Na Parte 3 da série da KOMBI CLIPPER foi deixado um gancho para Kombis que, quase 40 anos atrás, serviram especificamente às nossas Forças Armadas realizando tarefas que possivelmente não eram muito convencionais. Vamos tratar de dois exemplos emblemáticos de Kombis alistadas no Exército Brasileiro, uma que, ao que tudo indica, foi do extinto SNI – Serviço Nacional de Informações, e outra que era uma oficina volante.
Praticamente desconhecidos, um modelo de 1976 provavelmente circulava de maneira anônima, misturada entre milhares de outras Kombis no centro das grandes cidades e outro, de 1977, que provavelmente só deixava os quartéis em caso de exercícios militares acompanhando o deslocamento de canhões antiaéreos. Não há registros disponíveis para consulta sobre que serviços eram efetivamente realizados por esses veículos, daí por isso mesmo, principalmente no caso de um deles, o terreno é fértil para que o imaginário popular crie versões e/ou histórias que se inserem exatamente no nosso passado recente e que marcaram de maneira indelével a história do nosso país.
O primeiro modelo a ser apresentado é uma Kombi Furgão da qual possuímos fotos de dois exemplares: um deles em perfeitas condições de uso, e outro, que foi retirado de serviço, jazia em uma área específica para acomodar viaturas “descarregadas”, termo próprio do jargão militar. Como não conseguimos obter qualquer registro do tipo de serviço prestado por essas viaturas, o imaginário começa a funcionar, sempre associado às características similares de ambos os veículos, o perfeito para uso e o “descarregado”.
Vamos às características: Kombi furgão, forrada internamente (inclusive o vidro traseiro) com material para isolamento termoacústico (espuma forrada com vinil preto), contendo pequenos alçapões para ventilação e vigília. A cabine é isolada do restante da carroceria, existindo apenas uma pequena portinhola para comunicação interna com quem ia no banco dianteiro. No compartimento do motor ela possui alternador em vez de dínamo e previsão para duas baterias, certamente porque durante sua utilização deveria haver um maior consumo de energia. A cor sóbria, bege, favorecia a que elas passassem despercebidas, misturadas no meio de outros carros.
Falemos um pouco do veículo “descarregado” que era originalmente azul Firenze e foi, em algum momento, pintado de bege, uma cor mais neutra e comum, que ajudava na tática de “sumir” de olhares mais aguçados.
Este veículo, que não foi restaurado, e que tem detalhes mais originais do serviço que fazia, em comparação com a restaurada que veremos adiante, pertence ao amigo Fábio von Sydow Fábrega Loureiro, do Rio de Janeiro. Ele é um colecionador e tem uma grande experiência em adquirir veículos em leilões. O fato de que ele também tem uma oficina ajuda muito na recuperação e colocação em serviço dos carros resgatados por ele desta maneira.
O salão da Kombi dele também apresenta uma isolação acústica com uma grossa espuma, com uns 5 centímetros de espessura, sob um papelão coberto com courvin preto; inclusive o assoalho recebeu este tipo de isolação. Com isto o ambiente dentro da Kombi ficava isolado do ruído externo facilitando o serviço de escuta feito através de grampeamento de telefones; a isolação também tinha uma função térmica, resultando numa temperatura menor do que a externa.
Um detalhe, que na verdade poderia ser descoberto por conhecedores de Kombis, eram as venezianas adicionais que foram acrescentadas na lateral esquerda e na lâmina esquerda da porta de acesso ao salão, itens que não eram originais do veículo. Estas aberturas, que normalmente ficavam vedadas por uma tampa de courvin fixada por Velcro, geralmente ficavam fechadas e permitiam não só olhar de uma maneira discreta para fora como fotografar e filmar eventuais “alvos”. As nove fotos que se seguem foram feitas por Hugo Bueno:
Observando o revestimento de dentro do salão desta Kombi vemos os detalhes para o fechamento destas aberturas:
Mais fotos disponíveis, todas feitas quando esta Kombi ainda estava no pátio do Exército:
É surpreendente que esta Kombi, com todos estes detalhes, que são uma prova da existência de tais veículos no regime militar destinados a atividades pouco ortodoxas, foi posta à venda sem o menor cuidado de tirar todas estas “provas” do passado. O Fábio tem toda a documentação de compra desta Kombi, onde é claramente visível a sua origem como oriunda do parque de veículos do Exército, senão vejamos:
Inicialmente apresentamos a parte da relação de veículos daquele leilão, onde o item 21 se refere à Kombi em questão (as cinco fotos que seguem foram feitas com celular e foram enviadas pelo Fábio):
Aí passamos para a Guia de Remessa do Ministério da Defesa – Exército Brasileiro que identifica o veículo que foi adquirido em leilão pelo Fábio:
Outro documento interessante, assinado por três representantes do Exército, no caso dois primeiros-tenentes e um coronel, é o documento de regularização junto ao Detran, cujo texto diz o seguinte:
“Declaração/Extrato:
Declaro, para fins de regularização junto ao DETRAN, que o Diário Oficial da União – DOU Edição no 228, Seção 3, página 24, de 30 de novembro de 2015, publicou aviso de licitação tipo Leilão, de acordo com o inciso I do Art 21, da Lei no 8.666/93, a realização no dia 15 e 16 de dezembro de 2015, na Estrada São Pedro de Alcântara no 3.506, Magalhães Bastos, nesta cidade, do leilão no 02/2015, do Parque Regional de Manutenção da 1a Região Militar, o qual foi executado naquela data e local, sendo a viatura abaixo mencionada adjudicada a favor da seguinte pessoa física/jurídica“…
A Nota de Arrematação referencia o Parque Regional de Manutenção/1 e descreve, também, o veículo do Fábio:
Lote 21 – VTP-VW Kombi Furgão, 4×2, 1976, Mod 1976, 1T (deixamos de citas as placas e o número de chassi). Segue a reprodução deste documento:
Finalizando este lote de documentos segue o recibo emitido pelo leiloeiro público Pedro José de Almeida:
Uma transação clara e transparente, talvez transparente demais, considerando o que o veículo transacionado representa do ponto de vista histórico.
Uma curiosidade: por uma grande coincidência, um senhor de idade que passava pela rua, quando viu a recém-chegada Kombi na frente da oficina do Fábio, observou seus detalhes — como a isolação interna, comentou que ele trabalhou numa empresa que ficava ao lado do estacionamento destas Kombis “especiais”. Ele comentou que havia várias delas rodando desapercebidas pela cidade do Rio de Janeiro e que para ajudar no seu disfarce elas recebiam logotipos de empresas. Na verdade, o Fábio, depois disto, notou que na porta traseira de sua Kombi se pode notar uma sombra retangular com parafusos nos cantos, sugerindo que placas poderiam ser aparafusadas ali para complementar sua descaracterização.
O Fábio me enviou alguns videoclipes de sua Kombi, que foram reunidos num vídeo que mostra os interessantes detalhes deste veículo que serviu a atividades secretas do SNI:
Já o segundo exemplar de Kombi preparada para trabalho de escuta e campana, que aparentemente foi recuperado por seu estado de conservação, foi anunciado no site de vendas Mercado Livre (de onde as fotos deste exemplar foram tiradas), como sendo de Brasília/DF.
Ao contrário da Kombi do Fábio, esta Kombi tem móveis e alguns equipamentos internos, mas não é possível atestar a originalidade deles, se bem que sua aparência indica que eles encaixam bem nas dimensões do salão.
Mas ela não apresenta as venezianas adicionais que a Kombi do Fábio tem, como mostram as fotos abaixo:
Se bem que a forração interna da lâmina esquerda da porta do salão mostra a previsão para a veneziana que deveria estar na porta:
Mais fotos deste exemplar:
O segundo, e curioso, exemplo de aplicação de Kombis nas Forças Armadas é uma Kombi 1977 de fabricação alemã. Por seu número de código, recebido de um militar, “TE Ofn 4×2 Kombi (Oerlikon)”, foi possível tirar a seguinte conclusão: em meados dos anos 70, o Exército Brasileiro adquiriu modernos canhões antiaéreos com sistema eletrônico de direção de tiro controlado por radar, da fabricante suíça de armamentos Oerlikon, e esta Kombi veio no pacote.
Veja foto de um dos canhões Oerlikon duplo 35 mm fotografado em demonstração de tiro real realizada na conclusão da instrução anual do curso de artilharia antiaérea da 1ª Brigada de Artilharia Antiaérea, Brigada General Samuel Teixeira Primo, no Centro de Avaliação do Exército (CAEx), na Restinga da Marambaia, estado do Rio de Janeiro.
Tais Kombis foram incluídas no pacote de fornecimento, pois eram utilizadas como oficinas móveis para manutenção do conjunto, canhões, servos de acionamento e radares. Uma solução inteligente e econômica, já que uma Kombi podia servir a vários canhões.
Eram conhecidas informalmente como ”Oficina Kombi Oerlikon”, que era o código interno do Exército para esta viatura, como vimos acima. Em março de 1977 e dezembro de 1979, duas notas publicadas no jornal O Globo corroboram o relato acima, quando relatam sobre o equipamento comprado na Suíça.
Seguem fotos da Kombi T2 alemã ano 1977 ainda no Parque Regional de Manutenção da 1a Região Militar, localizado em Magalhães Bastos, Rio de Janeiro.
O interior traseiro vazio, desprovido de bancos ou qualquer tipo de forração, leva a crer que este modelo realmente funcionava como oficina móvel, transportando máquinas e ferramentas, para manutenção dos canhões antiaéreos de fabricação suíça Oerlikon, adquiridos pelo Exército Brasileiro em meados dos anos 70.
As demais fotos deste exemplar destacam as diferenças da T2 alemã com o modelo T1,5 produzido no Brasil (Fotos de Hugo Bueno):
Certamente as Forças Armadas devem ter mais coisas relativas ao uso de veículos Volkswagen nacionais e estrangeiros, para contar, se bem que elas podem fazer parte de segredos que se tem acesso só através de acasos destes, quando estes carros, inocentes ou menos inocentes, são colocados à venda. Mesmo tendo transcorrido tanto tempo, suas cargas históricas permanecem “engatilhadas” e “prontas para serem deflagradas”, como estamos a fazer nesta matéria.
Se você tiver algum causo com veículos Volkswagen nas Forças Armadas Brasileiras, pode enviar para mim que receberei com muita atenção. Sim, pois isto também faz parte da história que pretendemos preservar. O e-mail para contato é o [email protected].
AG
Esta matéria contou com a participação de Hugo Bueno e de Fábio von Sydow Fábrega Loureiro, a quem agradeço, como também a Cézar Pitombo pelas pesquisas que fez no caso da Kombi Oficina fornecida pela Oerlikon.
Os créditos das fotos foram dados no texto da matéria.
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