Ao longo de toda a história das 24 Horas de Le Mans, a Porsche é a grande vencedora. Foram nada menos que dezessete vitórias, quatro a mais que a Audi, a segunda maior vencedora da corrida francesa. Quando falamos de vitória na corrida, é na classificação geral, pois dividindo-se pelas diversas categorias foram bem mais.
A precisão e a qualidade da engenharia alemã são inquestionáveis. O grau de comprometimento não só da equipe e dos pilotos, mas da própria fábrica apoiando o desenvolvimento dos carros, é um dos pontos fortes, algo que ajuda a impulsionar todo o time para frente. Até mesmo nas propagandas dos carros de rua a Porsche relaciona seu sucesso nas pistas.
Anos e anos de experiência e constante aprimoramento, além de muita disciplina e objetivos claros e definidos, transformaram a Porsche em uma das grandes potências mundiais do automobilismo, em especial nas provas de longa duração. Ao longo de sua história a Porsche sempre foi vitoriosa nas categorias que disputou.
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O começo: do 356 ao 908
O primeiro Porsche a participar das 24 Horas foi o modelo 356 SL (SL de Super Light) em 1951, e já na estréia venceu a categoria de carros com motores até 1,1 litro. O pequeno 356 com carroceria feita de alumínio e com motor traseiro arrefecido a ar era resistente e confiável, marca registrada dos Porsches. No ano seguinte, nova vitória na categoria até 1,1 litros e 11° na geral novamente com o 356 SL. Em 1953, o lendário modelo 550 Spyder apareceu e conquistou primeiro e segundo lugares na categoria para carros até 1,5 litro.
Neste ponto, uma divisão de modelos foi feita. Na verdade não foi uma imposição, mas acabou acontecendo naturalmente. O 550 tinha motor central, enquanto que o 356 tinha o clássico motor traseiro, ambos boxer de quatro cilindros. Podemos dizer que o 550 iniciou a linhagem dos Porsches de motor central e o 356, a dinastia dos motores traseiros, que seguiu até hoje com o 911.
Até o fim dos anos 1960, a Porsche foi muito participativa e vencedora nas categorias de motores menores. Os 356 SL já não eram mais competitivos no fim dos anos 1950 e foram substituídos pela Porsche por carros de motor central, como o 550 A e o novo 718 RSK. A construção dos carros era feita para tirar o máximo proveito do motor boxer, curto e bem compacto, que permitia o desenho de carrocerias baixas e bem aerodinâmicas, com boa distribuição de peso entre os eixos dianteiro e traseiro.
Em 1960, o 356 voltou à cena com o auxílio da austríaca Abarth, em uma parceria que resultou no modelo 356 B Carrera Abarth GTL de motor 1,6-litro, vencedor da categoria. Este carro foi a prova de que ainda era possível extrair bons resultados do chassi do 356 e seu motor traseiro. Uma das grandes vantagens desta configuração é a boa capacidade de tração, uma vez que o peso do motor atrás do carro ajuda a colocar mais carga vertical nos pneus traseiros, fazendo com que perdessem menos aderência em saídas de curva. Fora que a transferência de peso para frente no momento de frear é bem menos crítica do que nos carros de motor dianteiro, resultando em forças de frenagem nas quatro rodas mais equilibradas.
Os pequenos carros de motor central de quatro cilindros da Porsche evoluíram para o 904, já vistos como modelos protótipo, projetados para competição e com poucas unidades de rua apenas para cumprir questões de homologação. Agora a categoria 2-litros tinha a Porsche como uma das mais fortes competidoras. Variações de quatro, seis e oito cilindros equiparam o 904, conhecidos como 904/4, 904/6 e 904/8 respectivamente. Dupla ignição e duplo comando de válvulas equipavam os motores do 904, feitos em totalmente alumínio e magnésio.
A construção de chassi tubular era comum na época, mas a Porsche optou por uma estrutura de aço estampado para o 904, formando o chamado box frame. A carroceria de compósito fibra de vidro foi a primeira utilizada em produção seriada pela Porsche, fabricada na Heinkel, empresa de aviões alemã, conhecia pelos bombardeiros da 2ª Guerra Mundial, justamente para atender à necessidade do volume mínimo de produção para homologação. A suspensão veio do carro de F-1 que a Porsche desenvolvera na época.
O envolvimento de Ferdinand Piëch, neto do Prof. Porsche, nos carros de corrida da marca começou com o 906 no ano de 1966. Voltando a usar chassi tubular, o motor central flat-6 e novas linhas de carroceria mais aerodinâmicas feitas especialmente para aproveitar bem as longas retas de Le Mans logo surtiram efeito. Nos anos seguintes, o modelo 907 e 908 vieram como evoluções dos modelos anteriores, e a cada novo modelo, as falhas eram sanadas e os pontos positivos, fortalecidos. O modelo 911 também entrou em cena. A distinção entre protótipos e GTs estava consolidada, e era de grande interesse da Porsche ter carros nas duas categorias.
A cada ano, a Porsche foi mudando o foco de ser dominante nas categorias de carros com motores menores para disputar a vitória na classificação geral. Com motores cada vez maiores e carros cada vez mais rápidos, era uma questão de tempo até a fábrica de Stuttgart vencer em Le Mans.
O 917
O grande trunfo seria o modelo 917 L e seu potente motor central de 12 cilindros e 4,5 litros. Quase 500 cv de potência em um chassi tubular e uma carroceria de plástico baixa e com boa penetração aerodinâmica viriam a ser a receita do sucesso. Em 1969, os 917 L foram rápidos, lideraram a corrida mas quebraram. Entretanto, um 908 quase venceu o Ford GT40 de Jacky Ickx por uma mísera diferença de poucos segundos na última volta.
A estabilidade do 917 L de carroceria longa era ruim. Acima de 300 km/h o carro ficava com o que se chama de traseira leve, ou seja, a parte traseira é levantada por conta da aerodinâmica e os pneus perdem parte da carga sobre o solo, prejudicando o controle do carro. Mesmo com problemas de dirigibilidade, o novo motor de 12 cilindros era ótimo, o mais potente que a Porsche fabricara até então. Duplo comando de válvulas acionado por engrenagens e dupla ignição garantiam o rendimento do motor a altas velocidades, primordial para o sucesso em Le Mans.
Para acomodar o enorme motor, um novo chassi foi feito a partir dos conceitos desenvolvidos no 908. Uma curiosa solução para controlar a integridade do chassi era a pressurização dos tubos da treliça. Todos os tubos do chassi eram interligados e vedados, pressurizados com ar comprimido e um manômetro instalado no painel do carro. Se a pressão baixasse, era porque o ar escapou por alguma trinca e os mecânicos podiam checar. Alguns tubos do chassi eram até usados como tubulação de óleo, ligando o radiador de óleo ao motor. Tudo para o carro ser o mais leve possível e compensar o peso elevado do motor. A Porsche chegou a usar madeira balsa na manopla da alavanca de câmbio. Se a ordem é tirar peso, tire-se de tudo…
Para melhorar a estabilidade do carro, a versão 917 K foi criada, com uma traseira mais curta e a frente revisada para gerar mais pressão vertical e pressionar mais os pneus contra a pista. Era o que faltava para o carro ser um sucesso. Vencedor em 1970 e 1971, com as duas primeiras conquistas da Porsche na classificação geral de Le Mans. Em paralelo, as carrocerias longas foram revisadas e também tiveram suas melhorias, assegurando boas colocações nestas edições das 24 Horas.
O 935/936
O regulamento de Le Mans mudou e os grandes motores foram proibidos. Os 917 não mais eram competitivos. Agora a Porsche direcionou sua engenharia no desenvolvimento dos motores turbo. O novo modelo 936 utilizava diversos componentes do 917, como freios e componentes de suspensão, montados na base do chassi tubular do 908. Agora ele teria um motor central de apenas 2,1 litros e seis cilindros, mas com o uso de um turbocompressor chegava a 550 cv, praticamente a mesma potência máxima que os 917 aspirados, muito maiores e mais pesados.
Agora a carroceria dos protótipos Porsche não tinha mais teto, eram os chamados modelos spyder. O 936 venceu em Le Mans em 1976 e 1977. Era o começo da era dos motores turbo bem-sucedidos. Em paralelo, a categoria GT era representada pelo modelo 935, com o mesmo motor turbo mas montado na traseira do 911. O 935 era uma evolução do 911 Carrera RSR Turbo de 1974. Na corrida de 1979, com muita chuva, o modelo 935 K3 da equipe Kremer venceu, agora com motor 3-litros, traseiro como no 911 convencional. Este foi o único Porsche de motor traseiro a vencer as 24 Horas de Le Mans até hoje.
O 935, por regulamento, tinha que ter uma estrutura de carro de produção mas com grande liberdade de modificações. As bitolas eram consideravelmente maiores, os pneus, idem, a carroceria era toda modificada para melhorar a aerodinâmica do Porsche e a potência do motor turbo era impressionante. O que a Porsche aprendeu nos 911 e 934 foi aplicado no 935 para ser o melhor 911 possível, juntando as tecnologias dos GTs com os protótipos.
Em 1981, o 936 voltou a vencer, agora com o motor aumentado para 2,6 litros, e pela primeira vez, os cabeçotes eram arrefecidos a água. O aumento de potência com o uso dos turbos conseqüentemente aumentava a geração de calor no motor, e o arrefecimento líquido era a única forma de manter os cabeçotes “vivos” ao longo da corrida. Os cilindros ainda eram arrefecidos a ar. A grande tomada de ar logo atrás do cockpit direcionava ar para os intercoolers e ajudava na alimentação do motor, gerando mais potência, agora já perto dos 600 cv.
O 956/962/Dauer
Com o 936 já ficando ultrapassado, a Porsche investiu em um novo projeto, chamado 956, que viria a ser um dos mais bem-sucedidos carros de corrida de todos os tempos. Os 956 e seu sucessor, o 962, dominaram o circuito de La Sarthe de 1982 a 1987, com a incrível marca de conquistar os oito primeiros lugares na corrida de 1983.
O primeiro monobloco de alumínio da Porsche foi um sucesso. Distribuição de peso ótima, estudos de aerodinâmica bem avançados para a época como o uso do efeito-asa na carroceria fabricada em kevlar e plástico em conjunto com o assoalho, motor central de seis cilindros, o mesmo do 936 porém modernizado, 2,6-litros, duas turbinas KKK e 650 cv. Foi no 956 que a Porsche desenvolveu sua primeira versão do câmbio robotizado de dupla embreagem, o PDK (Porsche Doppelkupplung). Com a carroceria de baixa downforce, o 956 chegava a 375 km/h.
O 956 dominou não só o campeonato de endurance mas também as 24 Horas, vencendo de 1982 a 1985. Em 1986, a evolução do carro chamada 962 foi apresentada, e venceu Le Mans neste e no ano seguinte. O 962 foi feito para se adequar ao regulamento americano, tinha um entreeixos maior para acomodar a nova posição do piloto e garantir que a pedaleira ficasse atrás da linha de centro do eixo dianteiro, por questões de segurança. O motor aumentou até os 3,2 litros, com versões com um e com dois turbocompressores, chegando até perto dos 900 cv. Em Le Mans, chegava a 390 km/h.
Com o fim da categoria de protótipos chamada Grupo C onde os 956/962 competiam, a Porsche, que já havia retirado oficialmente a equipe de fábrica e apenas fornecia carros (protótipos e GTs) para equipes particulares, ausentou-se por um tempo de Le Mans. Em 1994, um 962 criado pela Dauer para ser um carro de rua e levado para Le Mans venceu a corrida com a Equipe Joest. Por ser um “carro de rua”, ele foi inscrito na categoria GT1, para carros de produção transformados para competição.
A Dauer utilizou seu conhecimento em construção de peças de compósito fibra de carbono (FCRP) para fabricar novos painéis de carroceria, e com a ajuda extraoficial da Porsche, prepararam o motor 3-litros flat-6 de acordo com o regulamento da prova. Com um tanque de combustível maior permitido pela regra da categoria GT1, a restrição de potência no motor poderia ser compensada com menos paradas no box, e foi mesmo eficiente para vencer a corrida, na frente de outros carros da categoria de protótipos. Em paralelo, o 911 RSR dominava a categoria GT2 com seu motor traseiro de 3,8 litros.
O WSC-95
Em 1996 e 1997, a Porsche venceu a 24 Horas de uma forma bem diferente. A equipe Joest recorreu a Tom Walkinshaw, da TWR (Tom Walkinshaw Racing) para projetar um novo carro em parceria com a própria Porsche. Aproveitando o chassi de um Jaguar XJR-14, modificou-o de tal forma a ter uma nova carroceria spyder e andar com um motor 3-litros turbo da Porsche ainda da época do 956.
Oficialmente, a Porsche disputou a corrida com o modelo 911 GT1, que na verdade era um 911 modificado para ter motor central, que contamos a história aqui no AE, porém o WSC-95 (como ficou conhecido o Jaguar-Porsche da Joest) era superior em desempenho e venceu os carros oficiais da fábrica. Este foi o primeiro “Porsche” spyder vencedor desde o 936 dos anos 1970. Em breve teremos uma matéria especial sobre o WSC-95 aqui no AE.
911 GT1-98
A equipe oficial da fábrica venceu em 1998 com o 911 GT1-98, que pouco tinha em comum com um 911 de rua. Feito todo em CFRP com motor central biturbo de 3,2 litros, era basicamente um 962 convertido para parecer um 911 e respeitar as regras da categoria GT1 da época. Não era tão veloz como os competidores da Toyota e Mercedes-Benz, mas a confiabilidade e poucos problemas ao longo da corrida garantiram a vitória.
Pelos próximos anos, a Porsche abandonou o programa GT1 e os protótipos, dedicando-se apenas a fornecer carros para as categorias GT2 e abaixo, sem equipe de fábrica disputando. Os 911 RSR mantinham o domínio nas suas categorias. A resistência mecânica e consistência dos Porsches desde os primórdios da marca já eram reconhecidos mundialmente e isto os tornavam favoritos entre as equipes particulares.
Nos anos 2000, a Porsche fornecia carros para equipes particulares da categoria LMP2, o bem-sucedido protótipo RS Spyder, equipado com motor V-8 e um excelente chassi monobloco de CFRP. Venceu na categoria em 2008 pela primeira vez. Nos campeonatos de endurance pelo mundo, o RS Spyder era tão competitivo que conseguia vencer provas na classificação geral à frente de carros da LMP1.
919 Hybrid
Apenas no ano passado a Porsche voltou oficialmente com equipe própria para disputar as 24 Horas e o Campeonato Mundial de Endurance (WEC) com o protótipo 919 Hybrid. Com um incomum motor a gasolina V-4 turbo de apenas 2 litros, montado na posição central do carro e com o auxílio de um sistema de tração integral híbrida, com motores elétricos, conseguiu superar a supremacia de anos da Audi e ganhou a corrida de 2015. O 919 quebrou a tradição dos motores boxer da Porsche e pela primeira vez um carro de Stuttgart venceu sem seu tradicional motor de cilindros contrapostos. Vale lembrar que a primeira vitória do 919 Hybrid foi na 6 Horas de São Paulo, em Interlagos, última etapa do WEC de 2014.
A Porsche foi a única que conseguiu vencer os Audis diesel com um motor a gasolina. Falamos um pouco desta vitória nesta matéria. Curiosamente, com um motor central de quatro cilindros e 2 litros, assim como os primeiros 718 RS61, vencedores da categoria da sua época. Obviamente não é uma comparação direta, nem justa, pois 50 anos de evolução fizeram com que o pequeno motor turbo atual rendesse mais que os grandes motores flat-12 dos 917, graças às novas tecnologias como injeção direta de combustível, materiais infinitamente superiores, sensores eletrônicos por toda a parte, sem falar na ajuda do motor elétrico de quase 400 cv tracionando o eixo dianteiro.
O 919 evoluiu de tal modo desde seu lançamento em 2014 que não apenas conseguiu vencer as 24 Horas de Le Mans como também o campeonato mundial de 2015, desbancando a prima Audi. A habilidade de melhorar não apenas de um projeto para o outro, mas de uma corrida para a outra, ou mesmo de uma sessão de treino para a próxima é que fazem da Porsche um dos maiores nomes do automobilismo de todos os tempos.
A disciplina e os critérios religiosamente determinados para os novos desenvolvimentos feitos na Porsche são o segredo do sucesso da marca. Aprender com os erros mais que com os acertos, manter o que funciona e não ter medo de mudar quando necessário. Assim a Porsche se mantém a grande vencedora de Le Mans, mesmo tendo se afastado da categoria principal por muitos anos. O Dr. Ing. h.c. Ferdinand Porsche teria orgulho de sua empresa hoje em dia.
MB