No começo de 1997, editor de testes e técnica da revista Autoesporte, fui convidado a integrar um júri internacional que escolheria o Carro do Século 20. Lá fui para a primeira reunião dos 200 jornalistas em Amsterdã, ocasião, inclusive, em que tive o prazer de conhecer pessoalmente meu “guru jornalístico-automobilístico”, o belga Paul Frère. Nessa reunião foram definidos os 2oo carros indicados pelo comitê organizador, cabendo-nos, de nossos países, posteriormente, indicar os finalistas, que eram para ser 25 mas acabaram sendo 26.
Mas nesse ínterim acabei entrando para a GM e tive que renunciar ao júri, por motivos óbvios, conflito de interesses. Entretanto, eu já feito a minha escolha de carro do século 20: o Jeep Willys. Foi o veículo que trouxe a tração nas quatro rodas ao mundo, criou o off-road, dono de uma simplicidade notável e, claro, exerceu papel fundamental na Segunda Guerra Mundial servindo às forças dos Aliados. Foram produzidos pela Willys-Overland e pela Ford cerca de 650.000 Jeeps, contra apenas 55.000 VW Kübelwagens. As tropas alemãs, nas frentes de batalha, ficavam assoberbadas com tanto Jeep, tinham impressão que era um para cada soldado dos Aliados.
Mas não era essa a opinião da maioria e quem acabou levando o título foi o Ford Modelo T, seguindo-se Mini, Citroën DS, Fusca e Porsche 911, que com certeza absoluta mereceram as outorgas, mas entre os cinco eu coloco o Citroën DS no topo dessa lista.
O que este francês trouxe de inovação ser lançado no Salão de Paris de 1955 é de impressionar. Causou furor, não havia nada parecido no mundo, do estilo às soluções mecânicas. No primeiro dia a fábrica recebeu nada menos que 12.000 pedidos! O motor de quatro cilindros e 1.911 cm³ (78 x 100 mm), 75 cv, de comando no bloco e virabrequim apoiado em três mancais era o único item datado no novo carro, vinha do Citroën 11, modelo que conviveria com o DS 19 por mais dois anos, encerrando uma carreira de 23 anos.
O motor era dianteiro, mas levando o conceito dianteiro-central ao extremo. Como no 11, o transeixo era dianteiro. Seu porte era de carro médio, com 4.800 mm de comprimento e entreeixos de 3.125 mm. Tinha colunas dianteiras delgadas com pára-brisa curvo de flecha grande e teto era de compósito de fibra de vidro, tanto para fins de isolamento térmico quanto para pouca massa elevada. Os espaço no banco traseiro era descomunal, coisa de limusine, e o assoalho absolutamente plano contribuía para a sensação de “salão” para os ocupantes sentados em bancos cujas molas eram espuma de poliuretano da baixa densidade, bastante confortáveis, Os vidros da portas não tinham molduras e o Cx era bem baixo para a época, apenas 0,34. Seu porta-malas era imenso, 500 litros, e o tanque também, 65 litros.
Sua suspensão era hidropneumática, com uma esfera contendo fluido hidráulico e nitrogênio em cada suspensão, que era independente, que servia como mola e amortecedor. O sistema era todo interligado e por isso mantinha o carro nivelado com qualquer carga a bordo, além de reduzir a inclinação nas curvas um mínimo.
O motorista podia ajustar a altura de rodagem em três níveis e o mais alto deles, além de permitir trafegar sobre piso muito irregular, servia para trocar um pneus furado, em que se levantava a suspensão, colocava-se um pequeno calço fornecido próximo da roda a ser tirada, e comandava-se a suspensão para que baixasse, ficando a roda em questão no ar. As rodas tinham fixação central e para remover uma traseira era preciso remover o pára-lama, o que era fácil, bastando soltar um parafuso.
O câmbio de quatro marchas era manual, mas o comando, com alavanca na coluna, era hidráulico. Não havia pedal de embreagem, esta era automática, mas havia um pequeno pedal bem à esquerda, que era o freio de estacionamento. Esta agia sobre as rodas dianteiras e seu travamento podia ser desativado, servindo como freio de emergência — a pedal!
Inovação também nos freios: os dianteiros eram a disco, o que acontecia pela primeira vez num carro produzido em série, e eram internos, junto à saída das semi-árvores de tração, maneira de reduzir o peso não suspenso. O acionamento do freio era por botão, não pelo ortodoxo pedal, em que a modulação era obtida apenas pela pressão sobre o botão no assoalho, no lugar aproximadamente o mesmo do que seria o de um pedal.
A suspensão independente era por braço empurrado na frente e braço arrastado atrás, e a geometria de direção era de raio de arrasto zero, nem positivo, nem negativo. O volante de direção tinha um só raio, que a fábrica clamava ser menos invasivo e por isso protegeria o tórax do motorista numa batida frontal. Outro traço característico do DS 19 a diferença entre as bitolas dianteira e traseira, 1.500 e 1.300 mm. As rodas eram métricas, de 400 mm de diâmetro, o que corresponde a 15,75 polegadas. Os pneus eram exatamente da mesma medida do FNM 2000 JK, 165-400.
Os indicadores direção traseiros eram localizados no alto das colunas traseiras, bastante visíveis. Um ponto alto do DS 19 era a manobrabilidade, com diâmetro mínimo de curva de apenas 11 metros — a mesma do Fusca — apesar do enorme entreeixos. O ângulo de esterçamento das rodas era incrível, graças ao emprego de duas juntas universais em série, que embora fosse solução custosa, anulava a oscilação de aceleração ora positiva, ora negativa, como vimos na matéria sobre juntas homocinéticas.
O Ds 19, pela limitação do motor, nunca foi considerado um carro rápido. Com 75 cv a 4.500 rpm e 14 m·kgf a 3.000 rpm, mesmo pesando relativamente pouco, 1.170 kg, acelerava de 0 a 100 km/h em 21 segundos mas chegava a 144 km/h por conta de sua boa aerodinâmica.
Houve evoluções de motor e outras versões de carroceria, como conversível e perua. Em abril de 1975, depois de 1.456.115 unidades produzidas, o Citroën DS passou à história. Mas deixou um legado de avanço tecnológico inigualável até hoje.
BS
Fotos: citroenmuseum.com, exceto onde informado o contrário