O contato com o Márcio Jayme de Pirenópolis, GO, veio meio por acaso. De início a placa do seu Fusca chamou-me a atenção, pois a parte alfabética é KDF (foto de abertura), e que remete imediatamente à primeira denominação do carro até então tratado genericamente como ‘carro do povo’. “KdF”era a sigla de Kraft durch Freude (Força através da alegria), um programa de bem-estar para os trabalhadores alemães instituído no governo nacional-socialista) e que foi o primeiro nome do Fusca — o “carro do povo” (‘Volkswagen’ em alemão) ainda não havia sido batizado.
Pois o “batismo” deu-se no dia 26 de maio de 1938, durante lançamento da pedra fundamental para a construção da fábrica num enorme terreno na vila de Fallersleben, quando em seu discurso no palanque armado para a pomposa cerimônia o chefe do governo anunciou o nome do carro — para surpresa do muitos presentes, entre eles o Prof. Ferdinand Porsche e seu filho “Ferry” Porsche. Acho que, além de mim, muita gente gostaria de ter uma placa semelhante em seu Fusca pelo valor histórico que representa.
O Márcio é uma pessoa muito interessante e autêntica que gosta de contar os seus causos e é exatamente isto que eu ando procurando para fazer os meus registros da convivência entre as pessoas e seus veículos Volkswagen com motor arrefecido a ar. Sim, pois o catalisador disto tudo é o motor boxer com esse tipo de arrefrcimento e seus quatro cilindros contrapostos dois a dois e que empurrou, e continua a empurrar, milhões de veículos desta marca, em especial Fuscas e Kombis, os mais carismáticos veículos dentre eles.
O Márcio começou contando que foi para Franca, em São Paulo, para ajudar um amigo, que se recuperava de um derrame, nos afazeres de sua chácara, fazenda e outras propriedades, amigo este que passou a ser o seu patrão e era o dono de muitas propriedades na região. Inicialmente o Márcio quis dar um jeito de conhecer o trânsito da cidade, e para tanto ele foi até à viação responsável pelo transporte coletivo local e adquiriu um vale-transporte que vinha num cartão magnético. “Aí eu passei a observar as rotas e o tráfego local para ver onde era mão e a velocidade dentro da área urbana, tanto do centro como a periferia daquela região.”
O patrão dele tinha dois veículos, um Gol “Bolinha” e uma Kombi 1975 branca, superconservada que ele trouxe de Goiânia. Ele passou a lavar os veículos, dava marcha à ré para manobrá-los; tudo com cuidado, pois, em especial, a Kombi era um veículo “muito estranho” para ele.
Um dia o patrão viajou por cinco dias e o Márcio recebeu uma ligação da fazenda dizendo que a ração dos frangos tinha acabado e que eram necessários 30 sacos de milho que teriam que ser levados até Ibiraci em Minas Gerais. Curiosidade: esta fazenda faz divisa com a fazenda da dupla sertaneja Rionegro & Solimões.
Neste ponto o Márcio conta: “Lembrei que já tinha ido várias vezes de Gol àquela fazenda, na companhia do patrão, por que então não levar o milho que estava sendo necessário?”
Ele pegou a Kombi e foi até o posto de gasolina, mas ele estava sem um centavo no bolso e tinha que dar um jeito de conseguir combustível… Chegando lá ele se apresentou: “Eu sou o Goiano, filho do Lico, o Sr. Azarias!!!” Ocorre que o Sr. Azarias era, na verdade, seu amigo e patrão, uma pessoa conhecida na região, um grande proprietário de lá, e o Márcio usou o estratagema de passar por filho para liberar o combustível. Logo o gerente disse que ele estava autorizado a abastecer a Kombi ou o Gol a qualquer hora do dia ou da noite.
Desta primeira operação de emergência ele passou, de três em três dias, a levar milho e buscar carvão que era distribuído nos armazéns, açougues e supermercados locais, isto virou rotina.
Mas… num certo dia ele não estava a passar muito bem, estava com tonturas, porém dada a grande insistência do patrão ele foi levar o milho em pleno sábado.
“Fui ao distribuidor, carreguei a Kombi com os 30 sacos de milho, mas a senti mais pesada do que nos outros dias, o volante não girava igual como fazia nos outros dias. Sai do anel viário e entrei numa avenida muito movimentada, fiz a rotatória e dei sinal de convergência para a esquerda e entrei. Olhei e não vi nada, quando acelerei só ouvi o barulho bummmmmmm… fui parar entre o poste e a parede de uma loja de tintas. Deu perda total, segundo a seguradora!”
Como o Márcio enviou fotos da página 8-A, do jornal Comércio da Franca, edição do dia 26 de fevereiro de 2014 que registrou o acidente, a história ficou um pouco mais clara, a começar da manchete da notícia: “Kombi quase invade loja de tintas depois de colidir em cruzamento da Estação (nome de um bairro de Franca)”. Na descrição do acidente se fala de um choque ente a Kombi e um VW Saveiro, que ficou com a frente destruída. Segundo o jornal, a Kombi desrespeitou placa ‘Pare’, mas o Márcio não se conforma com isto e diz com convicção: “Sim, eu acho que fiz certo, mas a Lei de Trânsito de lá diz ao contrário da de Goiás.”
Fiquei intrigadocom a alegação do Márcio que a direção tinha ficado dura com a carga de 30 sacas de milho. Fui pesquisar. Dei uma olhada na internet e vi que o peso de uma saca de milho é de 60 kg, então 30 sacas pesam 1.800 kg!!! A carga útil daquela Kombi, conforme especificação de fábrica, era de 960 kg!!! Portanto ela estava com 840 kg de sobrecarga. Não era de se espantar que a direção tinha ficado dura, esta sobrecarga representou um grande risco para o equipamento… O interessante é ver que apesar deste castigo rotineiro aquela Kombi continuava a prestar bons serviços.
Depois deste acidente o relacionamento entre o Márcio e seu amigo e patrão foi arrefecendo, ele foi sendo preterido.
Mas o Márcio contou outra, digamos, “aventura um tanto desastrada”. Ele começa este relato dizendo: “Teve um dia, uns dois meses antes do acidente com a Kombi, que um amigo me solicitou para transportar uns materiais que ele tinha ganho de uma senhora lá no Centro de Franca; aí eu lhe perguntei: “é muita coisa?” Ele respondeu que era um barraco que ele tinha demolido e acabou recebendo as madeiras de presente”. Sem pensar muito no caso o Márcio disse: “Vou lá com você!” Mas o detalhe foi que o Márcio não tinha pedido consentimento de seu patrão para fazer este carreto…
Ele continuou seu relato: “Quando chegamos no local foi necessário transferir tudo pelo muro e colocar na Kombi: tanque, tijolos, portão, portas, telha Eternit e vigotas…” Foram viagens pesadas, em alguns casos a Kombi não conseguia vencer as subidas, tinha que dar voltar de ré e passar por outros caminhos.
Nesta altura o Márcio contou o fato que depois acabou mudando o rumo desta história: “Nós não tínhamos ideia do ocorrido, mas fomos flagrados pela lente de um repórter de uma publicação semanal, que tinha observado como a Kombi estava carregada, e lá fomos nós, sem saber, para a página daquele jornal de Franca.”
Passaram-se vários dias e o patrão, que quase não lia jornal, mas pegava jornais velhos para fazer cama de pintinhos recém-nascidos num cômodo do casarão lá da fazenda, acabou vendo uma foto num exemplar antigo… Para acertar a cronologia dos fatos o que se segue ocorreu um tempo depois do acidente com a Kombi relatado acima; a estas alturas, como já dissemos, o clima entre o patrão e o empregado, outrora amigos, já estava muito carregado devido ao acidente. Tanto que o Márcio já estava morando num sítio.
Num certo momento o Márcio estava ensacando carvão lá no curral quando o capataz chega e disse: “Senhor Goiano, o patrão tá lhe chamando e ele está muito nervoso…” No que o Márcio perguntou o que havia ocorrido e recebeu a seguinte resposta: “Uai, ele estava arrumando a cama para colocar os pintos, de repente ele saiu furioso com um jornal na mão!”
O Márcio, que a estas alturas já sabia da foto da Kombi carregada que saiu no jornal, chegou à seguinte conclusão: “O homem vai pegar fogo, é hora de pegar as trouxas e voltar pra Goiás.” E foi o que acabou acontecendo pouco tempo depois. Na época que ele deixou Franca ele morava na Chácara Paraiso às margens da Rodovia Cândido Portinari, onde ficava o antigo “Jp Leilão” (conhecido local onde se realizavam leilões de gado, hoje desativado), hoje lá é uma plantação de hortaliças.
Voltando à Pirenópolis, em Goiás, a vida tinha que continuar e no dia 11 de maio de 2015 o “KDF”, um Fusca 1976, entra na história. E logo com um propósito que foi afixado em suas portas através de um cartaz. O Márcio se apresentou neste cartaz como “Pereirão do Piri”, já com páginas no Facebook e uma proposta clara de trabalho.
O Fusca teve vários apelidos, desde Corrupto, mais hoje chama Pereirão ou Fumacê. Ele fez parte ativa na divulgação do trabalho do Márcio e também aparece na ilustração de abertura de seu blog, como podemos ver abaixo:
O Fusca foi modificado para atender às necessidades do trabalho do Márcio que oferece uma gama de serviços. Ele trabalha com limpeza e manutenção de jardins, roçagem de lotes, serviço de assentamento de pedras em pisos e revestimentos, pinturas em residências, reparos em tubulações e encanamentos, etc.
Com seu Fusca ele carrega de tudo, galhos de árvores, pranchas de madeiras, roçadeiras e ferramentas de uso rotineiro. Sem contar os extras como um sofá de três lugares com um de dois lugares encaixado, ambos sobre o forte bagageiro.
O Fusca também ajuda a cuidar de sua mãe idosa, como ele explica: “Transporto minha mãe em passeios de rotina, a levo para Goiânia para visitas ao médico, para compras e para o banco; como ela já tem 83 anos já não anda sozinha na rua mais.”
Mas o Fusca estava acusando os golpes que estava levando neste serviço pesado e um de seus apelidos “Fumacê” indicava que seu motor já andava queimando óleo, como podemos ver no vídeo abaixo:
Eu tinha desconfiado do estado do carro devido a este apelido e quando perguntei ao Márcio como o motor estava ele comentou: “O Fusca está necessitando de lanternagem (funilaria), troca do ‘chapéu de Napoleão’, da longarina e de uma retífica do motor”.
Mas como um tipo de explicação para esta situação ele disse: “Ele é meu braço direito, eu faço com ele minhas viagens de rotina. E em outubro de 2016 iniciei viagens para cidades próximas a Pirenópolis em busca de dados de família para compor um livro sobre a família Jaime/Jayme. Nesta busca eu fui para Anápolis, Corumbá de Goiás, Cocalzinho de Goiás, Trindade e Goiânia.”
Como é de se esperar, com o carro nestas condições, nem tudo são flores, como a experiência que ele reportou: “Tive um grande desafio recentemente. Mandei substituir a bateria e arrumar o alternador no Juary Eletrocar (uma grande autoelétrica da região que inclusive é oficina de referência de uma seguradora, o carro ficou sete dias lá para fazer este serviço), mas o mecânico deixou o relé do alternador solto. Aí eu fui para Goiânia e quando cheguei ao pedágio, entre Goianópolis e Terezópolis de Goiás, tudo parou. Chamei o socorro da rodovia e ele me levou até o Posto Presidente e me orientou para procurar a oficina mais próxima; deu uma pequena carga na bateria e me liberou. Já era umas 15h00 e eu peguei a estrada sem usar o farol até o Posto Rodoviário, onde liguei o farol que desliguei novamente. Cheguei já no escuro e sem farol. Que dia foi este! Com muita raiva levei o carro direto para a oficina onde foi necessário substituir várias peças.”
Entre 17 agosto de 2018 e 15 de setembro de 2018, na oficina mecânica do Zé Luiz, foi feito um serviço no motor tendo sido usada uma carcaça de um outro motor, retificado o virabrequim, trocadas as velas e feitos os ajustes habituais. Com isto o motor foi colocado em operação e está funcionando satisfatoriamente. Mas o Márcio Informou que: “Breve vou dar um grau no assoalho, ‘chapéu de Napoleão’ e na lanternagem geral.”
Mas nem só de trabalho “vive” o “KDF”, sim, pois ele faz parte do Clube de Fuscas & Antigos de Pirenópolis, onde o Márcio faz parte da diretoria sendo responsável pela tarefa de divulgação. Quando falamos sobre isto ele comentou que está trabalhando para motivar um número maior dos 68 membros do clube para participarem das reuniões e colaborarem com as atividades do clube.
Agora vamos apresentar o Márcio Jayme seguindo a descrição feita em um livro sobre a sua família, para o qual ele colaborou e onde ele também aparece referenciado como um dos biografados. Trata-se do livro “Família Jayme – Genealogia e História”, escrito por Nilson Jaime (o nome desta família acabou assumindo duas grafias, com e sem “Y”) e lançado em dezembro/2016 na Assembleia Legislativa de Goiás:
Márcio Jayme, Marcinho de Dezinha (n. 18/10/1959). Natural de Pirenópolis GO, microempresário do ramo de serviços gerais, mais particularmente jardinagem. Residiu por alguns anos em Goiânia, durante sua infância. Montou em sua cidade a empresa de prestação de serviços “Pereirão do Piri”. Possui grande aptidão para serviços administrativos, porém não se exime de qualquer trabalho. Homem inteligente, afável, hospitaleiro, educado e prestativo, é pessoa muito querida em Pirenópolis, onde foi chefe do escritório da empresa estadual de Energia Elétrica, CELG. Orquidófilo e amante da natureza, não perde a chance de fotografar, em seu cotidiano, as manifestações do mundo natural. A realização desta obra deve muito ao biografado, que foi o primeiro e o mais entusiasta entre seus muitos colaboradores. Amigo de todos e conhecedor das famílias pirenopolinas, sua presteza foi fundamental para a localização e contato com parentes de Pirenópolis, Corumbá de Goiás, Anápolis e Goiânia. Fez este autor incursões no Cemitério São Miguel em Pirenópolis, onde fotografamos centenas de túmulos, excelente fonte de pesquisa para este trabalho. insuperável nas redes sociais, mobilizou parentes de várias partes do Brasil – e até no exterior – através do Facebook e Instagram. Nos últimos meses de preparação desta obra, ombreou com este autor no esforço para que o maior número de parentes fosse biografado. Este livro estaria menos completo, não fosse a abnegação, a determinação e o homérico esforço de Márcio Jayme.
Abaixo a foto do Márcio com a sua filha Luana Rodrigues Jayme, que acaba de ser aprovada em primeiro lugar no concurso de Cerimonial da Assembleia Legislativa de Goiás, motivo de grande orgulho para o seu pai:
Esta matéria é um retrato de uma realidade bem brasileira, onde a amizade se confunde com o relacionamento entre patrão e empregado. Onde uma pessoa se distingue na sociedade onde vive e acaba sendo amigo de todos criando uma excelente atmosfera. Sim, e tudo isto ligado a uma Kombi, que já acabou e a um Fusca que continua a prestar seus serviços fielmente, sem esquecer o lado do hobby – um verdadeiro “sócio atleta” do clube de Pirenópolis.
Fica o agradecimento ao Márcio Jayme por sua participação neste trabalho, e os votos de sucesso em suas atividades futuras.
AG
Esta matéria surgiu, como explicado do contato espontâneo com o Márcio Jayme, feito pelo aplicativo WhatsApp, foi desenvolvido através de troca de mensagens e telefonema feito em especial para ajustar a cronologia dos fatos, já que os relatos vieram de uma forma separada. Cabe aqui um reiterado agradecimento ao Márcio pela oportunidade que ele propiciou de se colocar esta matéria à disposição de nossos leitores e leitoras. As fotos, em sua maioria, foram enviadas por ele.
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
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