Cassandra é um dos personagens trágicos da Guerra de Troia. Ela era uma sacerdotisa de Apolo e recebeu o dom da profecia. Porém, ao se recusar a dormir com o deus, este lançou uma maldição para que ninguém desse ouvidos às suas profecias.
Cassandra previu o destino trágico de Troia através do cavalo de madeira deixado pelos gregos e implorou que ele fosse queimado com todo seu conteúdo mortal, mas ninguém acreditou. Até ser tarde demais.
A chamada Síndrome de Cassandra (ou Complexo de Cassandra) se refere a um comportamento social onde uma pessoa nunca recebe crédito pelo que ela diz, mesmo ela dizendo a verdade
A minha Síndrome de Cassandra
Venho fazendo previsões na internet sobre o futuro do automóvel há quase duas décadas. Essas minhas previsões nem sempre são apreciadas porque nem sempre são as mais otimistas ou entusiásticas. “Você só vê a metade vazia do copo” é o que sempre me dizem. Aborrece, mas eu sei do que estou falando. Não sei quanto tempo demora para aquilo se realizar, mas que irá acontecer, disso não tenho dúvidas.
Mas as minhas previsões estão longe das profecias de Cassandra ou das adivinhações da Mãe Diná. Há ciência no processo. Há uma técnica de gestão da tecnologia me dando apoio. Os mesmos pontos de apoio que os fabricantes usam para se manterem à frente do seu tempo.
Há alguns meses, escrevi esta matéria sobre previsões de futuro e limites tecnológicos. Nela faço a seguinte citação:
…
“A questão não é atender alguns requisitos, mas todos ao mesmo tempo. Por exemplo, fazer um motor mais econômico e que atenda com margem a novas legislações de emissões. É fácil fazer um motor mais econômico e menos poluente se abrirmos mão da potência. Porém o mercado irá entender que um motor que antes tinha 160 cv e agora passa a ter 120 cv é uma evolução no sentido da economia e de preservação do meio ambiente? Claro que não. Mas se dermos um jeitinho de contornar as emissões em vez de abrirmos mão da potência, o motor chega lá.
Dentro da premissa de que os motores de combustão terão de agradar a gregos, troianos, romanos, cartagineses, mesopotâmicos, cretenses e egípcios ao mesmo tempo, então chegamos no ponto onde evoluir se torna muito difícil.
É assim que podemos entender o fenômeno do downsizing, onde um motor grande aspirado é substituído por um motor menor com turbocompressor, mantendo a potência. Um motor menor com turbo fornece a mesma potência de um maior aspirado, porém fazendo uso de maior pressão dentro da câmara de combustão, o que é bom para emissões e economia de combustível.
A solução é boa, mas merece duas observações importantes. A primeira é que ela evidencia que se atingiu o limite de redução de emissões feita apenas pela evolução pura dos motores e dos sistemas de injeção como se fez muitos anos, ou seja, é sinal da maturidade extrema da engenharia de motores, que não mais oferece espaço em atender requisitos apenas pela própria tecnologia de motores.
A segunda é observar que downsizing não é uma tecnologia, mas uma estratégia tecnológica. A questão dela ser uma estratégia e não uma tecnologia impõe um limite ao que a medida pode fazer. Não é possível fazer o downsizing do downsizing e, portanto, não é uma estratégia escalável.
Como estratégia vencedora, ela apenas ganhou uma batalha que deu tempo para os fabricantes respirarem em meio a uma guerra difícil de vencer.
…
Se a tecnologia de motores a combustão atingiu sua maturidade de desenvolvimento, para continuar esse desenvolvimento é necessário trocar o paradigma tecnológico, e sutilmente estamos sendo preparados para isso.
Caro leitor, tenha em mente uma verdade. Há pelo menos um século, gerações de engenheiros brilhantes consomem horas e recursos sem limites, avaliando e reavaliando cada mínimo detalhe dos motores de combustão. Não há detalhe que não tenha sido estudado e reavaliado diversas vezes. E dispomos hoje de sistemas de controle eletrônico que vão além dos limites físicos dos próprios motores.
Qualquer melhoria, se fosse fácil, simples e barata de ser tomada, já o teria sido.”
…
“
Sim, esta é uma previsão sobre o futuro do motor a combustão no automóvel convencional. E ela não é positiva, ao contrário do que tantos dizem ou desejam
A materialização da previsão
Estes dias recebi do meu colega de AE, o Marco Antônio Oliveira, mais conhecido aqui pelas iniciais do seu nome, MAO, o seguinte artigo da Road&Track:
http://www.roadandtrack.com/new-cars/car-technology/news/a31163/europe-car-emissions-gas-diesel-bigger-engines/
O título e subtítulo traduzidos da matéria são “A crise das emissões da Europa está causando um retorno aos motores maiores” e “Pequenos motores passam muito bem nos testes de laboratório, mas poluem mais na condução do mundo real. A solução, ao que parece, é mais cilindrada.”
Em resumo, o fim dos pequenos motores eficientes e volta aos grandalhões aspirados. Parece um assunto entusiasta, certo? Mas não é. É um artigo bastante negativo, derrotista até.
A questão parte do escândalo do Dieselgate. Um teste real mostrou que os carros da Volkswagen com motor Diesel estavam emitindo óxidos de nitrogênio (NOx) bem acima das normas porque burlavam o sistema. Embora a trapaça tenha sido descoberta em um carro da Volkswagen, o mesmo teste foi realizado em paralelo com um carro da BMW que também mostrou emissões de NOx elevadas em determinadas condições, o que na época levou à suspeita de trapaça por parte dela também, suspeita depois demonstrada como sem fundamento.
O problema de emissões de NOx do carro da BMW mostrou que a marca era inocente, mas jogou luz sobre um problema ainda mais grave e que ninguém havia notado antes. Os ensaios de testes de emissões exigidos pelas autoridades europeias eram bastante restritos. Eram testes feitos em temperatura ambiente entre 20 e 30 ºC, com motores preaquecidos, em velocidades simuladas em dinamômetro nunca acima de 145 km/h, em rotações nunca acima de 2.400 rpm, entre outras condições. Este não é o mundo real, mas era para ele que as calibrações de fábrica eram feitas.
Já no mundo real, onde uma diversidade enorme de usos feitos fora das especificações de ensaio ocorrem rotineiramente, os motores downsized emitem mais NOx que os velhos aspirados.
Os carros não eram feitos para emitirem menos na sua totalidade, mas sim para passar nos testes.
Alguém lembra que eu disse exatamente isso dos testes dos NCAP? Mais uma vez vejo as coisas através dos olhos de Cassandra…
O futuro não está no downsizing
Com o escândalo do Dieselgate as autoridades europeias começaram a repensar seus procedimentos, e ensaios no mundo real passarão a ser exigidos, e é aí que o problema ocorre.
Motores downsized, com menor cilindrada e turboalimentação emitem menos poluentes se calibrados nas condições específicas dos ensaios de laboratório, mas descobriu-se que em condições reais eles poluem mais que os motores aspirados maiores que substituíram. É um contrassenso.
A forma de reduzir as emissões totais agora, a partir de testes no mundo real seria voltar aos velhos motores aspirados de maior cilindrada, o que seria um franco retrocesso.
O problema se torna mais grave porque os próprios engenheiros das fábricas admitem que não têm uma alternativa técnica viável para substituir a opção do downsizing e nem continuar avançando.
Em depoimento à agência Reuters, Alain Raposo, chefe da divisão de powertrain da Aliança Renault-Nissan, disse: “As técnicas que usamos para reduzir a cilindrada dos motores não nos permitirão mais cumprir os padrões de emissões… Estamos alcançando os limites do downsizing…”
Se por um lado os fabricantes não podem mais confiar nos testes de laboratório para usar os motores de downsizing e nem continuar seu desenvolvimento, por outro lado a solução de curto prazo de retornar aos motores maiores aspirados pode não cumprir as metas de redução do consumo de combustível que tem relação direta com a emissão de dióxido de carbono (CO2). Este gás inerte é tido pela comunidade científica internacional como um dos causadores do efeito estufa (outro é metano, CH4) ao se acumular na troposfera e reduzir a dispersão do calor da Terra, levando ao aquecimento global e às consequentes mudanças climáticas. Segundo especialistas, pelas normas atuais e com testes reais, os motores Diesel downsized abaixo de 1,5 litro e os a gasolina abaixo de 1,2 litro estariam condenados.
A profetisa das fábricas
Há pelo menos 20 anos as fábricas começaram uma sutil abordagem aos carros híbridos e elétricos, uma solução estranha para um meio que mantinha um paradigma de engenharia por mais de um século.
A GM havia testado em campo o GM EV1 a partir de 1995, um veículo elétrico que depois foi descartado. A Toyota lançou no mercado em 1997 a então “loucura” do Prius, o primeiro carro moderno de tecnologia híbrida motor a combustão–motor elétrico e que faz sucesso até hoje. E desde então todos os fabricantes vêm mostrando as arquiteturas de híbridos e elétricos como a solução do futuro, um tipo de evangelização do mercado. Hoje até a Fórmula 1 usa carros híbridos e a FIA (Federação Internacional do Automóvel) promove a Fórmula E, a de monopostos elétricos.
Estariam as fábricas todas malucas e sofrendo dos mesmos delírios? Ou elas sabiam muito bem o que estava por vir e foram se preparando desde então?
Este é um sinal que aprendi a notar e prestar bastante atenção. Quando concorrentes que se digladiam no mercado passam a falar exatamente a mesma língua e apontar uma estranha solução em comum, há sempre uma grande verdade mantida nas sombras, mas que gera todo esse movimento. Então é bom prestar bastante atenção a esse tipo de manifestação.
Aquecimento global, estou olhando para você neste momento com os olhos de Cassandra.
As fábricas nunca disseram uma palavra a respeito e provavelmente nunca irão dizer suas motivações internas, mas prever o futuro é a base da sobrevivência delas no longo prazo. E certamente elas possuem profissionais competentes nesse assunto e devem ter percebido que em algum instante o motor de combustão atingiria um limite de desenvolvimento, exigindo delas uma alternativa. E as alternativas que eles encontraram foram carros elétricos e híbridos. Desde então, eles vem desenvolvendo e demonstrando essas tecnologias, preparando o mercado para quando essas tecnologias chegarem de vez.
Diferente de Cassandra, as fábricas possuem seus próprios departamentos de profecias, e elas acreditam nas previsões que são feitas.
E o que foi mesmo o que eu disse naquele meu artigo?
“… Se a tecnologia de motores a combustão atingiu sua maturidade de desenvolvimento, para continuar esse desenvolvimento é necessário trocar o paradigma tecnológico, e sutilmente estamos sendo preparados para isso. …”
Se poucos entenderam a profundidade desta ideia, acredito que agora ela esteja bem clara.
Previsão feita, previsão confirmada
Era fato perfeitamente previsível há pelo menos uma década, tanto que todos os fabricantes começaram a se mexer pelo menos desse tempo para cá, e agora as primeiras soluções começam a ganhar as ruas, justo quando a questão da legislação está apertando.
Só faltava um evento para marcar o ponto de virada e ele veio no evento do Dieselgate e a consequente exigência de testes em condições reais.
O artigo da Road&Track é direto e claro. Há um esgotamento definitivo da tecnologia de motores se colocarmos a questão das emissões na balança. E as legislações não vão parar onde estão.
Os fabricantes não têm mais saída. Não há um futuro muito longevo para o carro convencional.
A frase do artigo da Road&Track resume tudo: “With tiny engines off the table, electric and hybrid drivetrains become more and more urgent. ” A necessidade por híbridos e elétricos, mais do que nunca, se tornou urgente e haverá mais e mais deles daqui para frente, e menos modelos convencionais até que estes últimos virem peça de museu.
Do jeito como as coisas se apresentam hoje, daqui a alguns anos, ou você compra um híbrido, ou não compra carro algum.
Muitos podem não acreditar nessa previsão, mas isso é parte da Síndrome de Cassandra. Quando acontecer, vou lembrá-los disso.
AAD
Nota do autor: Esta matéria surgiu de um rascunho de resposta ao leitor “Mr. Car” na matéria sobre o Fusion Hybrid, de Carlos Meccia, do dia 3/11 último.