Era uma tarde morna de verão. O sol se punha e o céu tinha pequenas e ralas nuvens flutuando isoladas, discretamente lindas na abóbada azul. Logo as primeiras estrelas seriam visíveis. A janela do Karmann-Ghia do meu tio Roberto estava aberta e eu, criança de uns sete anos, com o braço para fora me divertia em ondulá-lo conforme minha mão em velocidade atacava o ar. Ela subia e descia e eu estava tranqüilo e feliz. Daria tempo de cair na piscina dos meus avós. Daria tempo de dar aquelas mergulhadas fundas que eu tanto gostava e ainda tanto gosto.
O Karmann-Ghia era cinza escuro, tinha rodas cromadas e o motor, agora sei, era um 1200. Naquele tempo, começo dos anos 60, o motor de toda a linha Volkswagen era só um, o 1200. O Fusca do meu pai era 1200. A Kombi também tinha o mesmo motor. Então, o mesmo 1200 servia para o utilitário, para o familiar e para o esportivo, e tudo bem. E também servia para os carros de corrida, como os Fórmula Vê, para os quais, diziam, um dos segredos era colocar-lhes motores que vinham sendo usados nas Kombi, porque o trabalho pesado os deixava “soltos”, com menor atrito de funcionamento, daí rendiam mais.
Mesmo assim, com esse singelo 1200, com 36 cv (potência bruta, a líquida é 30 cv), o Karmann-Ghia andava bem. Era um esportivo aerodinâmico e meu tio Roberto o guiava como um esportivo, tocando rápido, explorando o pouco motor e o pouco pneu. Tínhamos menos recursos, o que nos levava a exercer o próprio talento. É claro que comigo e meu irmão no carro meu tio não barbarizava. Mas nem por isso é que ele deixaria de andar rápido. Afinal, estávamos num esportivo. E como eu gostava disso!
Essa cor cinza-chumbo não era original do Karmann-Ghia. Era comum pintar o carro de outra cor. O sujeito enjoava daquela cor, ou daquele carro, então ele o pintava de cor diferente. Alguns pintavam de outra cor para dizer que tinham trocado de carro. No caso desse Karmann-Ghia do meu tio, ele na certa o pintou com outra cor por outro motivo. Na certa foi por causa de uma de suas estrondosas “cacetadas”. Esse meu tio Roberto, vivo até hoje, vivia dando as suas — como se dizia — cacetadas, chapuletadas. Sobreviveu a elas, creio, devido ao estreito relacionamento de minha avó com os anjos da guarda. Só pode ser. Afinal, como um sujeito pode sobreviver após entrar de Gordini com tudo na lateral de um trólebus? Era madrugada paulistana e meu tio vinha de uma festa. Vinha lascado pela rua Groenlândia e pintou farol amarelo no cruzamento com a Av. Europa. Acelerou, de 3ª marcha meteu a 4ª, e continuou acelerando para passar antes do farol avermelhar. Nisso, descendo, vindo da rua Augusta, apareceu o trólebus da CMTC, aquele ônibus mastodonte silencioso de motor elétrico que pegava energia nos fios esticados por cima das ruas. E não deu outra, nada a fazer a não ser cacetar. E catapimba! A tal cacetada, CRASH! E essa foi tão forte que o trólebus foi parar na calçada do outro lado da rua e começou a soltar uma fumaceira de coisa lá dentro pegando fogo.
Bom, até que diante da cacetada, cuja foto saiu em capa de jornal, o estrago não foi muito grande para o lado do meu tio. Um de seus joelhos ficou em frangalhos, parecendo peças malucas de caleidoscópio, e o escalpo do crânio foi cortado entre as orelhas e lhe caiu sobre a testa. O pior, diz ele, foi não ter desmaiado, o que lhe seria um alento; daí ele acordado ter sofrido dores que só um índio para agüentar. Tiraram-no do meio dos ferros, enfiaram-no num carro e chisparam para o Hospital das Clínicas.
E nessas horas sobrava para o meu pai, que era doze anos mais velho que o tio Roberto e fazia o papel de um segundo pai para ele. Meu tio dera ao hospital o telefone de meu pai, e não o de meu avô, para não assustar os velhos. E nessas lá foi meu pai procurar de novo o irmão no meio daquele monte de gente gemendo acidentada que costuma aparecer nos hospitais nas madrugadas de domingo. Meu pai era bom para dar bronca. Eta homem para dar uma bronca bem dada! Imagino a que meu tio levou, coitado. E o duro é que não tinha como meu tio explicar ao meu pai esse negócio de correr com os carros, de se arriscar. Meu pai achava pura estupidez. E ainda bem que achava. Daí que misturei a gana de correr de um com a razão de outro e sempre tratei de correr sem que a razão me abandonasse. Daí que nunca me vi em situações incorrigíveis por ter dado moleza para o azar. Bom, até agora foi assim. Talvez, envelhecendo, caducando, eu libere os controles e faça besteiras.
O meu braço subia e descia janela afora do Karmann-Ghia cinza-chumbo rodas cromadas pneus brilhantes do meu tio. Conforme os dedos de minha mão em concha apontavam para cima ela subia e levava meu braço. Ao apontá-los para baixo, ela descia. O vento semicerrava meus olhos. O caminho era pelo Morumbi, o sol, já cansado de brilhar, se punha, e a tarde estava morna do calor que ele nos dera. Ainda não haviam feito a marginal do rio Pinheiros, nem a do rio Tietê, daí que para irmos para o Brooklin, onde meus avós moravam na casa com piscina, meu tio, que tinha ido nos buscar, preferia ir pelo Morumbi para poder passar por aquelas curvas gostosas em sobe e desce das cercanias do Palácio do Governo. Não tinha trânsito. Não tinha sinais. A gente não parava. A gente não precisava de ar-condicionado, as janelas ventavam. Não havia muito barulho. E dava para ouvir o ronco legal que faziam os dois tubos de escapamento sem miolo do Karmann-Ghia.
Estes dias passei por lá, pelo mesmo lugar. Foi chato.
AK