Vencer a 24 Horas de Le Mans é uma das maiores glórias do automobilismo, e os principais fabricantes de automóveis do mundo todo utilizam esta corrida como vitrine e laboratório há quase um século. Um construtor que conquista a vitória em Le Mans é eternizado, alguns passam até a heróis nacionais.
Em 1991, a Mazda conseguiu a incrível vitória com o lendário 787B de motor Wankel de quatro rotores. Foi a única vitória de um carro japonês na história das 24 Horas, bem como o único com motor que não usa pistões convencionais. A Toyota retornou à categoria principal nos últimos anos para tentar entrar no seleto grupo de vencedores, unindo-se à Mazda, mas ainda sem sucesso perante os alemães da Audi. Na época da vitória da Mazda, a Nissan já disputava as 24 Horas de Le Mans e o campeonato mundial de endurance (resistência). Com alguns bons resultados como a vitória nas 24 Horas de Daytona de 1992, a Nissan não conseguiu chegar na mesma marca da rival Mazda, e abandonou a categoria.
Agora é a vez da Nissan tentar novamente a vencer em Le Mans, e com um dos carros mais controversos de todos os tempos. Le Mans sempre foi uma corrida para experimentação. O próprio Mazda foi uma experiência bem-sucedida, com a tecnologia do motor Wankel. A Audi dominou os últimos anos, desde o R8 com o primeiro motor a gasolina vencedor equipado com injeção direta de combustível, passando pelos modelos com motor diesel e agora com os híbridos. Há liberdade de criação no regulamento.
Tamanha a liberdade que vimos o nascimento do revolucionário DeltaWing, que já comentamos aqui no Ae, um carro que mais parece o cruzamento do Batmóvel com um carro de recorde de velocidade de Bonneville. E quem diria, o líder do projeto do novo Nissan é o mesmo homem que idealizou o DeltaWing, Ben Bowlby. A AAR, que também fabricou o DeltaWing, foi novamente a responsável por colocar em prática as idéias controversas de Bowlby.
O Nissan GT-R LM NISMO (nome oficial do carro) é algo que choca os olhos e confunde a mente. Anos e anos de carros similares foram quebrados com um protótipo de motor dianteiro. Não é exatamente uma novidade, pois os Panoz dos anos 2000 já tinham motor dianteiro e era um carro que brigava de igual para igual com os concorrentes e conseguiu até um quinto lugar em Le Mans e um título de construtores. O que realmente não se esperava era que o GT-R LM tivesse tração dianteira. Sim, tração dianteira.
Assim como no DeltaWing, o Nissan foi projetado para ser o mais eficiente e equilibrado possível, e a equipe de projetos entendeu que poderia ser extraído melhor rendimento aerodinâmico com esta configuração de motor dianteiro. Qual a vantagem do motor dianteiro? Liberdade para se criar um perfil aerodinâmico livre de interferências de componentes mecânicos do centro para a traseira do carro. Em um carro com motor central, muito espaço é ocupado pelo motor e seus componentes, e a carroceria deve contornar todos eles, o que restringe as possiblidades de formas e desenhos possíveis.
O motor colocado na dianteira deu liberdade para que o carro fosse melhor aproveitado, mais ou menos como os antigos carros da era do efeito-solo nos anos 1980, porém sem o uso descarado dos extratores gigantes e dos túneis de ar em forma de venturi sob o carro. A principal premissa para o desenho da carroceria foi aproveitar o máximo da aerodinâmica do carro, e com o motor na frente, do centro do carro para trás, há apenas o cockpit, que é estreito e curto, então puderam fazer grandes passagens livres de ar ao redor dele. Como os pneus traseiros são estreitos, não há necessidade de largas carenagens para cobri-los, então canais maiores podem ser feitos.
A carroceria, por regulamento, tem dimensões máximas externas (largura, comprimento e altura), mas há pouca coisa restringindo o desenho “interno”, como as passagens de ar e os dutos de ventilação ao redor do cockpit. Esta é a abertura técnica para que carros assim sejam projetados. O Nissan tem uma carroceria como se fosse feita em camadas, e o segredo do bom fluxo de ar estão nas camadas intermediárias, ou seja, entre os painéis externos superiores e o assoalho. Vejam como a parte de cima ao redor do cockpit parece ser plana, justamente para trabalhar nas áreas internas e ter espaço para melhorar o fluxo interno.
Também é possível que o Nissan GT-R LM, por ter motor dianteiro, use esta característica a favor de outra forma, com o aproveitamento da posição do escapamento. Assim como os famosos blown diffusers da F-1, onde os gases de escape afetavam diretamente a eficiência do extrator e da asa traseira por conta da saída do escapamento ser posicionada de forma calculada perto destes componentes, os escapes do GT-R podem ser usados de forma similar, mas não no extrator traseiro, e sim na região central do carro. Posicionados sobre o capô e levemente deslocados para as laterais, é um grande indício que isto realmente foi feito.
Nos protótipos modernos, a geração de força aerodinâmica basicamente ocorre por meio da asa traseira e do assoalho. Pouca força é gerada na dianteira, pois apenas as passagens de ar no splitter (defletor dianteiro) e no assoalho dianteiro podem gerar downforce, uma vez que não é permitido o uso de asa dianteira. O motor dianteiro do GT-R aumenta o peso estático nas rodas dianteiras, aumentando assim a carga nos pneus. Isso melhora a capacidade de fazer curvas mais rápido, e o resto do carro gera o downforce necessário para aumentar ainda mais esta força, e a aderência do eixo traseiro.
A parte do motor em si não possui tantas novidades. É um V-6 de 3 litros biturbo a gasolina, similar ao do GT-R de rua. O sistema híbrido ajuda a tracionar as rodas com uma potência que combinada com o motor a gasolina pode chegar a incríveis 1.500 cv, sendo que o plano inicial era chegar nos 2.000 cv, mas limitações impediram este número. Quem diria que um dia os monstros de mais de 1.000 cv voltariam à Le Mans…
A grande questão é como colocar toda essa potência no chão com um carro basicamente de tração dianteira. Por maiores que sejam os pneus dianteiros, eles ainda precisam esterçar o carro para os lados, o que já dificulta em muito seu trabalho. Na verdade, o carro tem uma preparação para receber uma parte do torque também nas rodas traseiras, mas com uma distribuição bem mais deslocada para a dianteira. Tanto é que os pneus dianteiros são mais largos que os traseiros, bem mais largos.
A preocupação com a aerodinâmica foi tão grande que um sistema bem complexo foi feito para que o torque chegasse nas rodas traseiras. A posição do conjunto motriz é a seguinte, de frente para a traseira do carro: os radiadores montados perto do bico do carro, depois vem a transmissão (transeixo fabricado pela Xtrac) que é estrutural para a suspensão dianteira e sistema de direção, seguida pelo motor. A transmissão é acionada por um pequeno eixo que passa pelo centro do motor, pois a saída convencional está virada para trás, onde recebe um cardã que vai até a traseira do carro.
A complexidade vem agora. O cardã chega em um diferencial central, montado mais alto que o centro das rodas, e dele saem duas semi-árvores, também altas, para duas caixas de transferência reduzidas também mais elevadas, uma de cada lado do carro perto das rodas, e destas caixas saem duas pequenas semi-árvores para as rodas. Tudo isso para não passar as duas semi-árvores convencionais pelos grandes dutos aerodinâmicos da carroceria.
Será que toda essa engenhoca vale a pena? São peças complexas e pesam mais que um par de semi-árvores longas. E sempre existe o problema de quanto mais componentes mecânicos no carro, mais coisas para quebrar durante a corrida. Com certeza o carro já foi pensado para ter este sistema, então o peso deles já fazia parte da conta, e o peso total do carro deve estar dentro do esperado. A distribuição de peso também foi calculada contemplando estes itens. O arrasto aerodinâmico que as semi-árvores convencionais criariam dentro dos dutos de ar seria grande, imagine segurar um cabo de vassoura para fora da janela de um carro a 300 km/h. Não sei se realmente justifica a complexidade extra criada, mas, não é de se considerar.
O sistema de armazenamento de energia é do tipo inercial, ou seja, com um volante que recebe a energia recuperada e a acumula em forma de energia cinética, com movimento de rotação. Quando exigido, esta energia cinética de rotação é convertida em energia elétrica, enviada aos motores auxiliares. Este sistema é feito pela Torotrak e é chamado de Flybrid, de flywheel (volante). A Nissan está optando pelos sistemas de maior acumulação de energia permitido pelo regulamento, os sistemas entre 6 e 8 MJ. Com isso, mais energia recuperada é utilizada.
Mas a tração dianteira funciona? Sim. Se balanceada com o resto do carro, sim. É a mesma teoria que usaram no DeltaWing. Se a carga atuando estiver adequada com as características do pneu, o carro funciona. Assim foi possível que o DeltaWing utilizasse os pequenos pneus dianteiros e fosse bom de curva. A dificuldade da tração dianteira é conciliar a tração com a direção, mas como o peso do GT-R LM está bem concentrado no eixo dianteiro e os pneus foram dimensionados para receber os dois esforços, o equilibrio do carro e do centro de pressão aerodinâmica devem fazer com que os pneus suportem a carga e façam bem seu trabalho. Mas ainda há a possibilidade de corrigirem algum possível problema com a tração traseira, em menor proporção de atuação que a dianteira.
A pergunta agora é se esse conceito tão radical funciona. Não deve ser ruim, afinal a Nissan está investindo pesado no carro e que vai disputar o campeonato completo, ao que tudo indica. Se o carro não fosse pelo menos competitivo, não estariam com tanta propaganda e entusiasmo. Nos dias 27 e 28 de março haverão os primeiros treinos oficiais do campeonato de 2015, em Paul Ricard, e em 12 de abril teremos a 6 Horas de Silverstone. Dificil eles acertarem logo de cara, pois a bagagem de Audi, Toyota e Porsche são grandes e um carro novo e com recursos tão diferentes requer tempo de pista para ficar competitvo, mas espero que tenham bons resultados. Veremos.
MB