando R$ 69 mil, passariam a valer na casa dos R$ 61 mil. Somente com os descontos adicionais dos programas PCD – pessoa com deficiência – poderia trazer o preço desses veículos à faixa projetada pelo governo.
A remoção de alguns itens de conforto, como direção com assistência elétrica, vidros e espelhos elétricos e até mesmo o uso de revestimento interno mais simples poderiam ajudar a baixar o preço final dos carros para a faixa pretendida pelo governo. Mas o próprio governo, na voz do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anuncia que esse programa terá um limite de R$ 500 milhões para automóveis, o que corresponde a cerca de 100 mil unidades a serem vendidas. Volume equivalente a dois meses de vendas de carros abaixo de R$ 120 mil.
A pergunta inevitável é: qual o interesse de um fabricante em modificar os veículos existentes para atender a um anseio governamental que não irá durar mais que alguns meses?
A falta de semicondutores durante a pandemia obrigou os fabricantes a adotarem estratégias inovadoras para manter suas margens de lucro, e com isso houve priorização em veículos topo de gama, que apesar de vender menos proporcionam maior lucro e, com isso, foi possível pagar seus custos operacionais. Que não são baixos.
Parece fácil, mas a modificação de um veículo existente, por mais simples que seja, envolve muitas horas de trabalho de engenheiros para consolidar as novas especificações. Protótipos físicos têm que ser construídos para execução de testes de validação, tanto nos componentes individualmente, quanto montados em veículos. Novos ferramentais precisam ser construídos pelos fornecedores de peças e os operários precisam ser treinados para que a montagem na linha seja feita dentro dos padrões de qualidade.
Pelo lado burocrático também existe uma demanda de tempo, pois novos contratos de fornecimento de peças têm que ser gerados, novas negociações de preços ocorrerem entre os fornecedores e os fabricantes, o preço final do carro tem que ser recalculado. Enfim, são vários departamentos que precisam trabalhar em conjunto para que as modificações cheguem no final da linha de montagem. Sem contar que essas reduções variáveis por regras progressivas aumentam ainda mais o tão complicado sistema tributário das empresas.
Aqui aparece outra dúvida: qual a data de implantação da nova regra do carro popular? Será que os fabricantes teriam tempo de finalizar esse processo antes que o programa acabe? Não se sabe.
Se as alterações nos modelos existentes diminuírem ou amentarem o peso dos carros, um novo processo de certificação é requerido, com diversos testes de emissões e consumo, o que novamente consome tempo e recursos dos fabricantes. Se um novo nome ou sobrenome for dado ao carro, será exigido também um tempo adicional para os tramites burocráticos junto aos órgãos governamentais para obtenção das licenças ambientais, documentos imprescindíveis para que o veículo tenha o Renavam.
Para a maioria dos consumidores o que interessa é o preço mais baixo que o governo vem sinalizando há praticamente um mês, e que até agora não se materializou. A expectativa fez com que o mês de maio sofresse uma queda brutal de vendas. Conforme apuração do site Motor1, foi o pior mês desde 2016, com volumes inferiores aos meses de 2020 em plena pandemia. Afinal, estão todos os consumidores, lojistas, concessionários e fabricantes esperando as novas regras e ninguém quer vender ou comprar com medo de perder dinheiro. Um pesadelo até para o governo que ficou sem arrecadação neste período, e o mês de junho não deve ser diferente. A conferir.
GB