A finita quantidade de petróleo no mundo é um desafio não só para a indústria da mobilidade como também para o automobilismo mundial. Se juntarmos ainda com as severas restrições para controle de emissão de poluentes, é até difícil acreditar que não baniram as corridas de automóveis no atual mundo “politicamente correto”.
As principais categorias do automobilismo mundial estão aderindo com grande empenho à luta contra a poluição e o gasto excessivo de combustível. A F-1 já usa a tecnologia híbrida há quatro anos juntamente com os motores V-6 turbo de pequena cilindrada, 1.600 cm³. Os protótipos da WEC (World Endurance Championship) também são híbridos, com metas de consumo de energia estabelecidas e controladas de perto a cada corrida, na verdade, volta a volta.
Cada vez mais vemos os motores ficando menores e mais eficientes, mas não necessariamente menos potentes. Do ponto de vista de engenharia, é uma arte esta evolução constante que faz pequenos motores renderem igual ou melhor que seus antecessores de maior cilindrada. Ver grandes motores roncando alto e queimando muito combustível será cada vez mais raro no futuro.
Voltando um pouco no tempo, existiu uma categoria nos anos 1960 e 1970 que foi exatamente para o caminho contrário do que vemos hoje, aumentando cada vez mais os motores para extrair potência, e assim foram criados alguns dos mais incríveis carros de corrida de todos os tempos.
Can-Am Grupo 7 (1966-1974)
Nos anos 1960, uma categoria do Anexo J da FIA denominada Grupo 7 regulamentava o que viria a ser um dos mais bem-sucedidos campeonatos da América do Norte, o Can-Am (Canadian-American Challenge Cup), que agrupava corridas nos Estados Unidos e no Canadá, no formato de provas de duas horas de duração, aproximadamente 200 milhas/320 km de distância percorrida.
Como todo evento requer dinheiro para ser feito, no início de sua existência a Can-Am era patrocinada pela S. C. Johnson & Son, fabricante de produtos de limpeza, conhecida por aqui pela cera automobilística Grand Prix e por produtos de uso doméstico como o repelente OFF! e o inseticida Raid.
O campeonato foi concebido por Tracy Bird, o homem responsável na época pelo SCCA (Sports Car Club of America), que uniu o conceito do regulamento do Grupo 7 da FIA com as provas da USRRC (United States Road Racing Championship), o primeiro campeonato para profissionais da SCCA, no começo dos anos 1960. Junto com Tracy estava como consultor o americano Jim Hall, piloto e construtor, famoso pelos revolucionários Chaparral. A união com do SCCA com o CASC (Canadian Automobile Sports Club) originou a ligação dos Estados Unidos com o Canadá para um campeonato único, que seria o Can-Am.
A divulgação do campeonato também foi algo diferenciado, talvez pioneiro nas suas proporções, atraindo um grande público a cada etapa. Até propagandas de rádio com Stirling Moss foram feitas para atrair a atenção para o novo campeonato.
O Grupo 7 compreendia o conjunto de regras da FIA que guiava o campeonato, e basicamente dizia que podia ser usado qualquer motor, de aspiração natural ou superalimentado, qualquer pneu, qualquer carroceria, desde que as rodas fossem cobertas, possuíssem duas portas e dois lugares no carro, além de sistema de freio duplo, motor de partida de bordo e rodassem com gasolina comercial. Não era necessário um número mínimo de carros construídos para homologação, como em Le Mans.
Era quase que um “vale tudo”, com liberdade quase total aos construtores para projetar as máquinas que mais julgassem adequadas para a competição. Ao meu ver, este é o melhor formato de competição, pois a liberdade de criação traz inovações que eventualmente são utilizados em outras aplicações comerciais.
Uma marca conhecida do campeonato, além dos enormes motores quase que pornográficos, foi a acirrada disputa entre construtores. Dentre todos eles (Lola, Porsche, McLaren, Shadow, Ferrari, Chaparral e outros menores) a grande briga era entre Lola e McLaren, depois McLaren e Porsche.
O campeonato em si teve duas fases, uma de 1966 a 1974 e outra de 1977 a 1987. A primeira fase é conhecida como A Era de Ouro (The Golden Age) dos carros esporte da América do Norte. Muitos pilotos de renome mundial participaram das corridas do campeonato, alternando em provas de resistência e F-1, como John Surtees, Phil Hill, Chris Amon e Graham Hill.
Abaixo temos os campeões de cada ano da primeira fase da categoria.
Entre tantos grandes nomes, alguns se destacam tanto como piloto como construtores, e alguns merecem ser citados. Vamos passar por alguns deles em uma série de matérias aqui no AE.
Bruce McLaren Motor Racing Team
O neozelandês Bruce McLaren já era conhecido por sua criatividade e determinação em ter sua própria equipe, além do notável talento como piloto. Seu envolvimento com o automobilismo profissional começou cedo, em 1958 já era piloto da Cooper na F-1, com apenas 21 anos, vencendo seu primeiro Grande Prêmio com 22 anos. Sua carreira na Cooper foi bem sucedida até 1965, quando partiu para a criação de seus próprios carros, tanto de F-1 como de carros esporte. Nascia a Bruce McLaren Motor Racing Team, que perdura até hoje como a atual equipe McLaren.
Na primeira temporada da Can-Am, em 1966, Bruce competiu com sua primeira criação no mundo dos carros esporte, o M1B, que era basicamente um chassi Elva equipado com motor V-8 small block (bloco pequeno, inicialmente Oldsmobile, depois Chevrolet) montado no centro do carro, como era o padrão dos carros da época. O carro era rápido, Bruce era um excelente piloto junto com seu companheiro de equipe, o também neozelandês Chris Amon, mas o M1 não era tão rápido e confiável quanto os Lolas T70 dos rivais John Surtees e Mark Donohue, campeão e vice-campeão de 1966 respectivamente.
Foi uma primeira experiência de Bruce nas competições de carros esporte. Em paralelo, no mundo da F-1, Bruce tinha problemas com a fabricante de motores BRM, que não entregava o novo V-12 no tempo certo, e Bruce teve tempo para dedicar sua equipe na melhoria dos carros esporte, que logo evoluiu para a nova série M6 no ano seguinte, desenhados internamente na McLaren, usando monobloco de alumínio, motor 6-litros com bloco de ferro fundido, cabeçotes de alumínio, injeção de combustível e inaugurando a tradicional pintura laranja nos carros de Bruce McLaren.
Os carros de Bruce McLaren conseguiram ser competitivos e os M6A dominaram a temporada de 1967, vencendo cinco das seis corridas, alternando o vencedor entre o próprio Bruce e seu compatriota Denny Hulme. Daí para frente, os carros laranjas dos “kiwis” — como são chamados os neozelandeses — foram destaque na categoria até o fim da primeira fase da Can-Am, em 1974.
As temporadas iniciais do Can-Am foram dominadas pela equipe de Bruce McLaren, com os Lolas sendo fortes rivais. Os intensivos testes de durabilidade garantiam que durante as corridas os possíveis problemas nos novos carros já fossem conhecidos e corrigidos antes mesmo da bandeira verde. Era uma vantagem perante os demais, que não tinham tanto costume de realizar testes de longa duração entre as corridas para procurar problemas ocultos.
A série de carros seguintes, denominados M8 (do M8A até o M8F), eram cada vez mais rápidos e potentes. O primeiro M8A era equipado com motor Chevrolet 7-litros de 650 cv, já utilizando o conceito de motor como item estrutural do carro. Versões do Chevy tanto com cabeçotes como com bloco de alumínio estiveram em competição, herança do ZL-1 e L-89 e competição, capazes de altas rotações e grande potência.
Mas nos testes do modelo M8D no circuito de Goodwood, em 1970, Bruce McLaren teve um sério acidente quando a carenagem do motor escapou, desestabilizou o carro em alta velocidade e ele bateu forte, vindo a falecer. A equipe continuou o trabalho seguindo as normas de seu fundador, por mais duro que tenha sido o fato para seus colegas.
A competição ficava cada vez mais acirrada, os Chaparral e principalmente os novos Porsche com grandes motores de 12 cilindros e turbocomprimidos eram muito velozes, e os McLaren começaram a perder a hegemonia na Can-Am. Algo tinha que ser feito, e os motores V-8 precisavam ser mais potentes.
A evolução do modelo M8, como projeto completo, passou por diversas versões, com motores cada vez maiores e mais fortes. O motor com o bloco de origem Chevrolet, da série ZL-1 de 7-litros, foi substituído pelo bloco da empresa Reynolds Aluminum, fabricante de componentes de motores de competição. O responsável da McLaren por estes novos motores era George Bolthoff, chefe de preparação de motores da equipe McLaren.
A nova família de motores ficou conhecida como os McLaren-Chevrolet, que começou com 7,6 litros (465 pol³) e chegou até 8,3 litros (509 pol³) do modelo M20, que equipado com injeção de combustível, cabeçotes de alumínio e gerava 780 cv. Há relatos de um 9-litros (565 pol³) usado apenas em classificação por Denny Hulme no modelo M20 no circuito de Riverside em 1972 como forma de tentar ser competitivo frente aos Porsches, mas por questões de durabilidade, para a corrida o 509-pol³ foi utilizado. A robustez do grande motor com o bom sistema de alimentação e coletores davam conta das corridas sem muito sacrifício, com excelente potência.
Como não apenas de motor vive um carro de corrida, os demais componentes foram evoluindo. O monobloco de alumínio ganhou componentes em magnésio para reduzir peso, diversas transmissões foram testadas, inclusive algumas automáticas, mas com destaque para os Hewland, capazes de suportar o torque monstruoso dos V-8. Os pneus cresciam mais e mais, assim como os freios melhoravam, talvez menos do que o necessário, mas ajudavam a reduzir a velocidade dos carros que passavam de 320 km/h.
Muitos testes de aerodinâmica fizeram parte da história dos McLaren da Can-Am, na época uma novidade que todos olhavam com grande interesse. Asas baixas, asas altas, defletores, radiadores frontais, laterais, tudo era testado para melhorar a downforce e reduzir o arrasto aerodinâmico, ganhando velocidade. Neste aspecto, ninguém foi mais arrojado que Jim Hall e seus Chaparral, que falaremos em breve aqui no AE.
Grandes asas e carrocerias com perfis agressivos aumentavam gradativamente as forças aerodinâmicas e, consequentemente, as velocidades dos carros. A teoria das asas elevadas com fixações nos pontos de suspensão foi utilizada, mas banida por questões de segurança, forçando os modelos a ter as asas fixas na carroceria.
Apesar de ser um campeonato norte-americano, demorou para que um piloto nativo fosse campeão, e apenas em 1971 um americano conseguiu o título, justamente com um McLaren: Peter Revson, com um M8F, venceu a disputa contra Denny Hulme, seu companheiro de equipe, e também superou Jackie Stewart com o Lola, respectivamente os três primeiros do campeonato.
Oficialmente a equipe McLaren deixou a categoria no final de 1972. Os custos de manter uma equipe com carros caros como os Can-Am já eram preocupantes, e a equipe optou por focar seus esforços no campeonato de F-1. Os carros fabricados pela McLaren, entretanto, continuaram a correr nas mãos de equipes particulares, em grande quantidade inclusive, mas não eram fortes o suficiente para combater os Porsches turbo.
As equipes particulares
Assim como Enzo Ferrari, Bruce utilizava os carros na sua equipe, mas também fabricava carros adicionais para vender a pilotos independentes, geralmente apenas o chassi, carroceria e suspensão, sem motor. Esta prática foi utilizada para bancar parte dos custos da equipe. Alguns modelos de McLaren M8 de particulares correram inclusive no Brasil, por exemplo, na 500 Quilômetros de Interlagos e na Copa Brasil de 1972, com os pilotos Carlos Salatino, Georg Loos e Siegfried Rieger.
McLaren M8E da equipe GELO que correu em Interlagos
Muitos dos McLarens de clientes eram fabricados pela Trojan, uma fabricante de chassis inglesa que utilizava o projeto de Bruce McLaren readequado para os clientes, com algumas peculiaridades como fixações especiais para outros motores que não os mesmos Chevrolet utilizados pela equipe oficial, algumas variações de carroceria e de suspensão.
Um curioso carro de equipe particular foi um modelo M12, que era a versão para venda a equipes particulares, sendo ele um chassi de M6 com carroceria de M8A, comprado por Jim Hall para suprir a necessidade de seu piloto principal, John Surtees, ter um carro competitivo enquanto o novo Chaparral 2H não estava pronto. Hall modificou o M12 para que este ficasse mais veloz, em especial na parte da aerodinâmica, onde tinha muito conhecimento.
A equipe Motschenbacher, de Lothar Motschenbacher, foi uma cliente assídua dos carros de Bruce McLaren, desde os primeiros anos da categoria. Com resultados consistentes, conseguia ficar entre os primeiros nos campeonatos, sendo até vice-campeão em 1970, entre Denny Hulme e Peter Gethin, pilotos da equipe McLaren.
Roger Penske teve carros da McLaren na sua equipe também. O lendário Mark Donohue, futuramente piloto e campeão pela Porsche, pilotou um M6B e foi o terceiro colocado no campeonato de 1968, atrás apenas de Bruce McLaren e Denny Hulme. Penske foi um dos grandes nomes na categoria juntamente com Donohue.
Carroll Shelby comprou um M6B e Peter Revson foi o piloto em 1968, participando de apenas uma corrida, este que viria a ser campeão oficialmente pela equipe McLaren em 1971. Shelby não se interessou muito pela Can-Am, uma vez que tinha outros programas em andamento, como os GT40 e a preparação dos Mustangs de corrida para a Ford.
Ter um carro competitivo é bom, e fazer dinheiro com ele é melhor ainda, e isto a McLaren fez muito bem na categoria. Foi uma das melhores formas de financiar os investimentos e crescer no automobilismo.
A equipe de Bruce foi um marco na história do automobilismo americano e mundial, e seus resultados provam por si só o quão capazes seus carros eram.
A McLaren foi uma das grandes equipes da Can-Am, dominante até que uma nova tecnologia foi capaz de vencer os grandes V-8. Na próxima matéria veremos o sucesso da Porsche na categoria e como criaram os monstros com motores turbo de mais de 1.000 cv.
MB