É um termo idiomático. Dizer que vai fazer alguma coisa “em dois tempos” é dizer que vai fazê-lo rapidamente. Outro termo idiomático é “cabeça de bacalhau”: refere-se a uma coisa que sabidamente existe, todos comentam, mas ninguém, ou quase ninguém, realmente viu. É um pouco destas duas coisas o que pretende este post. Mostrar algumas curiosidades e vários detalhes sobre um ilustre desconhecido que todos comentam, sem grande aprofundamento técnico, mas de forma divertida e educativa.
O alvo da nossa conversa veio “fazer uma visita” em casa e decidi compartilhar um pouco dela com os leitores. Um amigo que está reformando uma perua DKW-Vemag, uma Vemaguet de acabamento mais simples, a Pracinha, trouxe o velho motor 2-tempos, já bem surrado e desgastado, para que eu lhe ensinasse alguns detalhes para a restauração. O motor está incompleto, mas tem o suficiente para uma boa olhada nos seus detalhes mais “íntimos e picantes”.
Começando pelo princípio
O motor DKW possui uma concepção bem antiga. É um projeto alemão do final da década de 1930, praticamente um contemporâneo do Fusca original, portanto de antes da Segunda Guerra Mundial. Não podemos exigir muitos refinamentos técnicos desse motor, embora sua produção em série tenha se iniciado em 1953 com diversas melhorias (chegou a ser apresentado no Salão de Berlim de 1940, mas o conflito impediu que fosse produzido).
Motocicletas com motor de 2 tempos da década de 1970, hoje clássicas e tecnicamente muito obsoletas, possuem acumulados 40 anos de evolução sobre esse motor. Então temos que respeitar este fato.
Este é um motor de 2 tempos que poderíamos chamar de clássico. Sua arquitetura é a mais elementar e sem refinamentos entre todas as variantes de motores de 2 tempos, que são muito mais numerosas e exóticas que as de motores de 4 tempos.
Seu funcionamento segue o esquema abaixo:
Em textos antigos há uma controvérsia sobre a designação correta para este tipo de motor. Dizer que ele é de 2 tempos faz parecer que ele tem um funcionamento muito diverso do ciclo Otto de 4 tempos. Isto não é real. O motor de 2 tempos realiza os mesmos 4 tempos do ciclo Otto que o motor de 4 tempos tradicional. A dificuldade é que no motor de 4 tempos há uma coincidência entre os cursos do pistão com os tempos do ciclo Otto, mas no motor de 2 tempos vemos que a admissão de mistura para o cilindro ocorre simultaneamente ao tempo de descarga. Já os tempos de compressão e depois o de expansão ocorrem em cursos parciais do pistão. E o motor de 2 tempos clássico ainda possui um “5º tempo” que é a admissão de mistura no cárter.
Alguns autores e pesquisadores antigos preferiam a designação “2+2 tempos” para ele, mas o termo que ficou foi o inapropriado “2 tempos” mesmo.
Este motor possui algumas características que o tornam bem diferente dos motores de 4 tempos, além de seu funcionamento básico.
– Todo controle de fluxo do motor é feito pela combinação de janelas no cilindro em conjunto com o movimento do pistão, que além de elemento de captação de energia mecânica dos gases queimados, recebe a função de válvula;
– Este tipo de motor não possui capacidade de aspiração forçada de mistura e não consegue induzir sozinho o tempo de admissão. A indução da admissão nos motores de 2 tempos clássicos é feita transformando a parte baixa do motor em compressor, aparentado com os compressores de ar das oficinas;
– O uso da parte baixa do motor como compressor impede que se use um sistema de lubrificação por óleo recirculante, e o lubrificante precisa ser admitido junto com a mistura, com seu excesso sendo passado para a câmara de combustão e descartado pelo escapamento. Diz-se então que o sistema de lubrificação do motor de 2 tempos é do tipo aberto, ou de perda total.O motor na prática
O motor DKW por fora é extremamente simples. Em relação ao bloco, considerando o volante como parte traseira, temos à direita o coletor de admissão e do lado esquerdo o coletor de escapamento.
Nada de complexos mecanismos de válvulas e polias. No cabeçote, apenas uma árvore transmite o movimento de uma polia simples, acionada por outra montada no virabrequim, para a hélice do radiador, na parte de trás do motor.
Todo o arrefecimento é por termo-sifão, sem bomba d’água, e a circulação da água ocorre por diferenças de temperatura e de altura.
Isso explica porque o DKW usa o radiador atrás do motor e não na frente, junto da grade dianteira. A frente do carro é baixa e ali o radiador ficaria mais baixo que o motor, impedindo o funcionamento por termo-sifão. Mais para trás, à frente do pára-brisa, o capô é alto o suficiente para a instalação do radiador.
Esta simplicidade, assim como tantos outros detalhes neste motor, é resultado de uma época em que fabricar qualquer máquina era um processo difícil e caro, e para que o produto fosse viável a simplicidade extrema refletia no custo do produto.
À primeira vista, é estranho ver os coletores de admissão e escapamento montados no bloco, já que hoje todos os motores possuem válvulas e coletores no cabeçote, porém na época do motor DKW havia muitos motores de 4 tempos com coletores no bloco em conjunto com conjunto de válvulas laterais também no bloco.
Em comum entre estes motores antigos estava a simplicidade do cabeçote, que era pouco mais que uma tampa de pressão selando os cilindros.
Na lateral do bloco, abaixo das janelas de admissão, temos o ponto de montagem da bomba de combustível. Na maioria dos motores de 4 tempos a carburador, as bombas de combustível possuíam acionamento mecânico, com um ressalto transmitindo movimento para um balancim e deste para um diafragma. Já no motor DKW, a bomba de combustível tem sua parte seca ligada ao cárter do cilindro frontal, o nº 3. A pulsação de pressão característica deste motor é que impulsionava diretamente o diafragma da bomba.
Ao lado da tomada de pressão da bomba existe uma pequena torneira para dreno da água de arrefecimento (está faltando o bbracinho para acionar a torneira).
Fig 04 Tomada de pressão da bomba de combustível e torneira de sangramento da água de arrefecimento
Sistema de janelas e lavagem dos cilindros
No bloco observamos as janelas. Do lado direito, cobertas pelo coletor de admissão, estão as janelas de admissão de mistura ar-combustível — e óleo — para o cárter.
No motor 2-tempos clássico, como o DKW, a admissão de mistura é controlada pela abertura e fechamento destas janelas pelo pistão. No caso específico deste motor, observamos um “calo” na parte superior da janela de admissão. Este calo serve de apoio para o anel de segmento mais baixo do pistão (são três). Como a janela é muito larga, sem o calo o anel se expandiria para o espaço interno da janela durante o movimento descendente do pistão e quebraria no seu movimento ascendente. Alguns motores de 2 tempos possuem janelas paralelas de mesma função, separadas por um septo completo. A função deste septo é dar apoio para os anéis do pistão, mesmo com grandes larguras para maior fluxo de gases.
Enquanto as janelas de admissão são largas e baixas, na saída para o coletor de escapamento a saída são circulares, embora internamente possuam um formato retangular sobre a face do cilindro.
As janelas e os dutos a que estão ligadas não possuem geometria casual. Conforme o pistão desce, impulsionado pelos gases queimados, em determinado ponto do curso descendente ele começa a abrir a janela de escapamento. Um pouco mais, e o pistão abre as janelas de transferência, permitindo que a mistura que está no cárter chegue ao cilindro e à câmara de combustão. No seu curso ascendente, a saia do pistão abre a janela de admissão, fazendo com que mistura formada pelo carburador seja succionada pela parte de baixo.
Subindo e descendo, o pistão abre e fecha as janelas em uma posição mecânica bem definida, o que equivale aos pontos de abertura e fechamento das válvulas dos motores 4-tempos. Entretanto, há uma característica destes motores 2-tempos básicos: os mapas de abertura e fechamento das janelas são simétricos em relação ao ponto-morto superior, sem a flexibilidade dos comandos por ressaltos dos motores de 4 tempos.
Muitos dos modelos exóticos de motores 2 tempos surgem tentando contornar esta limitação, mas isso é assunto para outro post.
Janelas e dutos ainda estão ligados a outra característica importante deste tipo de motor, a lavagem do cilindro (em inglês, scavenge). A lavagem do cilindro é o processo onde o fluxo de mistura ar-combustível fresca substitui os gases queimados (o mesmo ocorre nos motores 4-tempos). Este processo de substituição cria também o impulso inicial para a mistura que progressivamente será comprimida, gerando o turbilhonamento necessário para a boa queima da mistura.
A geometria das janelas e a conformação dos canais de transferência é quem direciona os fluxos de mistura fresca e de gases queimados para gerar esse padrão. Há diversos esquemas de fluxo de lavagem, implicando em diferentes esquemas de janelas e dutos e até o formato da cabeça do pistão em alguns casos.
Nas motocicletas, o fluxo de lavagem é geralmente em loop (arco), de tal sorte que a janela de escapamento fica alinhada com o centro da camisa e seu duto é perpendicular, enquanto 4 janelas de transferência em simetria lateral lançam o fluxo de mistura no sentido oposto ao da janela de escape e para cima, lavando a mistura fresca até o ponto mais alto da câmara de combustão, ajudando a expulsar os gases queimados para fora do cilindro.
Exhaust port = janela de escapamento
Exh. = escapamento
Inlet port = janela de admissão
Main transfer port = canal de transferência principal
Auxiliary transfer port = canal de transferência auxiliar
Five-port cylinder exhaust sweep = lavagem de cilindro com 5 janelasNo motor DKW o esquema de lavagem é bastante parecido. Em vez de cinco janelas são apenas três. As duas janelas dos canais de transferência, diametralmente opostas, também são tangentes e sopram a mistura fresca para o alto no mesmo sentido imposto pela forma curva da parte superior do canal de transferência, porém direcionadas para o alto.
Enquanto o fluxo de mistura fresca espirala em sentido ascendente rumo ao topo da câmara de combustão, os gases queimados espiralam descendo rumo ao topo do pistão e à janela de escapamento.
As fotos a seguir ilustram este processo usando cordões coloridos para simular os fluxos.
Esse tipo de lavagem é chamado de Schnürle, sobrenome do seu criador, o engenheiro alemão Adolf Schnürle, criado e patenteado em 1931 e empregado no motor de dois cilindros do DKW Front no ano seguinte.
Este projeto precisa ser criterioso para garantir o máximo rendimento do motor. Se os fluxos estiverem mal direcionados, há grandes chances de mistura fresca ser perdida pela janela de escapamento e que parte dos gases queimados fiquem aprisionados no alto da câmara de combustão sem que sejam descarregados, diluindo a mistura fresca.
Sobre o fluxo de lavagem do motor DKW, uma curiosidade. Assim como em outros motores, mesmo de 4 tempos, o motor DKW apresenta simetria nos fluxos dos cilindros frontal e traseiro, com um turbilhonando os gases no sentido horário e outro no sentido anti-horário. Entretanto, como o motor possui um número ímpar de cilindros, o cilindro central apresenta o mesmo padrão de turbilhonamento do cilindro frontal. O resultado aparente deste detalhe aparece nas saídas de escape na lateral do bloco, onde o espaçamento entre as saídas é assimétrico.
Admissão
A admissão do motor DKW não poderia ser mais simples. O coletor de admissão é pouco mais que uma tubagem em formato piramidal, conectando a base do carburador diretamente aos dutos de admissão no bloco. O carburador é bem simples, corpo de 40 mm com difusor de 30 ou 32 mm.
Observando o coletor por cima, percebemos uma assimetria na forma piramidal, com a base do carburador deslocada para trás. Esta assimetria está ligada à assimetria dos dutos dos cilindros 1 e 2 em relação ao 3. Com o cilindro intermediário apresentando um tubilhonamento no mesmo sentido do cilindro traseiros (1), ambos os cilindros colaborariam na sucção em detrimento do cilindro traseiro, com conseqüente desequilíbrio de mistura enviada para este último, e o cilindro traseiro trabalharia mais pobre. Com o deslocamento do carburador para trás no coletor, os cilindros passam a trabalhar em um equilíbrio maior de mistura entre si.
Outro detalhe interessante no coletor de admissão é perceber que ele não passa de uma pirâmide oca.
Nos motores de 4 tempos, observamos que os coletores de admissão formam dutos a partir da base do carburador até continuarem nos dutos de admissão do cabeçote. Estes dutos, no caso dos motores a carburador ou com injeção monoponto, apresentam compromisso do fluxo de ar ser capaz de arrastar o combustível líquido em suspensão, sem que esse combustível precipite (se condense) nas paredes do duto. Isto é fundamental para o funcionamento regular do motor.
Mas esta não é a realidade que vemos no coletor do motor DKW. Ao contrário, depois que o ar passa pelos estrangulamentos do carburador, onde o combustível foi nebulizado, ao adentrar ao coletor a passagem se expande, o ar perde velocidade, com toda propensão de uma parte do combustível precipitar no coletor. E por que isso não é um problema para este motor? Porque mesmo precipitado no coletor, o combustível é arrastado para dentro do cárter pela sucção do ar do coletor. Uma vez dentro do carter do cilindro, o combustível encontra um conjunto mecânico em movimento frenético e em alta temperatura. O combustível que não fica em suspensão pelo ar agitado, acaba evaporando e criando uma mistura bastante homogênea.
Em modelos de DKW mais recentes, havia no interior do coletor de admissão um perfil de venturi para acelerar a velocidade da mistura e promover sua entrada no cárter mais rapidamente.
Alguns motores de 2 tempos (não é o caso deste motor DKW) possuem uma característica que muitos mecânicos estranham. Quando o pistão chega ao ponto-morto superior, a saia do pistão abre uma pequena fenda entre o duto de descarga e o volume do cárter. O segredo desta brecha está no aproveitamento do pulso de pressão negativa gerada no escapamento em determinados regimes, que ajuda na sucção de mais mistura para o cárter, garantindo mais potência.
Nem todos projetistas concordam com este tipo de recurso, já que isso ocorre em regimes bem determinados, mas atrapalha em outros, quando o cárter é aberto num instante de pressão positiva.
É de se notar que o óleo lubrificante também é admitido junto com o combustível e passa pelo mesmo processo. Entretanto, ao invés de ser altamente volátil, este óleo é altamente aderente, mantendo a lubrificação mesmo sem ser forçado por uma bomba.
Lubrificação
A lubrificação do motor de 2 tempos é um capítulo à parte na teoria e na prática deste tipo de motor.
Os motores de 2 tempos do tipo clássico não podem ter um circuito fechado com óleo lubrificante no cárter, feito trabalhar por meio de uma bomba. O sistema de óleo em circuito aberto oferece a lubrificação que o motor precisa, mas há um porém. Quando o óleo é disperso junto com o combustível, uma parte dele sempre acaba indo para a câmara de combustão, onde a queima deste óleo compete pelo oxigênio necessário ao combustível, mas liberando pouca energia térmica de volta, além de gerar uma frente de chama muito fria. O excesso de óleo interfere com o processo de queima do motor, além de poder molhar a vela, causando um curto-circuito e fazendo a ignição falhar. Além disso, o óleo queimado sempre gera uma carbonização que precisa ser retirada regularmente (a chamada “descarbonização” do motor). Além, claro, de produzir fumaça azulada quase sempre.
Assim, temos um limite para quantidade de óleo que podemos injetar no motor, e isso cria um dilema. Quanto menos óleo chega ao motor, melhor a queima, porém o motor sofre com a pouca lubrificação. Se incrementamos mais óleo, o motor fica melhor lubrificado, mas vai prejudicar a queima da mistura.
Estes motores de 2 tempos sempre trabalham com deficiência de lubrificação, e por isso sempre duram menos que seus irmãos de 4 tempos.
Nos projetos mais antigos, era comum adicionar o óleo 2 tempos à gasolina. Era fácil de fazer, mas muitos motoristas e motociclistas esqueciam de adicionar o óleo a cada abastecimento e quando isso acontecia ficavam pelas ruas e estradas com o motor destruído. A proporção era 40 partes de gasolina para 1 de óleo (2,5%) e se colocava primeiro o óleo, depois a gasolina.
A mistura homogênea de óleo com gasolina também não era a ideal para diferentes regimes do motor. Quanto mais exigido o motor, maior a necessidade de lubrificação. Apesar desse problema, este motor foi usado assim por muitos anos.
Nos anos 1960 é que surgem nas indústrias automobilística e motociclística soluções de lubrificação por bomba de óleo, e a DKW acompanha o movimento lançando o sistema Lubrimat, uma bomba de óleo dosificadora, com o mesmo objetivo.
Uma das vantagens do sistema bomba de óleo sobre a mistura com a gasolina no tanque está na melhoria da lubrificação aliada à melhor queima de mistura do motor.
O óleo é solúvel na gasolina, e quando o combustível era nebulizado no ar pelo carburador, muito óleo era arrastado diretamente para o cárter e daí para a câmara de combustão pelos canais de de transferência. Era um óleo em excesso que não melhorava a lubrificação do motor e ainda atrapalhava na queima. Com o sistema de bomba dosificadora, o óleo era injetado no carburador e ali se misturava com a gasolina. O princípio de lubrificação era o mesmo, o de perda total, mas a vazão de óleo dependia da posição do acelerador e da rotação do motor, portanto sem haver excesso nem falta de lubrificação. O resultado imediato foi melhoria da lubrificação com menos consumo de óleo, junto com maior desempenho do motor.
Com o Lubrimat proporção gasolina-óleo era variável segundo carga (aceleração) e rotação, ia de 40:1 a 200:1. Havia um tanque de óleo de 3 litros montado sobre o coletor de escapamento e agora o proprietário podia abastecer só com gasolina. Uma luz no painel ao dentro do medidor de combustível acendia-se quando o nível de óleo estava baixo.
O sistema de escapamento
Num motor de 2 tempos, o sistema de escapamento é fundamental para o desempenho e economia de combustível. A imagem a seguir, que se tornou famosa internet afora, mostra bem como o sistema de escapamento do motor de 2 tempos funciona.
A animação mostra o fluxo de gases dentro do motor, e deixa bem claro como a mistura fresca penetra o sistema de escapamento, porém as ondas de pressão geradas na câmara de expansão do escapamento, um recurso não usado nos motores de 4 tempos, conseguem forçar o retorno desta mistura para o cilindro.
O que a animação não explica é que as ondas de pressão ocorrem na velocidade do som, que é constante, e que estas ondas possuem freqüência determinada pela ressonância gerada pela câmara de expansão. O sistema de escapamento possui uma ressonância, e essa ressonância é repassada para o motor. A condição retratada na animação, em que apenas a mistura fresca retorna para a câmara de combustão, e isto ocorre numa rotação bastante específica. Em rotações mais baixas, os gases queimados podem retornar para dentro da câmara e diluindo a mistura fresca, e em altas rotações mistura fresca sai pelo escape e a onda de pressão não tem tempo suficiente para fazê-la retornar, com essa mistura se perdendo.
Isto significa que o motor 2 tempos tem um caráter altamente sintonizado. Na gíria dos preparadores, diz-se que é um motor muito “agudo”.Entretanto, para uso em veículos esse comportamento sintonizado não é desejável, mas sim espera-se elasticidade dele. Isso se consegue com um dimensionamento da câmara de expansão para uma rotação mais baixa e tempos de abertura de janela mais conservadores.
Preparar um motor de 2 tempos de produção costuma obter uma potência bem elevada, mas o motor torna-se por demais “agudo”. O segredo da preparação dos motores 2 tempos está em aumentar essa potência sem perder tanta elasticidade, e toda preparação deste tipo de motor começa pelo escapamento.
Este é um dos pontos da revolução tecnológica promovida pelas motocicletas japonesas de 2 tempos nas décadas de 1960 e 1970.
Um bom exemplo desta revolução e com um motor comparável ao DKW é o da Suzuki GT 380, também com 3 cilindros. Motocicletas de 2 tempos feitas pelos japoneses nessas décadas utilizavam escapamento individual, um por cilindro, para tirar o máximo de proveito desta otimização, mas a GT-380, para não ficar com um desenho assimétrico, usava dois escapamentos grandes e individuais para os cilindros laterais, enquanto o cilindro central usava dois escapamentos menores, alimentados por um coletor de escapamento em “Y”.
O visual dos escapamentos cromados sobrepostos de tamanhos diferentes, ousado e bonito para a época, foi um grande atributo de vendas desse modelo.
O sistema de escapamento do motor DKW não é tão avançado, dada a idade do projeto. Em vez de ser usado um escapamento independente por cilindro, o motor DKW usa um coletor de escapamento que une os fluxos dos três cilindros.
O motor DKW gera uma descarga a cada 120 graus de giro do virabrequim. Essa regularidade permite dimensionar a câmara de expansão como se fosse para um motor monocilíndrico girando com o triplo da rotação. O dimensionamento desta câmara de expansão fica bem menor que se fosse para um cilindro único, o que é ideal para um automóvel.
A parte baixa
Quando retiramos o cárter deste motor e expomos o virabrequim, alguns detalhes chamam a atenção. Num motor de 4 tempos, o cárter é pouco mais que uma bandeja aparafusada no fundo do motor para armazenar o óleo lubrificante, que é feito circular por uma bomba.
No caso do motor DKW, o cárter serve de apoio para o virabrequim e seu volume é isolado por cilindro. Como a parte baixa do motor é usada como bomba e cada cilindro está em posição diferente dos demais, misturar os espaços do cárter faria o motor perder a capacidade de bombeamento. A vedação precisa ser absoluta.
Nas fotos, observamos que entre os cilindros há os rolamentos de apoio do virabrequim, e sobre estes rolamentos há anéis parecidos com os usados nos pistões. Estes anéis não giram, não se deslocam ao longo dos assentos, mas garantem a vedação entre cilindros da mesma forma que os de pistão.
Os contrapesos do virabrequim são muito mais volumosos e pesados que a de um virabrequim de 4 tempos equivalente, e vê-se que há muito pouca folga entre eles e as paredes do bloco (assim como as paredes do cárter). O volume aberto (chamado de “volume morto” ou “volume nocivo”) na parte baixa precisa ser minimizado ao máximo, pois isto é fundamental para o rendimento da parte baixa como compressor. Com excesso de volume nocivo, o volume deslocado pelo pistão se torna pouco significativo em relação ao ar contido no cárter, perdendo capacidade de aspirar mistura ar-combustível do carburador e depois soprá-la para o cilindro e câmara de combustão.
Havia todo um conjunto de truques reduzir o volume nocivo do cárter quando se fazia preparação. Alguns virabrequins, especialmente de motocicletas, possuiam furos passantes de grande diâmetro para fins de balanceamento que eram preenchidos com rolhas de cortiça. As bielas, que tinham perfil em “I”, eram preenchidas com resina reforçada com algum tipo de fibra. Além das bielas ficarem mais volumosas, ainda ganhavam um perfil mais aerodinâmico, compensando em parte o aumento de peso dessa massa oscilante.
Mas o método mais polêmico era o de esculpir em cortiça uma peça que preenchia o espaço morto entre o lado interno da cabeça do pistão até o pino da biela. Os resultados deste tipo de enchimento eram significativos, mas era retirada da cabeça do pistão uma importante fonte de arrefecimento, e muitos motores não resistiam às corridas, com grande furos na cabeça do pistão.
Há detalhes construtivos diferentes no conjunto móvel dos que estamos acostumados nos motores de 4 tempos. As bielas deste motores são integrais, e não possuem cabeças bipartidas para montagem no virabrequim. No lugar de bronzinas, estas bielas usam rolamentos de rolos de pequeno diâmetro (os chamados rolamentos de agulha) tanto na cabeça como no pé.
No lugar das bielas que não podem ser desmontadas, o virabrequim é que se torna desmontável. Ele é composto por vários componentes separados e montados prensados. O serviço de montagem e desmontagem do virabrequim é altamente qualificado, para evitar danos às diversas partes e ainda garantir a geometria do virabrequim completo após a montagem.
Um problema comum em motocicletas 2 tempos antigas era o carburador ser alimentado por gravidade pelo tanque, e constantemente as bóias dos carburadores não vedavam adequadamente. O dono da moto estacionava a moto, e aos poucos a gasolina extravasava e escorria para dentro do cárter. Quando o motociclista ia dar partida na motocicleta, o cárter cheio de líquido sofria um calço hidráulico e o virabrequim composto desalinhava, travando o motor. O motociclista prevenido sempre fechava a torneira do tanque e sempre testava o motor com o pedal de partida antes de acioná-lo.
Cabeçote
Mecanicamente, o cabeçote era pouco mais que a tampa de uma panela de pressão, com a função de portar a vela de ignição e possuir câmaras d’água por onde circula a água do sistema de arrefecimento.
A simplicidade mecânica desta peça se justifica pela necessidade da sua retirada com alguma regularidade para ser descarbonizado, operação que atinge também a cabeça dos pistões. Motores bem regulados, com lubrificação adequada e motoristas que soubessem conduzir o veículo com este tipo de motor proporcionavam longos períodos entre descarbonizações, mas sem as condições ideais essa manutenção era bastante regular, tipo a cada 20.000 km nos piores casos.
A simplicidade mecânica do cabeçote obscurece a sofisticação do projeto das câmaras de combustão lavradas na peça. Motores de 2 tempos são mais sensíveis a detonação que os motores de 4 tempos, e câmaras de combustão com propriedades antidetonantes são vitais para a preservação e rendimento do motor.
Um dos pontos mais importantes numa câmara com propriedades antidetonantes são as chamadas áreas de laminação ou esmagamento (squish area).
Essas áreas de laminação são regiões da câmara de combustão que se aproximam muito da cabeça do pistão quando este está no ponto-morto superior. Quando o pistão se aproxima desse ponto, a mistura entre o pistão e a área de laminação é esmagada e soprada para o volume reduzido da câmara de combustão. As áreas de laminação ficam sempre nos pontos onde haveria maior probabilidade de detonação, de sorte que há sempre pouca mistura para detonar nesses pontos. O sopro também aumenta a turbulência do resto da mistura, o que também melhora a queima e evita a detonação.
Repare que a “meia-lua” de laminação do cabeçote toma em torno de um quarto da área total da câmara. Vemos áreas se laminação também nos motores de 4 tempos, mas não tão significativas.
Ligando os pontos
– O motor 2 tempos tem um princípio de funcionamento bem diferente do motor de 4 tempos;
– É um motor que usa janelas no cilindro e o próprio pistão como válvulas de controle de fluxo;
– A presença de janelas a meio curso do pistão elimina a capacidade de aspiração natural da parte alta do motor, e a mistura entra aspirada para depois ser forçada para o cilindro por meio de bombeamento pelos pistões no cárter ;
– O uso da parte baixa do motor como compressor impede que se use um circuito fechado de lubrificação. Assim, o óleo precisa ser fornecido através da admissão, junto com o combustível;
– Pelo óleo ser fornecido junto com o combustível, deve haver compatibilidade química entre ambos, incluindo boa solubilidade. Como este óleo atrapalha o processo de queima do motor, ele precisa ser fornecido em pequena quantidade;
– Como o óleo é fornecido em pequenas quantidades e se perde pelo escapamento, ele precisa ser bastante aderente aos componentes mecânicos para não ser facilmente arrastado pelo ar turbulento que atravessa o motor;
– Motores de 4 tempos usam bronzinas. São mancais do tipo hidrostático, onde as peças mecânicas são separadas por um filme fino de óleo pressurizado para manter baixo o atrito. Mas o motor de 2 tempos não possui circuito fechado de óleo pressurizado e o óleo fornecido tem vários compromissos paralelos além do de puramente lubrificar. O tipo de mancal que suporta esta característica de lubrificação é o rolamento, especialmente os de rolo;
– Rolamentos exigem montagem perfeitamente circular e sem emendas das pistas de rolamento e perfeito alinhamento dos rolos, portanto não podem ser bipartidos para montagem, obrigando o uso de bielas integrais;
– Como as bielas não podem ser desmontadas, o jeito de se montar o virabrequim completo é tornar o virabrequim composto por partes separadas e depois montadas para formar o conjunto;
– Num motor de 4 tempos, o virabrequim é montado sozinho no bloco, e os conjuntos de pistão e biela são introduzidos no cilindro pelo lado do cabeçote e posteriormente a cabeça da biela é fechada para montá-la no munhão respectivo no virabrequim. Como no motor 2 tempos a biela já está montada no virabrequim, o pistão também precisa estar montado na biela antes da montagem do conjunto móvel, e o pistão precisa ser introduzido no cilindro pelo lado do cárter;
– No motor de 4 tempos usa-se uma cinta que comprime os anéis no pistão para não travarem a entrada deste no cilindro. No motor de 2 tempos também se usa uma cinta, mas a base do cilindro precisa oferecer uma conformação que ajude a a introdução do pistão no cilindro e proveja espaço para retirar a cinta.Como o leitor vê, no motor 2-tempos uma coisa leva à outra. Quando se repara ou se prepara um motor desses, mexer em um detalhe pode implicar em mexer em muitos outros.
No caso do motor DKW vemos o quanto o motor é simples. Essencialmente existem apenas 7 peças móveis, fora as peças acessórias. Parece um motor fácil de reparar ou transformar, mas não é. Os detalhes são sutis, mas a inter-relação entre eles é muito forte. Então, “dar um tapa” para arrumar um motor desses qualquer mecânico fazia, mas fazer um serviço de excelência era somente para os mecânicos mais qualificados.
O caso dos motores Diesel 2-tempos
Embora eu esteja reservando os modelos exóticos deste tipo de motor para um post posterior, chegamos num ponto onde podemos entender o por que das grandes diferenças entre este tipo de motor 2-tempos tradicional, a gasolina, e os motores Diesel de 2 tempos.
Vimos que este tipo de motor não possui capacidade de aspiração natural de mistura para a câmara, que é um motor que trabalha em constante deficiência de lubrificação e que por isso mesmo gerava desgaste prematuro dos seus componentes.
Vamos voltar no tempo, entre as décadas de 1920 e 1930, em pleno período entre-guerras. Após a Primeira Guerra Mundial, o mundo desenvolvido entra em grande frenesi econômico e após a crise de 1929 os espíritos nacionalistas se acirram. Grandes metrópoles se formam, e há a necessidade de uma lojística de abastecimento para estas cidades. Também é um período onde todos pretendiam manter forças mecanizadas bem como uma logística de guerra. Isso exigia motores potentes para caminhões, tanques e navios, além de geradores elétricos móveis, grandes bombas de recalque de água etc. Um Diesel era uma opção melhor que um motor a gasolina para essas aplicações.
Esses motores precisariam ser fáceis de fabricar, confiáveis e fáceis de manter, mesmo nas condições mais desfavoráveis. Para estes motores Diesel havia a opção dos motores de 4 tempos assim como os de 2 tempos.
Numa época onde a tecnologia de fabricação ainda engatinhava e a mão de obra qualificada era escassa, fabricar e reparar motores de 4 tempos de grande porte em larga escala era um desafio.
Havia os motores de 2 tempos, fáceis de fabricar, fáceis de manter, mas eram pouco duráveis pelas más qualidades de lubrificação. Além disso o sistema Diesel não se dava bem com lubrificação de perda total. O ideal seria um motor com lubrificação de motor de 4 tempos mas com a simplicidade, robustez e potência dos motores de 2 tempos.
A reavaliação dos motores de 2 tempos mostrou que a dificuldade de lubrificação estava ligada ao uso do cárter como bomba. Se um outro sistema de bomba de ar fosse instalado, a parte baixa dos motores 2 tempos poderia ser idêntica ao dos motores de 4 tempos, incluindo um sistema de lubrificação forçada. A solução veio com a adoção de um compressor Roots no lugar da admissão pelo cárter. Era um componente a mais e de fabricação cara para a época por exigir precisão nos componentes, mas seu custo era justificável pelas vantagens que trazia. O motor tinha válvulas de escapamento no cabeçote, já que não havia janelas nos cilindros para isso.
Nascia assim os grandes motores diesel de 2 tempos, muito utilizados durante a Segunda Guerra Mundial e até hoje nos navios de grande porte.
Como uma conversa puxa a outra, poucos anos após a guerra, havia muitos excedentes de material bélico sendo sucateado pelo mundo todo, mas principalmente nos Estados Unidos. Isto significava que muitos compressores Roots em perfeito estado valiam pelo metal que continham. Também havia toda uma geração de jovens que aprenderam mecânica nas forças armadas e que levaram a profissão e o entusiasmo para a vida civil. Daí a perceberem que montar um compressor entre os cabeçotes de um motor V-8 era algo até natural para fazer um brinquedo divertido foi um passo. O resto é história.
Bom, melhor parar aqui. Se deixar, esta conversa vai para muito além dos 2 tempos.
AAD
Motor DKW Arquitetura 3 cilindros em linha, 2 tempos Combustível Gasolina comum 87 RON Cilindrada 981 cn³ Diâmetro e curso 74 x 76 mm Potência 44 cv a 4.500 rpm Torque 8,5 m·kgf a 2.250 rpm Taxa de compressão 7,5:1 Mat. do bloco/cabeçote Ferro fundido/alumínio Arrefecimento A líquido, circulação por termo-sifão Comprimento da biela 145 mm Relação r/l 0,26 Formação de mistura Carburador Solex 40 ICB Sistema de ignição A bateria por ruptor, individual