A razão para este post surge da manifestação do leitor Alberto Costa Neto sobre a coluna do colega jornalista Leão Serva na Folha de São Paulo, cuja argumentação nosso leitor discorda e pediu nossa opinião.
Em sua coluna, Leão Serva alega que a criação e ampliação de grandes avenidas apenas conduzem a mais congestionamentos e elas devem ser evitadas. Para isso, ele se baseia no texto “Empirical Evidence on Induced Traffic” de Phil B. Goodwin, catedrático da Unidade de Estudos dos Transportes da Universidade de Oxford, editado em 1996. Estaria nosso colega Leão Serva correto em suas afirmações tão fora da lógica e do nosso bom senso?
A série “A Inteligência das Máquinas” vem apresentando um conjunto de fenômenos, hoje chamados de “comportamentos emergentes” e “auto-organização”, que violam nosso senso comum mesmo para coisas muito próximas da nossa realidade. O Universo caótico é muito menos óbvio do que aparenta, e isso abre o precedente para que a lógica não funcione e o extraordinário se mostre. Como o trânsito é um fenômeno essencialmente caótico, é preciso muito cuidado com a lógica linear e o bom senso.
A teoria do trânsito induzido
O texto de Phil B. Goodwin se apóia na teoria da demanda de tráfego induzida ou teoria do tráfego induzido. É uma teoria antiga, porém polêmica, com muitos críticos, mas que por vezes norteia políticas de investimento em mobilidade, em especial na infraestrutura viária. A idéia por trás desta teoria é a de que “se oferecermos facilidades, as pessoas virão”.
Para entendermos o conceito por trás da teoria do trânsito induzido, vamos começar com um exemplo comum, que seria a instalação de uma grande indústria numa antiga zona rural de uma cidade. A fábrica é construída, mas as pessoas precisarão ir e voltar do trabalho, matéria-prima precisa chegar e produtos acabados precisam sair de lá. Exige-se então a construção de uma pequena estrada que ligue a fábrica à cidade. Mas se tem gente indo para a fábrica, há a necessidade de alimentação, e isso atrai a instalação de um restaurante. Se os trabalhadores vão de automóvel, instala-se um posto de gasolina. Um supermercado se instala para oferecer facilidades de compras. Tudo isso demanda mais gente e mais logística, aumentando o tráfego da estrada e pressionando para sua ampliação. As facilidades conseguidas por esta fábrica estimula outras fábricas a se instalarem próximas dali, reiniciando todo ciclo, e o crescimento da atividade no local impulsiona um aumento do tráfego na estrada, estimulando sua ampliação. Neste caso é o tipo de uso do local (fábrica) que estimula a construção e a ampliação da estrada.
A idéia por trás da teoria do trânsito induzido inverte o processo descrito. Ao invés da construção da fábrica estimular a construção da estrada e o aumento progressivo da atividade naquela área induzir a ampliação dessa estrada e a criação de outras, pensa-se que a construção da estrada estimulará a instalação da fábrica no local e as ampliações nessa estrada estimulará ainda mais o crescimento da área industrial, e esse aumento naturalmente fará o trânsito na estrada aumentar até saturar. Aí faz-se novo investimento na ampliação da estrada, mantendo o estímulo de crescimento local e conseqüente aumento de tráfego.
Entende-se então que de forma complexa e indireta a instalação e a ampliação de uma obra viária acabe por estimular o próprio crescimento do tráfego que passará por ela. Daí o nome de trânsito induzido.
Embora nosso foco esteja sobre o trânsito induzido, vemos que a idéia é muito mais ampla e cotidiana, abrangendo outras áreas. Não é só a política de oferta de estradas ao local que estimulam a instalação de novas fábricas no local, mas qualquer oferta de infraestrutura, como energia elétrica barata e farta, além de isenções fiscais entre outros benefícios.
É a chamada de Teoria das Demandas Induzidas, uma teoria econômica que serve de base teórica para as vantagens oferecidas pelo governo quando da criação de um polo industrial, por exemplo.
Essa idéia é bastante simples e lógica, mas guarda diversas complexidades que nos levam a muitos questionamentos:
– As pessoas virão se oferecermos qualquer coisa, ou somente se oferecermos algo em particular?
– Quem serão as pessoas que virão? Pessoas que nunca vieram, ou pessoas que vem de tempos em tempos mas que virão mais regularmente se oferecermos esse algo?
– E, ainda mais importante, se não oferecermos nada, ainda assim essas pessoas virão?
A última questão atinge em cheio o cerne dos debates sobre o fenômeno do trânsito induzido. Seria a oferta de benefícios a causa do aumento de demanda de tráfego, ou haveria outra razão?
Os céticos argumentam que o crescimento da demanda por espaço, habitação, benefícios, serviços, e consequentemente por mobilidade são consequências naturais do crescimento econômico. Segundo eles, os responsáveis pelas políticas públicas precisam acomodar o crescimento natural, investindo onde realmente é necessário, e não se comprometendo com as promessas nem sempre realizáveis do esperado crescimento induzido. E se as pessoas estão vindo por qualquer motivo, os responsáveis não tem a obrigação de investir de qualquer maneira?
Há também críticas pelo caminho oposto. Se a mobilidade é induzida pelo desenvolvimento da infraestrutura, então a construção ou a expansão da malha viária é meramente um exercício fútil que alimenta um ciclo vicioso, pois a capacidade adicional obtida com os investimentos será tomada pelo tráfego induzido ao invés de aliviar o tráfego já existente. Não estaria sendo gasto muito dinheiro para se chegar ao mesmo fim (congestionamentos), afetando mais gente, com mais carros parados emitindo mais poluentes, dinheiro este que poderia ser poderia ser melhor investido em qualquer outro lugar? Esta corrente vem ganhando força nos últimos anos, graças aos sucessivos fracassos em pesados investimentos no setor viário.Vejam este exemplo de vídeo institucional crítico às políticas de trânsito induzido
Estas questões vem sendo manifestadas há anos. Por décadas houve a percepção de que os problemas de trânsito, especialmente nos países em desenvolvimento, estavam relacionados com a falta de investimentos na infraestrutura de transportes quando elas deveriam estar à frente do crescimento da demanda, gerando pressões para que essas obras fossem feitas. Entretanto, as experiências em diversas cidades pelo mundo, como Cairo, Xangai, Santiago e São Paulo tem mostrado que o investimento em infraestrutura não necessariamente reduz os níveis de congestionamento. Um bom exemplo é o investimento bilionário na reforma das marginais do Tietê e do Pinheiros em São Paulo, sem que uma melhoria sensível dos índices gerais e locais de congestionamento tenha sido observada.
Há algumas explicações diferentes do por que esses investimentos falham. A primeira é a teoria do trânsito induzido. Outra explica dizendo que o investimento em determinadas vias não elimina os gargalos de outras, que ao saturarem, transbordam essa saturação para as vias novas e ampliadas, e a vantagem oferecida pelo investimento se perde, evidenciando que o investimento deveria ser em toda a malha viária e não em pontos específicos. Uma terceira explicação é a de que uma via saturada limita o fluxo a uma determinada zona abaixo do patamar do fluxo potencial caso não houvesse tal restrição, e que, ao construir uma via nova ou ampliar a antiga, esse trânsito potencial represado é repentinamente liberado, saturando novamente a via com maior capacidade logo após a inauguração da obra.
Todas estas explicações são realistas, mas cada caso é um caso, e mesmo especialistas discordam sobre os motivos do fracasso dos investimentos sobre um mesmo caso, o que só serve para aumentar ainda mais a discussão sem que um consenso seja alcançado.
Entretanto, há um ponto em comum entre os defensores da teoria do tráfego induzido, o dos céticos e a dos críticos. Todas as afirmações que são feitas possuem ressalvas ou condicionantes. Expressões como “dependendo das condições” ou “pode ocorrer conforme as características” estão presentes em todas as citações. Esta observação é importante quando esta teoria é vista sob a ótica científica, pois elimina qualquer relação direta e imediata de causa e efeito. Não adianta simplesmente construir uma estrada para induzir o surgimento de tráfego, se essa estrada liga o nada a lugar nenhum. Sendo assim, qualquer conclusão imediatista e absoluta que toma a teoria do tráfego induzido como base é precipitada e pode estar completamente alheia à realidade.
O texto “Empirical Evidence on Induced Traffic”
Infelizmente não consegui uma cópia completa do artigo original de Phil B. Goodwin, e falta do texto original compromete a análise do processo científico adotado pelo autor, e qualquer crítica ou observação só podem ser feitas ao uso que foi feito de seu conteúdo em outros trabalhos. É assim que esta parte precisa ser entendida. Entretanto há vários textos pela internet que se baseiam neste, de forma que é possível ter uma idéia do que ele trata.
Sobre este texto original, me preocupa em especial o uso das palavras correlacionadas no título (“Empirical Evidence” em contraposição a “Traffic”), pois já evidencia as limitações das suas observações. “Evidências empíricas” demonstra que valores finais foram medidos diretamente sobre uma realidade, sem conhecimento do mecanismo que os gera, e isso aplicado a um fenômeno notadamente caótico como é o trânsito, onde nem sempre a razão e o bom senso prevalecem. Seria o equivalente a medir a saída de uma caixa preta durante algum tempo e afirmar que a partir do comportamento dos dados de saída medidos é possível prever o comportamento da caixa preta em qualquer situação porque, aparentemente, já se sabe tudo sobre o sistema. É uma afirmação arriscada.
Coincidentemente, em uma matéria anterior citei a seguinte frase:
“…
O estudo do trânsito como fluido granular vem se impondo como uma necessidade urgente para o entendimento e controle dos fenômenos do trânsito atual e futuro. Antes, o trânsito e o fenômeno dos congestionamentos eram estudados a partir de ferramentas e dados estatísticos, mas estes não oferecem mais respostas satisfatórias diante do decrescimento exponencial das velocidades médias dentro das cidades.
…”
A fundamentação estatística sobre as propriedades observadas nos eventos estudados sem ter uma noção plena da mecânica interna do sistema é provavelmente a maior falha no artigo citado. Sistemas diferentes operam em condições diferentes, e os resultados de uns poucos não podem ser generalizados para todos.
A estatística é uma ferramenta fantástica, desde que usada dentro de critérios rigorosamente científicos. Sem esse rigor, relações irreais entre causa e efeito podem ser dadas como reais.
Muitos fenômenos são completamente desconhecidos quando os estudos sobre eles são iniciados, e a estatística é uma ferramenta importante na caracterização de muitas das propriedades do fenômeno. Entretanto, quando este limite é extrapolado e passa-se a fazer previsões, a possibilidade delas não se confirmarem é enorme. Daí o risco de se estruturar toda uma engenharia a partir da estatística e ainda tomar decisões importantes a partir dela.
Há, sim, uma relação entre as grandes avenidas e a formação de congestionamentos, mas elas não mantém uma relação direta de causa e efeito como o título do estudo faz parecer. Se assim fosse, bastaria eliminarmos todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades do mundo e teríamos o problema dos congestionamentos resolvidos. Sabemos que isto não é real.
Seguindo o texto do colega Leão Serva, além de outras referências que se baseiam no mesmo texto, fica transparente que o artigo embasa a crítica de que não adianta investir em infraestrutura viária para reduzir os congestionamentos, pois o trânsito induzido através do investimento absorve qualquer melhoria na qualidade do trânsito.
Uma citação do texto de Leão Serva:
“…
O autor revela que em 1938 um estudo britânico já mostrava que logo após a abertura da rota A40, que liga Londres à cidade de Bath, “a nova estrada passou a conduzir 4,5 vezes mais carros do que a via antes existente. Nenhuma diminuição, no entanto, ocorreu no fluxo da estrada antiga e, desde então, a soma da quantidade de automóveis nas duas rotas cresceu consistentemente”.
As duas explicações mais comuns para a aparente contradição são o aumento da frota de veículos e a migração do tráfego para as novas vias.
…”
De imediato, é possível tirar algumas conclusões a partir deste trecho. Se uma nova estrada passou a trafegar 4,5 vezes o tráfego registrado da estrada velha sem que se tenha percebido uma diminuição no tráfego desta última, conclui-se que:
– a frota não aumentou instantaneamente 450% coincidentemente com a abertura da nova estrada, portanto o aumento da frota não pode ser alegada como fator de aumento desse excedente de tráfego;
– se a abertura da nova estrada criou um aumento instantâneo do fluxo de tráfego em 450% e não houve um crescimento da frota na mesma medida, então esse excedente de 450% era um tráfego potencial retido pela limitação de capacidade da estrada antiga;
– se após a abertura da nova estrada o fluxo cresceu consistentemente, conclui-se que as limitações da estrada antiga afetavam a acessibilidade dos locais que ela serve. Quando a limitação foi eliminada, não só o fluxo potencial retido foi liberado, como o interesse e a atratividade dos locais servidos aumentaram.
O fato de haver um tráfego potencial retido de 450%, por si só já justificaria construção da nova estrada. Nem tem o que discutir. E se após a abertura da nova estrada o trânsito cresceu consistentemente, este fenômeno reflete um crescimento da atividade econômica desses locais. São mais oportunidades, mais empregos e maior geração de riqueza nas áreas atendidas por essas estradas. Este não é um aspecto negativo do processo de abertura da nova estrada.
Defender não criar esta estrada porque isso continuaria criando congestionamentos é o mesmo que defender a morte da vaca para acabar com os carrapatos. Não se pode fixar a construção ou não de uma estrada apenas pelo aspecto negativo do congestionamento induzido, mas também pelos aspectos positivos que esse investimento possa trazer. A estrada só não deve ser construída se a soma das conseqüências ruins for maior que as conseqüências boas. É bom lembrar que engenharia é a arte de tomar atitudes onde se ganha de um lado e se perde do outro sempre, mas onde as somas são maiores que as perdas.
O caminho não é esse. Há formas alternativas, muitas delas novas e inesperadas, apoiadas em novas teorias, que promovem soluções melhores.
Enquanto discutimos isso nos campos do teórico e do hipotético, e portanto propenso ao debate e à retórica, não chegaremos a lugar algum. O pior é que esta é uma discussão que busca a racionalidade e a previsibilidade sobre algo tão caótico e não linear quanto o trânsito. Precisamos de um caso real para balizar a até que ponto tais afirmativas acadêmicas tradicionais seriam provadas ou negadas. E um caso real e extraordinário existe, e com resultados espantosamente positivos.
O caso de Seul
Todos reclamamos do trânsito e das autoridades municipais e estaduais que não realizam grandes obras viárias para resolver o problema. Queremos mais túneis, viadutos, e, principalmente, mais grandes avenidas.
Mas, e que tal melhorar o trânsito destruindo grandes avenidas?
Se usarmos o pensamento acadêmico tradicional, de raciocínio linear, se grandes avenidas causam congestionamentos, eliminá-las deve acabar com com o tráfego lento. Loucura? É o que parece, mas foi exatamente o que aconteceu em Seul, capital da Coréia do Sul.
Seul nos anos 1990 apresentava os mesmos problemas de saturação tráfego como todas as grandes cidades do mundo. O rio Cheonggyecheon que corta Seul possuía um grande viaduto sobre o canal, e esta era uma importante via de tráfego para a cidade, com seis pistas de alta velocidade nas margens e um longo viaduto sobre ele, uma importante via de trânsito rápido com capacidade muito superior a de muitas grandes avenidas brasileiras.
Era uma área degradada, com o rio transformado num fétido esgoto a céu aberto, com tráfego intenso e congestionado, muito ruído de motores e buzinas, muito acúmulo dos gases e partículas de escapamento, de gente que estava ali somente de passagem. Um cenário desagradável que conhecemos bem.
O então prefeito de Seul (hoje presidente da Coréia do Sul) Lee Myung Bak propõe um projeto radical: demolir a grande e importante avenida para a recuperação da área. A resistência à mudança foi enorme, principalmente dos comerciantes ao longo da avenida.
Em 1999, iniciou-se a demolição do viaduto, liberando o canal e o concreto demolido foi reciclado e reaplicado na própria obra. Em 2003 iniciam-se as obras de despoluição do rio, de recuperação urbanística da região e do projeto arquitetônico. Três anos depois os primeiros trechos foram entregues ao público e agora, com o projeto concluído, a área do canal de de 80 metros de largura numa extensão de 8 km, totalizando 400 hectares de áreas verdes, sendo hoje uma grande atração turística da cidade. E ainda como bônus houve uma redução de 3,6 graus Celsius na temperatura média em relação ao resto da cidade. Ao invés de um canal aberto de esgoto, o rio, agora vivo e com peixes, oferece água limpa e potável para que as pessoas possam tirar seus sapatos e refrescar seus pés. No lugar da degradação, um local valorizado para o lazer de todos.
Mas, e o trânsito? Que impacto teve a retirada de uma via de trânsito rápido para a funcionalidade da cidade? Por incrível que pareça, apesar da retirada de tão importante via de fluxo rápido, o trânsito melhorou.
Mas para que o trânsito não sofresse, houve muitas intervenções sutis na cidade que normalmente não são tão visíveis quanto o novo parque, mas que mudaram completamente a maneira de se deslocar dentro da cidade. Para que a obra não causasse um colapso no trânsito, a cidade de Seul inteira teve que ser repensada.
Seul, assim como as demais cidades do mundo, possuía uma forma única, acadêmica, de pensar no fluxo de tráfego. Esta maneira de pensar é a base da atual engenharia de tráfego.
Nosso senso comum sempre nos diz que a concentração e a ordenação é o caminho do controle e da estabilidade, e seguindo essa premissa, todas as grandes cidades do mundo são pensadas de uma única forma: criam-se avenidas de grande porte para o trânsito rápido de longa distância, e todas as demais ruas e avenidas recebem uma engenharia de tráfego para alimentar o tráfego entrante e coletar o tráfego que sai da grande avenida. Segundo esta forma de pensar, todos os grandes deslocamentos na cidade devem ser feitos pelas eficientes vias de trânsito rápido, utilizando ruas e avenidas secundárias apenas para chegar até elas a partir da origem ou sair delas para chegar ao destino. Podemos dizer que este é um modelo tipo “árvore”, onde a seiva carregada de nutrientes parte de uma fina ramificação da raiz, sobe pelo tronco largo, concentrado com todo fluxo ascendente, e ao subir, deriva pelos galhos e ramos para chegar na folha final e de lá a seiva com alimento retorna para alimentar as raízes.
O problema com este modelo é que a grande avenida se torna o caminho lógico para todos os motoristas, e todos os trajetos de média e grande distância são feitos através dessas avenidas. Quando há um problema que paralisa a grande avenida, os carros se acumulam nela, causando um congestionamento, travando o resto da cidade. E para causar um problema na grande avenida, basta que ocorra uma restrição à passagem de veículos pela avenida maior que o fluxo demandado naquele instante. Essa restrição pode ser um problema localizado de engenharia, um veículo parado, uma via de saída movimentada que congestionou e causou uma fila de carros que se estende para a grande avenida etc.
As pessoas por trás da recuperação do rio Cheonggyecheon começaram a pensar na cidade de uma forma diferente. Este é um Universo de equilíbrios. O caos nasce da ordem assim como a ordem surge a partir do caos. O trânsito é um fluido, assim como o ar e a água, e ele pode se esparramar e fluir pelas ruas da cidade. A origem do caos do trânsito de Seul estava na maximização da ordem ditada da engenharia de tráfego, caos nascendo da ordem. A princípio pode parecer loucura, mas solução do problema viria da introdução adequada de caos sobre a antiga ordem extrema que regulava o tráfego da cidade.
As obras viárias começaram pela criação de um pequeno semi-anel viário para suportar parte do trânsito que antes usava o viaduto sobre o rio, e de resto, pequenas obras espalhadas por toda cidade facilitando o tráfego local. Mas a grande ideia é a de que ao invés de facilitar o acesso às grandes avenidas como manda a lógica e o bom senso lineares, esse acesso foi dificultado.
Qual a lógica por trás dessas alterações? As grandes avenidas eram o caminho lógico e estruturado para a grande maioria dos motoristas (Yang) e tudo era feito nesse sentido, seguindo a cartilha da atual engenharia de tráfego. Entretanto, a capacidade destas avenidas era limitada (mundo limitado), e o resultado eram os congestionamentos (Yin) quando este limite era alcançado.
A solução é impor mais caos para emergir um padrão mais ordenado. Ao dificultar o acesso dos carros às grandes avenidas (Yin), estas deixaram de ser o caminho óbvio de se deslocar na cidade, e cada motorista agora cria seu próprio caminho. Ao invés do fluxo ordenado e direcionado (Yang) sobre poucas avenidas, agora o trânsito se distribui de forma caótica (Yin) sobre toda malha viária da cidade, e, embora o caminho não seja tão direto e com poucos sinais (Yin), pelo menos os carros circulam livremente (Yang), e o trânsito ficou melhor para todos (Yang). Dá mais trabalho para o motorista atravessar a cidade agora, mas ele o faz muito mais rapidamente do que nos tempos das grandes avenidas congestionadas e raramente fica parado.
Ao invés do modelo acadêmico em árvore, Seul agora tem um sistema viário tipo labirinto sem privilégios para as vias e qualquer caminho é potencialmente tão bom quanto qualquer outro. A soma de caminhos adotados por todos os motoristas faz o trânsito se espalhar por toda malha viária da cidade, sem direcionamentos e concentrações, conseguindo um melhor aproveitamento da malha por toda frota de veículos.
Criando incentivos por um lado e induzindo dificuldades do outro mudou-se o comportamento unitário dos motoristas de Seul, e com isso mudando o macrocomportamento emergente do trânsito de toda a cidade. Yin e Yang, caos e ordem são ferramentas para essa mudança, e ela pode acontecer de formas diversas das que a nossa limitada lógica pode perceber. Este é o caminho para a criação de cidades mais inteligentes e um trânsito com maior fluidez.
E como os técnicos de Seul foram capazes de ir contra todas as vertentes das modernas teorias de trânsito, chegando a uma solução tão eficiente “pensada fora da caixa”? A resposta está na própria bandeira da Coréia do Sul. Isso explica muita coisa.
A velha engenharia de tráfego
Seul parece confirmar a tese que grandes avenidas causam congestionamentos, mas isto ocorre quando olhamos apenas para a reforma do rio Cheonggyecheon. Quando olhamos para o quadro geral, vemos que esta mudança radical fazia conjunto com muitas outras mudanças menores e mais sutis. Entretanto, uma coisa não mudou. Para reduzir os congestionamentos, a cidade precisou ser repensada a partir da mudança na forma como cada motorista pensa seu trajeto.
É a sutileza do que Seul fez que a torna a negação às teorias acadêmicas sobre as quais o trânsito é pensado atualmente. Não foi a remoção da grande avenida que deu conta dos congestionamentos, mas foram as inúmeras pequenas intervenções na cidade que propiciaram alternativas para tornar a velha avenida dispensável.
O exemplo de Seul é um marco não apenas por ser a negação da tradicional engenharia de trânsito, mas também por ser a negação dos modelos dos críticos ao sistema vigente. Ele é a antítese do pensamento linear de causa e efeito, numa época em que os modelos tradicionais vêm falhando na luta diária contra a progressiva degradação da qualidade dos sistemas viários. E é dentro desse modelo de engenharia de trafego, que tem fracassado em atender as necessidades das cidades saturadas e congestionadas, no qual textos como “Empirical Evidence on Induced Traffic” de Phil B. Goodwin estão inseridos.
Modelos baseados em modelagem de dados estatísticos estiveram em moda nos anos 1950 e 1960, mas falharam fragorosamente. Havia modelos econômicos, políticos, sociais, ecológicos, meteorológicos e toda sorte de modelos que tratavam de fenômenos que hoje entendemos como caóticos. Entretanto, devido à falta de modelo melhor ou do apego aos velhos métodos, eles são reeditados com novos números para orientar as novas decisões. Entretanto, esses modelos são retrocessos e nunca vão dar certo. Eles modelam de forma estática uma realidade em constante mutação, e, se já é complexo confiar nos resultados dentro da faixa medida pelas estatísticas, pior ainda é quando se tomam decisões de longo prazo, onde é preciso extrapolar os valores para além daquilo que já foi medido.
Na ciência e em qualquer outro ramo do conhecimento humano, quando uma teoria falha em explicar fenômenos e propor soluções que funcionem, ela se torna obsoleta e os especialistas precisam encontrar uma nova teoria que explique melhor a natureza daquilo que se observa e se deseja controlar. Muitas das teorias sobre as quais a atual engenharia de trânsito está embasada datam do começo do século 20 ou mesmo antes, sendo que muitas delas não passam de mera síntese da lógica e do bom senso cotidianos. Este modelo nunca foi pensado para entender e resolver os problemas da saturação em larga escala do trânsito das grandes cidades, quando o comportamento macroscópico é inteiramente não linear. Este modelo foi robustecido com a compilação de estatísticas na era de ouro do pós-guerra (anos 1950 e 1960), mas acabaram fracassando em prever o trânsito da décadas de 1970 em diante. Esse fracasso vem impulsionando o surgimento de novas teorias e novas formas de pensar, dentro das quais Seul é um grande exemplo.
A questão é saber como será essa engenharia de tráfego do futuro. Numa matéria futura, teremos um vislumbre desse futuro. Veremos uma ferramenta muito recente que está revolucionando muitas áreas do conhecimento humano, incluindo a engenharia de tráfego. É a moderna Teoria das Redes.
Uma observação importante
O assunto “trânsito” é muito complexo e precisa ser avaliado com todo cuidado para não errarmos quando honestamente tentamos acertar. Pior ainda é quando fazemos dele uma bandeira e tomamos todo tipo de medida populista sem medir as consequências futuras. Ele também não é o melhor lugar para aventuras e experiências onde toda a população vira cobaia. “Guerrinhas” entre “ecochatos” e “autochatos” também não ajudam.
O trânsito em si não é um fenômeno isolado, mas sim é reflexo de algo muito maior, algo que podemos dizer em certo sentido como estando vivo, que é o organismo da cidade. O trânsito não fica ruim apenas porque temos carros demais nas ruas. Os congestionamentos são apenas um dos sintomas que mostram que o organismo-cidade está doente. Não adianta tentar sanar os problemas do trânsito como se fossem exclusivos dele, como preconiza a tradicional engenharia de trânsito, porque isso é tratar o sintoma e não a causa da doença. A solução para os problemas do trânsito só virá através de ações sobre o organismo funcional de toda cidade.
Está na hora de largarmos os modelos antiquados e que não funcionam e, antes de mais nada, começarmos a usar nossa inteligência, recurso que rotineiramente as pessoas esquecem que possuem.
AAD
Obs: Gostaria de me desculpar com o nosso leitor Alberto Costa Neto pela demora na resposta, mas o assunto em si caiu numa profunda rede de teorias econômicas e de engenharia de tráfego que precisou ser estudada, um modelo simplificado de todo conjunto teórico ser criado para explicar o que há por trás daquilo que foi dito, bem como acertos e erros, características e limitações. Antes de mais nada, temos um compromisso com a qualidade de bem informar, e nem sempre isso é compatível com prazos curtos de entrega de matérias.
Também abrimos o espaço do AUTOentusiastas ao colega Leão Serva para usa opinião e o debate democrático e construtivo.