Antes de entrar no assunto propriamente dito, um pouco de história.
Na década de 1980 o carro a álcool, surgido em 1979, vingou, como se diz. Em 1988 foram licenciados 492.642 a álcool contra 65.698 a gasolina (fonte: Anfavea). Ninguém, absolutamente ninguém se incomodava com o fato de só poder usar esse combustível. Tanto que o Escort XR3 logo passaria a ter versão a álcool apenas.
Mas a grande falta de álcool no último trimestre de 1989 mudou esse quadro. No ano foram 345.658 x 222.571. O ano de 1990 cheio mostrou mudança no jogo, que virou, só 70.250 a álcool x 463.464 a gasolina. Passado e “esquecido” o susto, em 1991 o álcool deu sinais de recuperação, 129.139 x 474.069.
Mas foi “voo de galinha”, pois apesar de licenciados 164.840 carros a álcool em 1992, os a gasolina pouco recuaram e daí para frente só cresceram, enquanto os a álcool iniciaram uma queda da qual nunca mais se recuperaram, ao mesmo tempo em que os veículos a gasolina ultrapassavam pela primeira vez a marca de milhão/ano em 1994. A tabela abaixo mostra bem isso.
Todavia, foi foi um fator externo sepultou o álcool. No segundo semestre de 1995 os preços internacionais do petróleo despencaram e seus derivados ficaram bem mais baratos, mas o preço do litro do álcool, não. De repente ficou antieconômico rodar com álcool. Tornou-se normal “reconverter” os motores a álcool para gasolina ajudado pela gasolina que deste 1982 era de 95 octanas RON com 12% de álcool. O governo FHC, desesperado, determinou que carros adquiridos para uso oficial fossem exclusivamente a álcool.
Houve um pequeno repique de vendas de carros a álcool em 2001 e 2002, mas insignificante diante do carros a gasolina, que navegavam serenos sempre bem acima do milhão por ano.
LICENCIAMENTOS DE CARROS A ÁLCOOL, GASOLINA E FLEX | ||||
ANO | ÁLCOOL | GASOLINA | FLEX | |
1988 | 492.642 | 65.698 | — | |
1989 | 345.658 | 222.571 | — | |
1990 | 70.250 | 463.464 | — | |
1991 | 129.139 | 474.069 | — | |
1992 | 164.840 | 434.173 | — | |
1993 | 227.289 | 679.685 | — | |
1994 | 119.203 | 1.013.410 | — | |
1995 | 32.808 | 1.381.192 | — | |
1996 | 6.333 | 1.421.342 | — | |
1997 | 924 | 1.599.517 | — | |
1998 | 982 | 1.239.804 | — | |
1999 | 9.851 | 1.023.240 | — | |
2000 | 9.610 | 1.191.685 | — | |
2001 | 14.979 | 1.299.795 | — | |
2002 | 47.366 | 1.181.780 | — | |
2003 | 33.034 | 1.046.474 | 39.095 | |
2004 | 49.801 | 967.235 | 278.764 | |
2005 | 30.904 | 646.659 | 752.597 | |
2006 | 1.651 | 233.440 | 1.334.342 | |
2007 | 90 | 233.240 | 1.834.259 | |
2008 | 70 | 206.815 | 2.113.289 | |
2009 | 61 | 210.281 | 2.416.111 | |
2010 | 44 | 264.330 | 2.570.578 |
Fonte: Anfavea
O prejuízo do carro flex
Se ninguém achava ruim ter que ficar “preso” a um só um combustível no seu, carro, a exemplo de quem possui carro a diesel, qual a necessidade do carro flex? Em minha opinião foi um caso típico de macaquice de imitação. Se os Estados Unidos já o tinham desde 1993, por que não o termos aqui também?
Mas não pode ser descartada a hipótese de marketing da indústria do álcool pela Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar) para vender mais álcool, comprovado pela coassinatura na propaganda do primeiro carro flex, o Gol 1,6 Total Flex em março de 2003.
Que fique claro: considero o flex um tecnologia admirável desenvolvida aqui pela Bosch e pela Magneti Marelli, esta a primeira a dotar um carro com flexibilidade em combustível (o Gol citado acima), capaz de funcionar com gasolina comum e álcool etílico hidratado carburante, puros ou misturados em qualquer proporção.
Mas o cerne da questão é: para quê carro flex no Brasil se não necessitávamos? Os EUA sim, pois a utilização desse álcool aliviaria a pauta de importação de petróleo de uma região conturbada como o Oriente Médio que já chegava a 60% das necessidades do país, portanto uma questão de segurança nacional. O governo americano criou incentivos à produção de álcool de milho nos estados do Meio-Oeste para haver álcool no volume necessário para substituir a gasolina (a frota americana supera 280 milhões de veículos entre automóveis e picapes). O programa foi um sucesso tal que hoje são produzidos lá anualmente 59 bilhões de litros do produto, primeiro produtor mundial, seguido do Brasil com 31 bilhões de litros.
Tiveram que criar o flex lá para que nenhum consumidor se visse com dificuldade em achar álcool, quando poderia reabastecer com gasolina. Cenário completamente diferente do nosso, todos os postos do Brasil tinham álcool. já há um bom tempo, desde 1982.
O prejuízo causado pelo flex foi o desenvolvimento de motores a álcool não poder ir aos limites das características do álcool, que está subutilizado. como bem disse Boris Feldman na sua coluna ontem. Teríamos motores a álcool mais potentes e sobretudo frugais em combustível.
Com o estado da arte do gerenciamento eletrônico dos motores é perfeitamente possível um modo automático de uso de gasolina com pequena redução de potência, ninguém ficaria parado em caso de eventual falta de álcool. Perdemos isso “graças” ao flex, que precisa ter o motor capaz de ser flexível em combustível.
Para ser franco, motor flex só tem uma vantagem: se o frentista reabastecer com combustível diferente do solicitado, como nos carros a álcool que tivemos durante 24 anos. é desnecessário retirá-lo.
Uma simples questão de preço
Feitas as contas, o preço médio do litro da gasolina comum sem álcool (E0) nos EUA é 6,25 reais (fonte: gasprices.aaa.com). A E10 custa R$ 4,45 e a E15, R$ 4,14. (fonte: e95 prices.com). Portanto, a mistura com álcool (de milho) nessas porcentagens barateia a gasolina comum de lá em, respectivamente, 28,8% e 33,7%.
O preço médio da gasolina brasileira é R$ 6,34 (fonte: Petrobrás), enquanto o do álcool hidratado à venda nos postos é R$ 4,13 (fonte: ANP), 34,8% menos. Isso com nossa gasolina regulamentada E27, praticamente igualando-se ao preço menor nos EUA referente à gasolina E15.
Desse modo, é correto afirmar que estamos sendo roubados pelo menos desde fevereiro de 2016 e que com gasolina E30 e E35 o “futuro” nos reserva roubo ainda maior. Roubo no preço, sem contar outro, o inevitável maior consumo resultante da “brasilidade”.
BS
A coluna “O editor-chefe fala” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.