Dando sequência ao trabalho conjunto com Hugo Bueno, vamos agora desvendar os meandros que levaram ao lançamento do “Zé do Caixão”, como acabou sendo apelidado o VW 1600. Uma pesquisa detalhada trouxe à luz aspectos que poucos conhecem e que certamente deixarão você surpreendido. Mais segredos da Volkswagen no Brasil sendo desvendados. Será uma matéria em três partes, dada a sua extensão, pois não economizamos nas ilustrações e documentos.
O objetivo desta matéria não é contar a história do VW 1600 pura e simplesmente, mas sim ao longo de uma “linha do tempo” tentar mostrar as curiosidades do desenvolvimento do projeto, as qualidades e os defeitos deste controverso modelo VW que acabou sendo relegado ao ostracismo.
Chamado por apelidos um tanto jocosos tais quais “saboneteira”, como era conhecido no sul do país, talvez pelo formato retangular de sua carroceria, e “Zé do Caixão”, este de alcance nacional, possivelmente por suas maçanetas lembrarem alças de um esquife ou por ser considerado medonho como o personagem encarnado por José Mojica Marins, aliás “Zé do Caixão”, cineasta e ator em filmes de terror de produção nacional. E mais ainda, este carro, por uma estranha qualificação emitida pela própria Volkswagen do Brasil, era chamado de Fusca de 4 portas, já que em sua documentação vinha “Fusca 1600” – algo totalmente estapafúrdio.
Sucesso em seu nascimento e “patinho feio” no seu ocaso, o VW 1600 fez parte da estratégia da VW de introduzir modelos equivalentes à família Tipo 3 alemã no mercado brasileiro. Na Alemanha, esta família era composta pelos modelos VW 1600 L (Notchback, ou sedã), VW 1600 TL (Fastback) e VW Variant 1600 L (Squareback), aos quais os nossos VW 1600, VW 1600 TL e VW 1600 Variant deveriam equivaler. O folder seguinte, de 1968, ano anterior ao lançamento do VW 1600 no mercado nacional, mostra esta série de carros em seus mínimos detalhes.
Veja um catálogo, que conseguimos apenas em holandês, distribuído pela PON’s Automobielhandel N.V. de Amersfoort — empresa da família de Ben Pon (que contribuiu com a criação da Kombi). No caso chamamos a atenção para as fotos que falam por si. Note que os modelos alemães da família Tipo 3 eram muito mais modernos do que o modelo que se pretendia lançar no mercado brasileiro, o primeiro de uma família de três.
O VW 1600 teve como fonte inspiradora o protótipo EA97 (Entwicklungsauftrag Nr. 97 – em tradução livre, ordem de desenvolvimento nº 97), desenvolvido pela VW alemã no final da década de 1950 e apresentado oficialmente em 1960.
Na Alemanha, o EA97 tinha a missão de procurar um herdeiro perfeito para o Fusca que pudesse substituí-lo algum dia. Os trabalhos neste sentido começaram em 1959.
Seus “genes técnicos eram sacrossantos”: chassi de túnel central, tração traseira, motor boxer arrefecido a ar montado atrás, com turbina elevada. Em outras palavras um Fusca, incluindo a suspensão traseira por semieixos oscilantes. Como é frequente acontecer, os “novos” desenvolvedores foram naturalmente se esforçando para tornar o novo modelo melhor do que o anterior. Então eles tomaram por base um chassi de Karmann Ghia, arredondaram a parte da frente e ampliaram-no para os lados. Com isto o carro já tinha começado a crescer.
Em uma época com ênfase na objetividade, os estilistas renunciaram a todos os enfeites e surgiu um design descompromissado de três volumes. Espaço para bagagem na frente, motor na traseira, e a seção de passageiros entre os dois. Nesta tendência a Volkswagen não estava sozinha: muitos concorrentes naquela época estavam fabricando tais carros — com sucesso. Adicionalmente, faziam parte do projeto uma perua, a Variant, um cabriolé e um TL, completando uma família.
No entanto, enquanto as linhas de montagem estavam sendo construídas para a produção deste carro que iniciaria com a fabricação de 100 veículos da série piloto, importantes dúvidas foram levantadas pelo departamento de marketing. Por mais impressionante que isto possa ter sido, os estrategistas temiam que o EA 97 entraria em substancial conflito interno com a ainda relativamente nova linha do Tipo 3. E além disto, ele estaria entrando em disputa com outro concorrente interno: o Audi 60, da Auto Union, recentemente adquirida em 1965.
A solução acabou por ser desconcertante — mas ao mesmo tempo justificável: em vez de sucatear o brilhante projeto, ele foi completamente desmantelado, incluindo todos as ferramentas de produção, e foi enviado para o Brasil, onde se estimava que as chances de ele vender bem eram boas.
Mas analisando o projeto brasileiro final algumas diferenças são evidentes, tais como a carroceria de duas portas em vez de quatro e os faróis circulares, um de cada lado, ao invés dos retangulares, porém a semelhança entre ambos é inegável.
Portanto, o projeto original do novo VW brasileiro foi desenvolvido na sede da Volkswagen em Wolfsburg, Alemanha. De lá vieram alguns protótipos para que técnicos brasileiros pudessem trabalhar não só no processo de “tropicalização”, ou seja, a adaptação do novo carro para as condições brasileiras, mas também às futuras exigências de preço e qualidade do mercado.
O novo veículo, cujo projeto foi batizado de “Brasília” e era designado pela fábrica com o código B-135, começou a ser testado no Brasil em maio de 1967, após os primeiros testes dinâmicos na Alemanha. Inicialmente foi testado o motor 1600 inteiramente nacional, com turbina de arrefecimento do motor no lugar de sempre, elevada, após a VW ter abandonado a ideia da utilização de motores de construção plana como os da família Tipo 3 alemã, pois os fornecedores nacionais não teriam tempo hábil para o desenvolvimento das peças necessárias.
O interessante é que uma equipe de técnicos da Vemag, fabricante comprada pela VW do Brasil em abril de 1967, participou ativamente do desenvolvimento do novo carro, inclusive utilizando o motor 1600 em um DKW-Vemag Fissore e em uma Kombi para a realização de testes de rodagem em cidades do interior de São Paulo.
Um fato curioso, destacado na nota “O PROJETO BRASÍLIA, DKW-VW” da matéria “A um Ano da Abertura, Salão-68 dá o Que Falar”, publicada em setembro de 1967 na seção “Indústria Automobilística” do caderno de Veículos e Transporte do jornal O Globo. Segundo a nota, o departamento de Estilo da Vemag foi o responsável pela transformação do novo carro em quatro portas, já que o protótipo alemão possuía apenas duas. O projeto “Brasília” chegou inclusive a ser tratado como um projeto DKW-VW como ressaltado nesta nota reproduzida abaixo:
A intenção inicial deste novo modelo era substituir no mercado o sedã DKW-Vemag Belcar, talvez por isso a introdução de mais duas portas. Não há registro de que na época a VW tenha cogitado batizar o novo modelo de “Brasília” como pensam alguns, sendo este, apenas o nome de referência para o novo projeto.
Logo em seguida, o motor 1600 foi instalado na carroceria definitiva iniciando-se assim os testes de rodagem já com o conjunto final montado. A cada dez mil quilômetros os carros eram totalmente desmontados e as peças seguiam para análise por técnicos nos laboratórios da fábrica.
Após rodarem milhares de quilômetros em diferentes tipos de estradas e pisos e com os resultados finais bastante satisfatórios, o lançamento do novo carro foi programado para meados de 1968, e cabe registrar outra curiosidade: esse seria o primeiro veículo VW de quatro portas no Brasil e o segundo no mundo!
A pressa para o lançamento do projeto “Brasília” da Volkswagen no primeiro semestre de 1968 tinha um motivo: antecipar-se ao lançamento do Projeto “M” da Willys, que mais tarde com a fusão Ford-Willys, seria batizado de Ford Corcel, seu futuro concorrente direto. Veja a foto dos protótipos do Corcel tiradas dentro do departamento de Estilo da Ford-Willys:
Na foto seguinte, o projeto “M”, com o seu antigo codinome “WO-X7” dos tempos da Willys na placa traseira. O futuro Corcel mostra as marcas do seu design, como é o caso do logo Corcel riscado na lateral traseira. Este logotipo acabou ficando na tampa traseira e o da Ford foi passado para o centro.
Infelizmente, os testes em campo do projeto “Brasília” tiveram que ser retomados, pois durante a análise mais profunda dos dados gerados pela fase inicial, foram identificados problemas de arrefecimento. A cada lote de protótipos testados, dois eram selecionados e enviados à Alemanha para testes em túnel de vento, o que acabou identificando até mesmo soldas defeituosas.
Em paralelo à fase de testes e resolução de problemas, seguia também a preparação da linha de montagem na fábrica da VW no km 23,5 da via Anchieta. Uma nova linha de produção foi instalada ao lado das que produziam o Fusca e a Kombi. Para a estampagem das peças da carroceria do novo VW foram incorporadas novas prensas e máquinas operatrizes, sendo que as oito últimas atrasaram em função do naufrágio do navio cargueiro “Paranaguá”, de bandeira brasileira, em fevereiro de 1968 na costa da Bélgica, depois de ter colidido com o navio paquistanês Mansoor; o sinistro ocorreu no rio Scheldt, canal de acesso ao porto belga de Antuerpia, no dia 27 de fevereiro de 1968.
O “Paranaguá”, severamente danificado, ainda chegou a ser rebocado para um banco de areia próximo, mas acabou resvalando e afundando numa profundidade pequena, tanto que foi possível salvatar sua carga, incluindo os componentes da linha de montagem do EA 97 agora destinadas ao VW 1600. Nas ferramentas resgatadas, depois de uma cuidadosa verificação, foi necessário, após uma limpeza completa, trocar todas as linhas hidráulicas e repintar todos os itens. Isto acabou sendo feito em tempo recorde.
Em função do naufrágio a produção inicial do VW 1600 foi atrasada, tendo sido produzido um lote de aproximadamente 50 unidades destinadas à demonstração em alguns concessionários Volkswagen e no VI Salão do Automóvel em novembro de 1968 em São Paulo.
Um anúncio do lançamento do VW 1600 instigava os leitores a visitarem o Salão do Automóvel para ver a novidade. É interessante observar a última frase deste anúncio: “Afinal, não é todo dia que aparece um VW quatro portas”. Era a pista, um tanto quanto enigmática, para informar que aquele seria o primeiro VW de quatro portas do Brasil.
Também foi realizado um filme de propaganda lançando o VW 1600, ressaltando, em linhas gerais, as suas qualidades, num texto semelhante ao que foi usado nas propagandas da mídia impressa, veja:
O VI Salão do Automóvel, realizado em 1968, foi o último no Parque do Ibirapuera em São Paulo. O seguinte, em 1970, já utilizou o Pavilhão de Exposições do Anhembi. A estreia do VW 1600 neste salão foi um sucesso, tendo sido o modelo que mais acumulou pedidos durante a mostra.
A foto que se segue do VW 1600 no VI Salão do Automóvel lembra os tempos do fim da década de 60, perfeitamente reconhecíveis pelo uniforme comedido da modelo e em especial pela sofrível boina com o logotipo VW.
Outro VW 1600 apresentado no Salão do Automóvel, numa área “gramada”, não permitia o acesso do público ao carro:
Também foram feitas fotos promocionais nos jardins do Parque do Ibirapuera:
O novo VW 1600 também foi retratado em capas de revistas como a Mecânica Popular de dezembro de 1968:
Logo após, em dezembro, a Volkswagen concedeu férias coletivas aos seus funcionários, deixando para o começo do ano seguinte o início efetivo da produção do VW 1600, cujo marco de lançamento foi 15 de janeiro de 1969.
A nova linha de montagem do VW 1600 começava a trabalhar, um mundo novo para os operários que estavam se adaptando ao novo veículo. A volta das linhas do Fusca e da Kombi à atividade já não exigia cuidados maiores por parte de seus trabalhadores.
Em 31 de janeiro de 1969, o caderno de Veículos e Transporte d‘O Globo estampava a manchete: “Saem da linha de montagem os primeiros Volks – 1.600”, e o texto inicia com a seguinte frase: “Começa a realizar-se o sonho dos que desde o VI Salão do Automóvel aguardavam o momento de possuir o quatro portas da Volkswagen brasileira.” Sim, pois a significativa quantidade de encomendas deste carro estava pendente desde novembro de 1968.
Mas as primeiras unidades começaram a chegar aos concessionários Volkswagen somente em meados de fevereiro, suscitando boatos, não confirmados, de que faltavam peças básicas para concluir a montagem dos veículos produzidos, como, por exemplo, uma mola para montagem final do acelerador e o espelho retrovisor externo, que naquele ano passou a ser item obrigatório. A imprensa estava atenta e chegou a levantar os possíveis motivos do atraso nas entregas. Na reportagem de Zenon Garrote Sierra para O Globo, com o título “Falta de peças retarda a saída do nôvo Volkswagen”, publicada em 21 de fevereiro de 1969, foi comentado que: “O espelho retrovisor externo, do lado do motorista, é uma das exigências do Código Nacional de Trânsito. Sem ele a Volkswagen estaria enfrentando problemas para iniciar a comercialização do seu 1600 de quatro portas”
Aqui termina a primeira parte deste trabalho. Na seguinte falaremos do início efetivo de vendas e do esforço para tal feito pela Volkswagen do Brasil, a criação de uma versão de luxo etc.
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AG
Os créditos e fontes de pesquisa das Partes 1 e 2 serão dados no final da Parte 3.
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.