O que esperar de um rapaz que começou a seguir o mundo do automobilismo por convívio com seu tio a bordo de um Dodge com motor Hispano-Suiza aeronáutico? Com certeza seria alguém que deixaria sua marca na história ao automóvel.
Briggs Cunningham nasceu em 1907 nos Estados Unidos, esteve envolvido com barcos, carros e corridas desde jovem, mas demorou um pouco a tomar partido como fabricante e ter sua própria marca, a qual o imortalizou.
Sua família era rica, seu pai era banqueiro e diretor da Pennsylvania Railroad, a ferrovia da Pensilvânia. Na sua lua de mel, foi com a esposa a Mônaco, onde coincidentemente estava se realizando o Grande Prêmio de 1930, vencido por René Dreyfus num Bugatti Tipo 35. Ver de perto a corrida em Mônaco foi mais uma força para que ele seguisse carreira no automobilismo.
Sua amizade com os irmãos Collier, fundadores da associação norte-americana de pilotos, que viria a se tornar a atual SCCA (Sports Car Club of America), traria mais tempero para sua jornada no mundo dos carros de corrida. Com eles, começou a correr em provas amadoras, logo passando para corridas internacionais.
O lado criativo de Briggs, que com certeza teve forte influência de seu tio e o Dodge-Hispano-Suiza, criou em 1939 um carro que batizou de Bu-Merc, um misto de Buick e Mercedes-Benz. Usando um chassi de Buick Century do mesmo ano com o motor original oito-em-linha de 5,2 litros preparado e reposicionado para melhorar a aerodinâmica e o centro de gravidade, a parte mecânica era robusta e potente. A carroceria veio de um Mercedes-Benz SSK acidentado. O carro teve bons resultados nas mãos de Cunningham e de Miles Collier até o fim dos anos 1940.
A vontade de Briggs era correr na 24 Horas de Le Mans, o maior e mais reconhecido desafio automobilístico que um piloto poderia enfrentar numa dura prova de resistência e velocidade. Briggs tinha contato com Luigi Chinetti, o famoso representante da Ferrari nos EUA e vencedor da 24 Horas em 1949. Como Briggs foi o primeiro a importar um Ferrari para correr nos EUA, o contato com Chinetti era inevitável, e este convidou-o a competir em Le Mans com dois carros em 1950 e condicionalmente em 1951, caso conseguisse terminar a primeira prova.
Esta era a chance de Cunningham chegar à Europa e colocar seus carros entre os melhores. A primeira tentativa foi converter um Ford para receber o motor V-8 OHV (sigla em inglês que indica comando no bloco e válvulas no cabeçote) da Cadillac, este mais potente, moderno e confiável, porém os comissários técnicos de Le Mans barraram a inscrição do carro na corrida por ser modificado demais para a categoria.
A ideia de usar o motor Cadillac não saía da cabeça de Cunningham. Ele sabia que esta era uma das melhores opções que tinha disponível. A solução era correr com Cadillacs completos. Dois modelos Série 61 foram comprados para serem preparados para a corrida, já com a boa base do chassi com suspensão dianteira independente, molas helicoidais e bons freios.
O primeiro, equipado com câmbio manual e uma bela carroceria cupê, foi enviado para a Frick-Tappett Motors, que havia preparado os “Fordillacs” de Briggs. O Coupé de Ville recebeu poucas modificações, como carburação dupla, remoção de peso de itens desnecessários, dutos de ventilação para os freios e um tanque de combustível de maior capacidade. O próprio regulamento não permitia muitas modificações no chassi e principalmente no motor, que deveria ter todos os componentes internos originais da fábrica.
Este seria o carro mais conservador da equipe de Cunningham, que usava mecânica conhecida e a estrutura do carro era intacta. Mas como Briggs não conseguia se conter e tinha que inventar alguma coisa diferente para a corrida, e o segundo carro foi mais arrojado.
Como o regulamento permitia modificações de carroceria, o Cadillac foi todo desmontado e aos poucos uma nova carroceria foi moldada sob a supervisão de Howard Weinman, engenheiro aeronáutico. Os recursos técnicos para o desenvolvimento eram limitados se comparados com hoje em dia, então era tudo quase que na base de tentativa e erro.
Com a ajuda de engenheiros aeronáuticos da Grumman Aircraft e um túnel de vento em escala reduzida, a nova carroceria foi concebida, visualmente bem mais aerodinâmica que a original, agora feita em alumínio para redução de peso. A velocidade máxima era de 220 km/h. O novo carro era 20 km/h mais veloz na reta que o irmão que não passou pela cirurgia plástica. O motor teria cinco carburadores, maior taxa de compressão e também usava câmbio manual com alavanca na coluna de direção.
Esta seria a arma secreta de Briggs na 24 Horas de Le Mans de 1950, um carro veloz e resistente, mas será que ele seria capaz de brigar de igual para igual com os competidores europeus? Jaguars, Austin-Healeys, Delages, Aston Martins, Talbot-Lagos, todos carros esporte com fama e veteranos nas 24 Horas.
Com os dois carros no circuito de La Sarthe, de 13,469 km, tanto o público como as demais equipes pararam para ver os dois elefantes americanos. O Cadillac de carroceria original, apelidado de Petit Pataud (algo como o Pequeno Desajeitado), seria pilotado pelos irmãos Miles e Sam Collier com o número 3, enquanto que o carro especial de Briggs Cunningham e Phil Walters, apelidado de Le Monstre (O Monstro) correria com o número 2.
O bom humor dos americanos e o clima de amizade conquistou os rivais europeus, e logo a equipe Cunningham caiu nas graças do povo francês. Os torcedores e mesmo as equipes torciam para que a empreitada americana fosse bem sucedida. Não esperavam muito desempenho dos Cadillacs, mas eram bons camaradas.
Para a corrida, os Cadillacs receberam sensores para monitorar a temperatura dos tambores de freio, do diferencial e da transmissão, indicando possíveis superaquecimentos pro meio de indicadores no painel de instrumentos. Também receberam rádios comunicadores para que os carros tivessem um canal de comunicação.
Na corrida, os dois Cadillacs mantiveram um ritmo firme e constante. O Le Monstre não rendeu tão bem como seria esperado, e o Coupé de Ville era mais rápido no tempo de volta, mesmo sendo mais lento na longa reta Mulsanne (6 km) por conta da grande carroceria que gerava bastante arrasto.
Logo no começo da corrida, o Le Monstre bateu e ficou preso em um banco de areia, perdendo quase cinco voltas em relação aos primeiros. Ironicamente, Miles havia dado a ideia de carregar dentro dos carros uma pá para momentos de crise como este, mas foi descartada por Briggs por “ser uma besteira”, e ele teve que desatolar o carro do banco de areia com as mãos.
O Coupé teve problemas ao longo da corrida também, com problemas de alimentação de combustível nas curvas por conta da captação inadequada dentro dos tanques e da quebra no câmbio que inutilizou a primeira marcha. Sorte que o V-8 tinha torque suficiente para empurrar o Cadillac pelo circuito que possui poucas curvas lentas.
Os dois Cadillacs de Cunningham terminaram a corrida, o Coupé em 10° e o Le Monstre em 11°, à frente de carros muito mais velozes. A torcida e os demais pilotos saudaram o feito dos americanos como se fosse uma vitória. Cunningham conseguiu, inclusive, terminar na frente dos quatro Ferraris da equipe de Luigi Chinetti.
Não foi um grande resultado em termos de posição de chegada, mas pensando nas condições que os carros foram concebidos e que eram dois Cadillacs de 1950, não exatamente leves e tão pouco esportivos, foi uma vitória para a equipe.
Depois do bom resultado em Le Mans, Cunningham teve certeza que poderia criar seus próprios carros para competir com os europeus, uma vez que não havia carros competitivos feitos nos Estados Unidos na época. Briggs assumiu o controle da oficina Frick-Tappett Motors e transferiu as operações para a Flórida.
No final de 1950, o primeiro protótipo de sua marca foi concluído. Com chassi próprio e o mesmo motor Cadillac V-8 dos que utilizou em Le Mans, o protótipo foi chamado de C-1. Apenas um carro foi feito nesta configuração, pois a Cadillac não venderia mais motores para a Cunningham. Entretanto, a Chrysler sim.
O novo motor seria o V-8 FirePower de 331 pol³ (5,4 litros) feito pela Chrysler que equipava o novos New Yorker e Imperial, presente na lista do MAO dos motores Hemi. Com as modificações necessárias para usar o novo motor, o carro foi reprojetado e chamado de C-2, e a versão de corrida de C-2R. Em Le Mans no ano de 1951, dois carros C-2R foram inscritos, um terminou em 18° e o outro não completou a corrida.
A história da marca e dos modelos Cunningham de fabricação própria merece ser contata com mais detalhes, pois junto com Carroll Shelby, este foi um dos pioneiros na produção independente de carros esporte nos EUA, e terá um post especial em breve.
MB