A bela e destemida piloto brigava pelo segundo lugar no Grande Prêmio de São Paulo de 1936, num circuito de rua no bairro dos Jardins, quando ocorreu o desastre a 145 km/h. O carro de Hellé Nice bateu nos fardos de proteção e se lançou contra a multidão de espectadores, matando seis e ferindo mais de trinta. Era o começo do fim de uma gloriosa carreira que a havia tirado da pobreza para torná-la uma das mais famosas pilotos de corrida do mundo.
Ela nasceu Mariette Hélène Delangle em 1900 em Aunay-sous-Auneau, uma pequena cidade a sudoeste de Paris, e seu pai, chefe de uma agência dos correios, morreu quando ela tinha apenas três anos. No início dos seus 20 anos, tendo adotado o nome Hellé Nice, trabalhou como dançarina de cabaré fazendo striptease e como modelo para fotos pornográficas, em que conseguia dinheiro pagar aulas de balé formal e que acabou por levá-la a trabalhos mais sérios. Entre seus namorados estavam Henri de Courcelles e Marcel Mongin, ambos pilotos de corrida amadores que cultivaram nela seu entusiasmo por velocidade e perigo. Á medida que crescia seu desejo de aventura, crescia também sua condição de vida. Em 1927, sua atuação junto ao super-astro Maurice Chevalier no grande espetáculo Les Ailes de Paris acabaria por lhe trazer fama e fortuna.
Quando um acidente esquiando encerrou sua carreira na dança alguns anos depois, ela abraçou outra linha de trabalho, graças a Henri e Marcel. Ela chegou às pistas e cativou o público com sua coragem e habilidade, rapidamente angariando patrocinadores. Em junho de 1929, ao volante de um Oméga-Six, Hellé Nice venceu o inaugural Grande Prêmio Feminino no circuito de Montlhéry tornando-a um grande nome da noite para o dia e levando o conhecido projetista de automóveis Jean Bugatti a lhe oferecer um Type 43A, o carro que era o sonho dos adolescentes. Quando correu com ele na semana seguinte, ela não só venceu mas também estabeleceu novo recorde de velocidade, a primeira vez que era conseguido por um piloto mulher. Um série de sucessos se seguiu e durante vários anos ela tomou parte no automobilismo do mais alto nível., correndo, entre outras provas, 78 grandes prêmios.— à época, como hoje, a categoria-topo do automobilismo e sem dúvida a mais perigosa.
Hellé Nice preferia viver sua vida em alta velocidade também. Namorou muito e conquistou muitos amantes, incluindo vários aristocratas — o mais conhecido o Barão Philippe de Rothschild, freqüentador dos autódromos. Ela se tornou também o rosto dos cigarros Lucky Strike e da gasolina Esso, usando o dinheiro ganho para comprar um luxuoso Hispano-Suiza e um iate de 72 pés. Mas a despeito de todo o deslumbre e glamour, ela era também bastante tenaz e ambiciosa diante da discriminação contra a mulher. “É tudo o que quero, mostrar o que consigo fazer, sem handicap, diante dos homens.”, disse à publicação L’Intrangiseant em 1930. “Ela tinha que lutar por seu lugar num mundo totalmente masculino, e ela o fazia com orgulho, inteligência e charme,” disse Miranda Seymour, autora de A Rainha da Bugatti: Em Busca de Uma Lenda Francesa nas Competições.
Mas, em 1936, começando com o acidente na corrida no Brasil, as coisas começaram a desandar para ela. Nenhum fabricante contrataria um piloto que tinha sofrido ferimentos graves na cabeça. Três anos depois, Jean Bugatti, seu amante e benfeitor, morreu quando testava um protótipo. Em seguida eclodiu a Segunda Guerra Mundial e vieram os horrores da ocupação alemã na França. Depois da guerra, Hellé Nice pretendia relançar sua carreira no Rali de Monte Carlos de 1949, mas na noite véspera da prova, o piloto monegasco Louis Chiron, talvez com inveja da fama de Hellé Nice, denuncio-a publicamente com tendo sido espiã da Gestapo, a polícia secreta alemã. Ela negou veementemente a acusação, mas o dano estava feito e conseguir um patrocinador tornou-se impossível. Miranda Seymour foi atrás da injuriosa denúncia e nada encontrou que a implicasse. “A coisa toda parou,” disse ao site OZY. “Tivesse ela sido uma colaboradora seu nome estaria registrado em algum lugar, em algum documento, mas não havia nada.”
Em 1960, o amante de Hellé Nice, muito mais jovem do que ela, abandonou-a por outra mulher. Na ocasião ela havia vendido seus bens para poder pagar o aluguel e dependia da ajuda da La Roue Torne (A Roda Gira), um instituição de caridade para atores que não tinham trabalho mais. Aos 75 anos se mudou para um velho sótão num zona decadente de Nice. Miranda Seymour visitou um de seus vizinhos, que se lembravam de ver a velha mulher “tirando o leite das tigelas dos gatos por nada ter que comer ou beber.”
A iconoclasta, pioneira da igualdade entre homens e mulheres, e detentora de oito recordes mundiais de velocidade, morreu na miséria em 1984. Devido ao seu estilo de vida totalmente fora do padrão, ela foi deserdada por sua mãe e impedida por sua irmã. Totalmente esquecida, foi sepultada num túmulo sem lápide no centro-norte da França. A Fundação Hellé Nice, criada 25 anos depois, instalou uma placa memorial no seu túmulo e está trabalhando para recuperar sua reputação, com planos de angariar patrocínios oferecidos por empresas a mulheres que planejam seguir carreira no automobilismo.
BS
Texto baseado em “The rise and fall of a racetrack queen” (A ascensão e queda de uma rainha das pistas), de Mike Macdowall, publicado no site OZY (www.ozi.com) em 7/08/15.
Outras fotos: thegridgirls.com e thehellenicefoundation,blogspot.com