“Uma das experiências automobilísticas mais marcantes da minha vida foi ao volante de um roadster Arnolt-Bristol. …ela era ágil e forte, obediente e fiel. Era encantadora, e eu certamente a teria a levado para dentro de casa à noite, se a largura da porta da frente permitisse, tal era o lado dinâmico da criatura. Entoar odes poéticas sobre ela é o mínimo que posso fazer, então e por todo o tempo.” – Griffith Borgeson, em retrospecto para a revista Special Interest Autos, dezembro de 1992.
Borgenson, um dos maiores historiadores automobilísticos que já existiram, era um jornalista tarimbado quando conheceu o Arnolt-Bristol Bolide na primavera de 1956. Editor da revista Sports Car Illustrated (que depois mudaria o seu nome para Car And Driver), vinha de uma vasta experiência com clássicos hoje imortais, mas então apenas carros novos recém testados: Jaguar XK 120 e 140, Mercedes-Benz 300SL e Porsche 550 Spyder. Como todo jornalista experiente, não era facilmente impressionável, mas o Arnolt-Bristol o pegou de jeito: gostou tanto que comprou um para si, e o usou no dia a dia por seis anos, só se separando do carro quando emigrou para a França em 1963. Somente este fato já chamaria a atenção de qualquer um, mas ele não foi o único: ler um teste contemporâneo do carro é ouvir uma apaixonada homenagem a um carro apaixonante. Walt Woron, da Motor Trend, disse que o que o pequeno carro podia fazer numa pista de corrida era “…simplesmente fenomenal.”
O carro existiu por pouco tempo, e apenas 142 foram produzidos. Por qualquer lado que se veja, foi um fracasso comercial e uma nota de rodapé no grande esquema das coisas. Mas ainda assim, por força de sua famosíssima habilidade de encantar os mais experientes motoristas de sua época, se mantém desproporcionalmente famoso e desejado. Uma lenda sussurrada apenas por conhecedores, largamente desconhecida do grande público apesar de sua grandeza relativa.
E não podia ser diferente, conhecendo a história de como surgiu: um desenhista italiano lendário mas que viveu no ostracismo; um empresário americano “larger than life” que morreu cedo; a mais esquecida das marcas puro-sangue inglesas; uma longínqua ligação com a Bavária. Uma história confusa, mas que gerou algo que convergiu todas as melhores qualidades de todos os envolvidos de uma forma única e impossível de ser repetida. Forças do acaso, intervenção divina ou pura coincidência, não importa: BMW, Bristol, Bertone e Arnolt criaram algo único, um sensacional legado para todas as pessoas incríveis que participaram de sua criação. E elas não foram poucas.
Origens Bávaras
Nossa história começa bem no meio da década de 1930, na Bavária. Fritz Fiedler, o engenheiro-chefe da BMW, desenvolvia um motor que transformaria a jovem empresa, que iniciara produzindo Austin Sevens sob licença apenas 10 anos antes. Até ali, a empresa criara carros interessantes e muito bem construídos, mas nada realmente especial. Mas isto mudaria em breve, graças a Herr Fiedler.
O novo motor era uma pequena obra-prima. Tinha todas as vantagens de um motor duplo-comando de válvulas no cabeçote (basicamente câmara de combustão hemisférica, válvulas opostas, e vela central), mas usava o velho esquema de varetas, para manter o bloco já existente do motor BMW de então, um seis-em-linha de dois litros e válvulas laterais. As varetas do novo motor acionavam as válvulas de um lado, e via alavancas na parte superior, as opostas do outro lado. A admissão era por cima, entre as válvulas, com dutos quase sem curva alguma, fazendo um cabeçote de fluxo excelente, especialmente a altas rotações. O que seria sua vocação: foi criado para o que seria um carro esporte lendário, e um grande vencedor em competições: o magnífico roadster BMW 328 de 1936.
Apesar de deslocar apenas 1.971 cm³ (a partir de um diâmetro e curso de 66 x 96 mm), o pequeno seis-em-linha de cabeçote de alumínio era incomumente suave, girador e vocal para seu tempo. Com três carburadores duplos montados em cima do cabeçote, entre as válvulas opostas, era um motor excepcionalmente alto, o que ali não chegava a ser um problema. Basta olhar um capô de um 328 para se ver que largura poderia ser problema, altura, nunca. Dava em sua primeira versão 85 cv a 4.500 rpm, rotação alta para um carro de produção em 1936. A característica esportiva do motor aparecia também na rotação de torque máximo (12,6 m·kgf), a altas 4.000 rpm. Em competição, mais de 100 cv eram normais, o que, num carro que pesava menos de 800 kg, dava ótimo desempenho, e uma velocidade final acima dos 200 km/h.
O representante da BMW na Inglaterra era a Frazer-Nash dos irmãos Aldington, que vendia-os com a marca Frazer-Nash-BMW, e cuja história já contamos aqui. H.J. Aldington era um entusiasta dos produtos alemães, e fez muitos amigos na BMW. Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, claro, todo contato cessou e antigos amigos se viram em lados opostos de um longo, sangrento e triste conflito.
Muito tempo depois (na verdade uma guerra mundial inteira depois), lá em meados de 1944, quando se tornava óbvio que a Alemanha perderia a guerra em breve, a Bristol Aeroplane Company começou a pensar o que faria no quando o inevitável fim do conflito terminasse também com a imensa demanda de aviões de guerra que a manteve trabalhando intensamente por todos aqueles anos. A melhor idéia parecia uma recorrente nessas situações: produzir automóveis.
H.J. Aldington acaba por juntar o futuro de sua Frazer-Nash ao da divisão de automóveis da Bristol; sua idéia era colocar a Bristol para produzir o cupê BMW 327 na Inglaterra, e a Frazer-Nash usar os motores dele para seus novos carros esporte. As empresas se juntam assim que a guerra acaba, e Aldy deixa seu Frazer-Nash-BMW 327/80 (que usava o mais potente motor do 328) particular com a Bristol para que seja desmontado e analisado à minúcia.
O próximo passo era claro: Aldington devia voltar até a devastada Munique conversar com seus velhos amigos da BMW. Já tinha ido uma vez logo quando acabara a guerra, para encontrar a empresa e a cidade em ruínas, e completa desordem, mas conseguiu retomar os velhos contatos do pré-guerra. Era hora de encontrá-los novamente.
Esta segunda viagem, já a serviço da Bristol, é incrivelmente épica: a empresa disponibiliza um bombardeiro quadrimotor Stirling , um piloto de testes e dois engenheiros de sua divisão de motores para acompanhar Aldy. Partem numa manhã chuvosa da pista de Filton, sede do fabricante de aviões. Mas não vão longe: o piloto começa a passar mal, seu braço direito inchando muito acompanhado de uma súbita e forte febre. Tudo era, na verdade, reação às vacinas que todos tomaram antes da viagem, na época parte do procedimento para visita às regiões devastadas pela guerra.
Desceram em Bruxelas, onde ficaram por três dias esperando a febre do piloto baixar. Partem para Munique mas não conseguem chegar por causa de uma tempestade de neve; desviam então o curso para Stuttgart. Lá chegando, também muita neve e gelo, e por isto a torre da cidade, operada pelos americanos, não permite o pouso. Tom Smith, o piloto, experiente, cansado, sem paciência, rebela-se vocalmente com a torre e realiza o pouso mesmo sem autorização, em condições terríveis, usando toda sua óbvia habilidade ao manche. Os americanos, nada felizes pela insubordinação inglesa, fazem todos passar a noite no avião, num frio lascado. No dia seguinte, finalmente, conseguem voar até Munique.
Chegando lá, Aldington ajuda a BMW a conseguir manter sua autorização para voltar a produzir motocicletas, temporariamente revogada pelo governo militar por um engano burocrático. Usando sua patente de guerra (tenente-coronel do exército britânico), e muita força de vontade e paciência, H.J. Aldington passa quatro dias enfrentando um caos burocrático militar instalado no país ocupado. Sai desta batalha vitorioso, com um papelzinho importante na mão, para felicidade dos desmoralizados e deprimidos executivos da BMW. Como prêmio, volta para a Inglaterra com todos os desenhos do motor seis em linha do 328, dois motores de competição, e desenhos de detalhes do cupê BMW 327. E assim, sem nenhum acordo escrito, sem nenhuma formalidade além de um aperto de mão, o motor BMW seis-em-linha muda de nacionalidade e se torna um Bristol.
O BMW 327 de 1938 se torna o Bristol 400 de 1947 (o nome propositadamente dá sensação de continuidade), mas o carro está longe de ser uma cópia exata; os orgulhosos engenheiros da empresa inglesa mudam quase tudo, no chassi, carroceria e também no motor. Toda peça é reengenheirada para se adaptar às exigentes normas aeronáuticas da Bristol, a materiais mais nobres usados pela empresa, e seus métodos mais artesanais e cuidadosos. Acaba por criar carros extremamente refinados, bem construídos e sofisticados. E também, é claro, caríssimos, o que acaba limitando bastante o volume de produção.
Arnolt, o maluco-beleza
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, conhecemos o protagonista de outra vertente desta história: Stanley Herald Arnolt, conhecido pelo seu apelido “Wacky”, algo que poderia ser traduzido como pirado, ou maluquinho. Alto, ex-jogador de futebol americano, e sempre com um inconfundível chapéu de caubói, Arnolt era o perfeito estereótipo do empresário americano do pós-guerra. Fez sua fortuna durante a guerra vendendo diversos equipamentos para a Marinha americana, e continuava, no pós-guerra, a se meter numa miríade de outros negócios. Sua fábrica em Warsaw, Indiana, produzia andaimes industriais e móveis, principalmente.
Mas Wacky era também um entusiasta dos automóveis: seu Lincoln Continental ficara famoso por ser equipado com um telefone via rádio, algo raríssimo então. Wacky tinha também um MG TC, e com ele competia em corridas amadoras de carro esporte sempre que podia. O interesse pelo MG acabou por impulsionar mais um negócio, uma revenda de carros ingleses, chamada SH Arnolt, inc. Diz a lenda que Arnolt começou o negócio encomendando nada menos que 1000 Morris Oxfords, o maior pedido individual que a empresa havia recebido até então.
Em 1952 Arnolt resolve viajar pessoalmente à Europa, principalmente para procurar novos modelos de carro para vender. Isto o coloca no mesmo Salão de Turim em 1952 onde um drama se desenvolvia silenciosamente em um pequeno estande ocupado pela empresa de encarroçamento de Nuccio Bertone.
Bertone estava, para ser claro, em maus lençóis. Liderada pela Fiat de Dante Giacosa, a maior parte da indústria italiana abandonava o chassi separado, e com o fim dele, a tradicional indústria independente de carrocerias temia seu fim. Era uma indústria então baseada em pedidos individuais de gente que precisava de uma carroceria para seus chassis comprados de fabricantes diversos; no pós -guerra, com a popularização da venda de carros completos, em todas as faixas de preço, o tradicional negócio de produção e venda de carroceria minguava.
Nuccio Bertone achava que não conseguiria uma saída para aquela situação. Acreditava que, se tudo desse certo e conseguisse vender os dois carros que trouxera ao salão, pagaria as contas restantes, daria adeus aos últimos funcionários e fecharia as portas definitivamente. Era só isso que esperava. Os dois carros nem eram totalmente dele: o representante romano da empresa inglesa MG havia lhe cedido dois MG TC, que foram encarroçados num desenho mais moderno, em versão cupê e conversível, pela empresa de Nuccio. O desenho era de Giovanni Michelotti, subcontratado, visto que Bertone não tinha dinheiro para manter um desenhista na folha de pagamento.
Neste momento, aparece no pequeno estande um enorme sujeito, obviamente americano (chapéu, botas e charuto), olhando atentamente os dois MG. Bertone se aproxima, se apresenta, e pergunta o que achou, com ajuda de um intérprete que andava com o americano. O americano, claro, era Stanley “Wacky” Arnolt. Disse prontamente que adorou os carros e queria comprá-los. Bertone, feliz da vida, começa a explicar que sim, claro, podia vendê-los, mas o chassi era dos revendedores romanos, e a carroceria era dele, et cetera e tal. Wacky responde:
— Não, pera aí, o Sr. não entendeu. Eu quero comprar pelo menos 200 deles, para começar. Cem cupês e cem conversíveis.
Nuccio não entendia inglês, mas de alguma forma conseguiu entender a quantidade de carros que o americano queria imediatamente. Quase infartou. As pernas bambearam e teria caído se o americano e sua turma não o amparassem. A Carrozzeria Bertone estava salva!
Bertone credita este evento sozinho como a fagulha do renascimento dos carrozzieri italianos. Produzir carros em série (ainda que pequena), com desenhos exclusivos e diferenciados, seria o novo caminho dos antigos artesãos de metal da península. Segundo ele, a partir de Arnolt e os 380 MG especiais que acabaram sendo fabricados, tudo mudou e uma nova forma de trabalhar apareceu e floresceu. Uma teoria com a qual é fácil de concordar, e dá uma importância enorme a Arnolt.
Scaglione
E foi essa nova e inesperada prosperidade na Bertone que permitiu a contratação de um desenhista em tempo integral. Franco Vittorio Scaglione era um bem-nascido e educado fiorentino, mas que tinha tido uma vida dura até ali. Seus estudos de engenharia aeronáutica foram interrompidos pela guerra, e em 1941 o segundo-tenente Scaglione era evacuado do front iugoslavo com seu batalhão quando um submarino inglês naufraga o seu navio. Após um dia no mar, é resgatado pelos ingleses, que o tomam prisioneiro. Passa cinco anos em um campo de concentração inglês na Índia, isolado aos pés do Himalaia. A vida como prisioneiro é a fonte de duas características famosas de Scaglione: a saúde frágil, e o controle completo sobre as suas emoções.
Ao voltar a uma Itália destruída pela guerra somente em 1947, decide que não teria paciência para escolas; que ia perseguir sua antiga paixão de desenhar carros como profissão. Acaba por passar algum tempo na Pininfarina, e depois ser contratado por Bertone. Ali desenvolve um estilo único, e segundo Nuccio, “um conhecimento instintivo de aerodinâmica que nunca mais vi igual”. Seu primeiro carro foi um Fiat Abarth 1500, mas Scaglione faria sua obra-prima mais famosa logo em seguida: Alfa Romeo contratava Bertone para desenvolver uma “Berlina Aerodinamica Tecnica” no chassi do 1900, visando explorar as vantagens de uma carroceria mais aerodinâmica em carros fechados. Os Alfa Romeo BAT 5 (1953), BAT 7 (1954) e BAT 9 (1955) resultantes são incrivelmente influentes, e hoje considerados marcos do desenho industrial. Franco Scaglione estava, naquele início dos anos 1950, na fase mais produtiva, criativa e feliz de sua carreira.
De volta à Inglaterra
Em 1953, a Bristol Aeroplane Company resolve lançar um carro mais esportivo e veloz do que os 401 e 402 então correntes. Claro que não chegava a ser um carro esporte; a vetusta empresa de Sir George White nunca faria nada a não ser o que se convencionou chamar de “Gentleman’s express”; um confortável mas capaz e veloz transporte para a bem-vestida e sofisticada aristocracia inglesa.
O resultado, chamado Bristol 404, é hoje o mais desejado modelo de toda a longa história da empresa. Utilizando um chassi encurtado, tinha um entreeixos de 2.438 mm (457 mm menos que um Bristol normal), e era um carro estritamente de dois lugares. A carroceria emulava a origem aeronáutica da companhia, obviamente desenvolvida com um olhar cuidadoso para a aerodinâmica.
Na frente, a grade faz lembrar a recente mania de usar a mesma grade em todos os produtos de um mesmo fabricante, mas de uma maneira bem mais interessante: era uma cópia das admissões de ar do fantástico (e infelizmente natimorto) avião de passageiros Bristol Brabazon, um leviatã de propulsão a hélice que usava nada menos que oito motores radiais Bristol Centaurus de 18 cilindros em duas fileiras e 2.700 hp. Oito!
O 404, é claro, era bem mais modesto, mas não fazia feio. Seu motor de dois litros era, como sabemos, uma evolução do BMW seis em linha “Hemi”; mas desenvolvido pela Bristol para produzir nada menos que 125 cv, e portanto era mais que suficiente para entreter: o peso mais baixo (1.040 kg) do dois-lugares fazia dele o mais veloz dos Bristol, e o motor e o comportamento geral do carro foi amplamente elogiado. Tratava-se de um carro delicioso ao volante, leve aos comandos como todos os Bristol, e capaz de divertir sobremaneira um motorista entusiasta, com seu comportamento controlável em curvas e seu maravilhoso seis-em-linha, entusiasmante como poucos.
Mas, como todo Bristol, era caro demais. Todo o cuidado na engenharia de cada detalhe, e o cuidado aeronáutico com a fabricação de cada componente, tinha um preço. O pequeno cupê de dois litros era um pequeno puro-sangue que não deveria ser comparado a carros produzidos em série sem cuidado algum, imaginavam seus orgulhosos criadores. Mas é claro que o mercado comparava: o Bristol de dois litros custava mais de 6.000 dólares nos EUA, quase o dobro do preço de um Jaguar XK 120, que era dotado de um seis-em-linha DOHC de 3,4 litros.
E foi o que Wacky Arnolt disse ao representante da Bristol nos EUA, quando este lhe apresentou o 404. Mesmo sabendo que os americanos dificilmente pagariam seis mil dólares por um carro de dois litros, Wacky andou nele e achou que realmente era algo bom demais para passar desapercebido do resto do mundo.
Um plano é bolado imediatamente. Arnolt fora tão importante para Bertone que então ocupava o cargo de vice-presidente da empresa. Se a Bristol lhe fornecesse o chassi do 404 a um preço razoável, a Bertone poderia fazer uma carroceria de carro esporte para ele, bem simples e espartana, para baixo peso, maior desempenho e, crucialmente, menor preço. Sem mesmo pegar autorização de Filton, o representante da empresa fecha o negócio na hora.
O resultado disso, chamado Arnolt-Bristol Bolide, custava 3.999 dólares, ainda caro em termos absolutos, era muito mais barato que qualquer outro Bristol. Apesar de estar longe de ser chamado um sucesso comercial, vendeu 142 unidades. Apenas 51 Bristol 404 foram construídos…
O Arnolt-Bristol
Bertone considerava o Arnolt-Bristol uma das maiores criações de sua empresa, algo impressionante falando de um lugar que fez nascer o Lamborghini Miura. O alto motor Bristol, com seus carburadores em cima do cabeçote, foi um grande desafio para Scaglione; ele contornou isso criando uma entrada de ar alta bem no meio do capô, e pára-lamas que também eram altos e tiravam a atenção do meio do carro. O resultado é um carro belíssimo, um triunfo de um desenho bem feito sobre proporções infelizes.
O pequeno pára-brisa, e o desenho de toda a carroceria, foi cuidadosamente desenvolvido por Scaglione com um olho em aerodinâmica. Sentado no banco do motorista, desde que se mantivesse acima de 60 km/h, o motorista nem se molhava em dia de chuva, toda água e vento defletidos pelo pára-brisa. Como ele conseguiu isto, não me pergunte, mas é algo reportado por vários jornalistas da época… Magia?
O carro era especial no interior também: a posição de dirigir era perfeita para direção esportiva, e os bancos eram conchas pronunciadas, que seguravam totalmente o corpo. O carro era extremamente espartano, especialmente na versão mais popular, a “competição”. Vinha sem limpador de pára-brisa ou retrovisores; não tinha teto ou proteção alguma. O que tinha era um bravo seis-em-linha ajustado para dar 134 cv a 5.500 rpm e 17,4 m·kgf a 5.000 rpm, e pouquíssimo peso: 930 kg.
Fazia o zero-a-100 km/h em torno de oito segundos e meio, e chegava a 180 km/h, mas os números dizem pouco de como ele fazia isso. Todos que o dirigiram eram unânimes em dizer que parecia mais rápido, e o som e a suavidade e alegria do motor ao acelerar era embriagante. Era praticamente um motor de corrida, com taxa de 9:1, três enormes Solex de corpo duplo, e que girava até 6.000 rpm.
O chassi Bristol era também excepcional: eixo rígido traseiro localizado por um braço em “V” em cima do diferencial e barras de torção, independente na frente por triângulos superpostos. Freios eram a tambor, mas de grande área de atrito e alta eficiência. A direção por pinhão e cremalheira, outro ponto alto de todos os Bristol, aqui também brilhava. O câmbio tinha 4 marchas, todas sincronizadas. O comportamento do carro, como um todo, era daqueles que dá água na boca a qualquer entusiasta: bem localizado em bancos concha, volante e pedais nas posições corretas, câmbio preciso, motor entusiasmado e vocal. Rapidamente se esquecia a natureza espartana do carro, como nos mostrou Borgeson, que manteve um como seu único meio de transporte, faça chuva, neve ou sol, por seis anos.
Houve 3 versões: o roadster básico, o “de luxe”, que contava com um teto conversível, limpadores de pára-brisa, retrovisores e um aquecedor, e finalmente o caro cupê, que custava quase tanto quanto um Bristol 404, e do qual foram fabricadas apenas duas cópias.
Era um carro único, que viveu pouco tempo, mas, fruto de sua origem variada mas de grande talento em todas as vertentes, incrível. Juntando o que de melhor vinha dos ingleses da Bristol, dos italianos da Bertone e de um americano doido mas inteligente, não podia ser diferente. Uma incrível convergência de talento nunca mais vista.
Mas apesar de tudo isso, não foi um carro fácil de vender. Arnolt vendeu seu último roadster em 1963, ano em que veio a falecer precocemente de infarto aos 56 anos de idade. O que nos leva a uma história muito interessante, que aconteceu em seguida, que foi iniciada pelo interesse de um historiador por seu carro preferido, mesmo depois de vendê-lo.
Os últimos dias de Franco Scaglione
Quando se mudou para a Europa no meio anos 60, Griffith Borgeson, interessado em conhecer mais sobre os criadores de seu adorado Arnolt-Bristol, procura a Bertone e conhece Nuccio; uma série de entrevistas se segue. Culminam em uma série de reportagens publicadas por Borgeson em várias revistas de língua inglesa durante os anos 70 e 80, contando a história de Nuccio e seus desenhistas. Como foram as primeiras no gênero (e detalhadas, bem pesquisadas e definitivas, como era praxe no trabalho de Borgeson), serviram para gerar um renovado interesse nas obras dos artistas do metal italianos.
Enquanto isso, Franco Scaglione sumia. Depois de sair da Bertone em 1959 para criar sua própria consultoria, criou várias obras-primas, a maior delas na minha humilde opinião o magnífico Alfa Romeo 33 Stradale de 1966, talvez um dos mais belos carros já criados em toda a história. A partir de 1964, trabalhou cada vez mais com Frank Reisner, o dono da Intermeccanica, como já contei aqui, a ponto de se tornar sócio da pequena empresa. Sua vida com Reisner foi uma verdadeira montanha-russa, que acabou por acabar com toda a vontade de desenhar do mestre, quando finalmente Reisner faliu irremediavelmente e voltou para o Canadá sem um centavo sequer.
Triste e se sentindo abandonado pela indústria e por todos, a partir de 1976 o grande Franco Scaglione nunca mais desenha nada, e prontamente desaparece da face da terra. Na verdade, se mudou com a família para uma pequena vila perto de Livorno, incógnito. Ficou tão sumido que a imprensa o dava como morto, sempre que se falava dele.
Em 1992, passeando pela Toscana, o jornalista Maurizio Tabucchi topa, para sua completa surpresa, com o próprio. Scaglione, então sofrendo de câncer no pulmão, e muito debilitado, recusa a proposta de entrevista de Tabucchi e pede que sua privacidade seja respeitada. O jornalista, é claro, assim o faz, e de novo nada mais se ouve do recluso desenhista.
Mas mais tarde no mesmo ano, como parte das festividades de 80 anos da Carrozzeria Bertone, os três Alfa Romeo BAT são reunidos e fazem um tour pela Europa. Sem dúvida impulsionados pelas histórias de Borgeson, os carros já eram reconhecidos como obras-primas em todo lugar que eram mostrados. Tabucchi escreve para Scaglione implorando que saísse de seu exílio auto-imposto e viesse a luz novamente, nem que se fosse por uma última vez. Scaglione acaba por ceder, viajar com os carros, e dar várias “últimas entrevistas”. Finalmente parecia feliz, ao meio de suas criações e de gente emocionada por conhecê-lo. Na verdade, foi abençoado com a oportunidade de fazer uma saudação final a seu público, e partir; não muito tempo depois, vem a falecer.
“Medo? O porque um homem teria medo? O acaso governa nossas vidas, e o futuro é completamente desconhecido. Melhor viver como nós podemos, um dia atrás do outro”. – Sófocles, em Édipo Rei
MAO